28 dezembro 2007

Olhar na mesma linha dos trilhos

Quando veio aquele trem
ele largou a foice e correu,
se jogou no chão e estabeleceu
seu olhar na mesma linha dos trilhos.
O tremor lhe atravessou até a língua,
suas mãos se tornaram garras no chão,
seus olhos, escancarada boca de forno
e riacho pequeno e espumoso
umedeceu o capim.
Depois que o trem passou
ele viu o lado de lá onde vivia,
ou só morava:
o mesmo terreiro seco e varrido,
o mesmo curral lamacento,
a mesma casa pequena,
pai, mãe, irmãos lá.
E o sol caindo, caindo,
tudo parado, tudo caindo
na mansa boca da noite.
O que ele esperava,
ou sonhava,
era tomar o trem e se ir
não sabia para onde,
como se houvesse um longe
onde fosse possível fugir
daquele trem da alma,
ou do corpo - quem sabia?
Tão certo quanto o trem
que passava todo dia
quem passava era ele
... que ficava
sem saber a que horas
aquele outro voltaria.

23 dezembro 2007

Poemas-náufragos

Dedico aos amigos dos blogs-naus.


Tenho todas as palavras no mar da alma
sem desfrutar da fartura dessa possessão
pois as que pronuncio são acometidas
de disritmia, escorbutos, solavancos e baques.
Não há homem de bordo capaz de distinguir
o que diz essa minha rouquidão que se levanta
para proclamar o grito que salvaria o mundo,
meu pequeno mundo, cais (caos?) de vivências cotidianas.

As palavras me olham desafiantes, tensas,
lobos do mar da espécie ferrugem-ventania
com olhos de água fervente
e pêlos suaves de veludo ao luar.
Conclamo-as e poucas se fraseiam, por piedade,
como soldados de prontidão ao meu lado
e são essas, ó nobres navegantes
que, em gentilezas , ledes agora.

As outras se limitam a me queimar com seus olhos
ignorando meu esforço e desdenhando
da minha precária nau e sua tripulação
e das degredadas palavras enviadas
para colônias distantes e de porvir incerto,
em poemas-náufragos nesse web mar,
e que por sorte foram resgatados por vossos olhares,
ó gentis e amáveis navegadores!

21 dezembro 2007

Maças e percevejos

(Nos comentários a respeito do "Esse truque" a Jacinta fez referência
a esse outro poema. Decidi então publicá-lo novamente aqui)

Me dobrei de dor,
de não saber,
de querer saber.
Nessa luta que não acaba,
poder que perdi.
Ganho que tive foi ser
sei lá, quem se vê.
Me vi sozinho aqui
e não tive outro sonho
senão o que me acordou
enquanto me perguntava
quem eu era,
ora essa!
Quem era esse
Eu.
Me dobrei mais que pude.
(Sentir a dor
me é dado poder).
Me dobrei por dentro
e apareci por fora
e descobri na hora
replicada em tantos instantes
que sou um feixe
desarranjado de linhas,
emaranhado de desejos,
maçãs e percevejos.

20 dezembro 2007

Esse truque

Perder tem um som de poder,
pura ilusão de pensar
que o que está perto,
o que se é,
não se vai perder.
Perder se explica com saber perder.
Que nada!
Conversa fiada.
Perder tem a ver com rir.
Pra não chorar?
Coisa nenhuma!
Se chora do mesmo jeito.
Para que então?
Só para se ter na cara
o riso – debochado? – que diz:
perdi, não me submeti.

(para Deus também quero dar esse riso
quando eu perder minha vida,
já que foi Ele que, em segredo,
me ensinou esse truque).

Truque?
Claro.
Perder sempre dói.
Hehehe!

18 dezembro 2007

E por aí vai...

A palavra dos outros me leva,
a minha no começo me pesa.
Cada letra do que escrevo carrega,
além de tudo que não sei, um grito preso,
um grito de angustiAção (o que é isto?)
É como se fosse outro coração a pulsar.
Esse grito no peito bombeia o sangue, o desejo,
o destempero de querer impedir de passar
o que foi feito de sopro. E por ai vai...
Janela sem tramela que bate, bate, bate
em casa abandonada, no domínio desse grito
eu escrevo correndo, fugindo de um sortilégio.
Na sofreguidão me esqueço das demarcações
e me descubro nu, leve e distante. Depois volto
com vontade de montar o presépio em agosto
visitar cemitério em janeiro
soltar um grito-de-carnaval a cada dia
e, apesar do sufoco,
por incrível que pareça,
dar o braço a torcer
e...
acreditar no amor.

16 dezembro 2007

Vida estranha olaria

... É que pensei em construir uma casa,
acolhedora, cheia de lindas vistas
e com muitos quartos.
Já pisei o barro e fiz os tijolos,
aguardo o sopro de silêncio
com a revoada de vocábulos,
esses pássaros solares.
Aguardo o sol
nessa vida estranha olaria. Há lenha,
fogo embora não há.
Já tenho o desenho, no entanto
o lápis ainda espera o correr da mão.
Aguardo, e de aguardar me enfureço:
Oh céus! Que caia um raio
e me queime os tijolos,
preciso urgentemente dessas palavras em brasa.
... É que pensei em escrever um poema de amor.

14 dezembro 2007

Talvez algo como amoras

Preciso ir dormir mais cedo.
Há algo novo que eu quero plantar
nos canteiros da noite lavoura
onde espero depois da demora
colher frutos, talvez algo como amoras
ou vagalumes-filhas da escuridão, as palavras,
minhas palavras vistas por outro lado.
Esperarei no sonho sem agitação
embora com o coração na boca
igual menino que armou arapuca
e espera o passarinho cair.
Tenho uma vontade danada
de ver minhas palavras de lá para cá,
já que sempre, a vida toda,
é só daqui pra lá
que as escrevo.

11 dezembro 2007

Eu vi a torre

Eu vi a torre,
juro que vi.
Lá onde as palavras se formaram,
dos ventos que sopravam cantando
por todas as janelas.
Cada uma com seu som,
cada tribo com seu ar.
Foi a maior confusão,
eu estava lá.
Quando pensei que não,
“não” já não era negar,
era um gemido de dor,
bem conhecido de todos
que vinha do fundo,
bem do fundo
de dobras de tortuosas entranhas.
Estranhas escadas têm essa torre.
Desci e não encontrei o ar,
era outro o que saía,
estrangeiro do que eu queria falar.
Foi quando eu quis dizer
como “bom” e futuro cristão
o que na escuridão me poderia guiar,
a doce palavra amar.
Então ouvi minha mãe cantando
uma carinhosa e suave canção
na minha boca
o bico da letra “a”

09 dezembro 2007

Enfim, como direi?

Fugiram com os últimos raios de sol os nomes
que identificam certos mundos interiores.
Observo alguns deles cujas órbitas
tocam nesse momento a elipse da minha alma
com a esperança de saber a palavra
que define o que experimento.
Mas é uma cena, e não palavra,
que me vem lá desses mundos como resposta,
fotos antigas jogadas umas sobre as outras
tão rapidamente que só a última posta é a que se vê:
uma fortuna informe e escondida, mas que reluz
para além do ar carregado de escuridão e chuva
sobre o capitão no convés do resistente vapor
que com a terceira taça de vinho
brinda ao mar as milhas navegadas
e as outras tantas a navegar.
É tristeza isso que sinto? Não.
É saudade? Não.
Enfim, como direi?
... acho que cheguei atrasado,
o que vejo é uma festa – mais um dia – no seu fim.
Mas amanha bem cedo, gritarei diante do sol:
Esta festa, por nada, eu perderei.

07 dezembro 2007

Lindo pássaro, uma orquídea branca

O mundo todo estava ali no limite do lago
a impor-me um franzir de olhos
para enxergar melhor sob um sol estonteante
um pássaro de pernas aéreas.
Tinha penas brancas, tão brancas,
lindo pássaro, uma orquídea branca
numa haste longa a tornar mais branca
e ainda mais linda a brancura que balançava
devagar, bem devagar...
Ali estava o mundo num único instante,
sem pretérito e sem missão,
em que tudo - em paz - podia acabar.
Na floricultura fiquei parado certo tempo,
segundos talvez,
até que exauriu-se aquele olhar para a orquídea.
Então comprei violetas.

04 dezembro 2007

Ferro queimado

Ei,
aqui,
escute:
não espere um alento.
Ao contrário de versos
vou soldando umas palavras
sem muito jeito,
no que será uma estátua de aço
feita com sucata – talvez
um arauto medieval desengonçado.
Frases sem dobradiças,
sem gonzos, que poderiam ser,
quem sabe, até, poesia.
Contudo, o que busco
nem é a obra acabada
mas um cheiro,
o cheiro de ferro queimado
que sai das palavras
enquanto uso o fole,
a bigorna, a pancada.
Tu sentes o cheiro,
ou tudo já é frio?

02 dezembro 2007

Contentamento suficiente

Que escuridão repentina aquela que veio
descontinuando a outra que se aproximava!
Era uma densa e larga sombra na boca da noite,
enchendo-a de diversa beleza no momento do ângelus
como fumaça escura de incenso sobre o altar
na penumbra da catedral.
Desfez-se logo em aguaceiro forte sobre a cidade,
um sinal que apressado enxerguei,
promessa de torrencial felicidade para o futuro.
Todavia a chuva, ou o céu de onde ela vinha,
ou um anjo imenso e travesso com asas cinzentas,
exigia o que não imaginei:
deixar-me lavar daquele avelhantado ganancioso eu
que me impedia de ouvir
o “dai-nos hoje” de rosários por séculos,
e ser novo e recolher o contentamento suficiente
... de cada dia.

29 novembro 2007

Caminho do pescador

Na reborda leve e borbulhante do arrastado traço
que o barco de pesca deixa sobre o inquieto mar
vai um anseio em respiros curtos definindo um caminho
que de longe, pensativo, avisto perdido em pensamentos.

Eu me posto com olhos bem amplos procurando,
quem sabe, na reborda do corte azul das águas de sal
uma inspiração alvissareira que me alcance o sabor,
vida intensa para abrir o peito e soltar todos os pássaros.

Se de todo não me dá a força de um sacramento
esse olhar que segue a linha azul do caminho do pescador,
pelo menos por ele me reconheço casa simples caiada nova,
barco reparado com nome novo deixando o estaleiro,
janela aberta pelo vento batendo forte.

O certo é que certas aflições que apertam o peito
descem com a maré lentamente e vazam
quando me apercebo seguindo aquele traço de espuma
até que o barco debandeie para depois do horizonte,
quando estranho, areado, ferido sem dor, retorno para casa.

26 novembro 2007

Pode ser que

Pode ser que se eu seguir por aí
pela avenida beira mar na direção do porto
eu me contente de um contentamento que se estenda
com um olhar solto
... e demorado
sobre um navio – é bonito – indo embora.
Pode ser que se eu juntar
o que vejo com o seu cheiro,
o cais e a maré,
o destino e o navio,
eu desaprenda quem sou
e me dê nova luz
em parto de prazer e calma
exatamente às três horas da tarde
para gostar mais e mais
dos passos que dou
do lugar onde estou
desse mesmo que sou

... e sentir paz.

21 novembro 2007

Tudo tramado pra me levar a elas.

Assim não vale,
não se faz isso com um menino.
Quando eu ia me divertir
tu vieste a gritar meu nome
- desconcentrando-me.
Agora digas, por favor,
onde foi dar o amor
que anunciaste-me?

E, pior ainda...
O pião que arremessei,
quando gritaste,
onde foi girar?
Sobrou-me nas mãos a fieira,
no corpo e nos olhos uma fogueira.

Esquece, esquece.
Não te acuso.
Fieira, fogueira, estrada...
Livros. As palavras.
Tudo tramado pra me levar a elas.
E elas?
Elas deram um fim na minha inocência.

É preciso rir...
Admito, agiste como mestre.
Conduziste-me por onde querias.
Onde me levas não sei.
Pudesse eu pelo menos encontrar
por onde me fazes andar
o velho pião que arremessei.

20 novembro 2007

Dizer a luz

Isso de fazer poesia tem a ver
com o caminho que faz a voz.
Esta, que não é a minha,
nem a de ninguém.

Ela passa pelas minhas cordas,
me amarra com a minha letra,
se arranja bem com os meus termos,
usa meu tom, meu timbre, meu ritmo,
me subtrai as palavras mais caras,
e me cala.

Mudo, mudo de dimensão.
Ao invés de fazer poesias
acabo por encontrá-las vazias
de toda e qualquer palavra
no silêncio do que não se escreve.
Mas a mudez não dura muito.

Isso de fazer poesia tem a ver
com o caminho que faz a teimosia,
a angústia, a ternura, a esperança de recompor a vida
e dizer a luz que aparece antes do nascer do sol
e o escuro que também se mostra ao meio dia.

15 novembro 2007

Eu tive um carrão

(se possível leia esse poema ouvindo Yann Tiersen)

Meninos com seus carrinhos...
Mas eu?
Eu tive um carrão.
Ele era lindo
apesar de abandonado,
parado, depois de muito rodar.

Deixei-o alojado para sempre
aqui dentro
nas proximidades do coração,
numa garagem qualquer
no limite com o pulmão.
Quando penso nele
minha respiração muda.

Ainda sinto agora aquele cheiro
de óleo queimado.
Olhar pelo vidro trincado,
mãos no volante emperrado,
motor roncando na garganta.
Estradas sem fim
em tempos de hojes tão grandes.
Viagens que eu nunca mais fiz.

(Quem quiser ver um carro bem parecido vá ao essajanela)

12 novembro 2007

Escada de cada dia

Escada cada um tem a sua
conforme o dia.
Essa amarela é linda.
Queria que fosse a minha.
Toda iluminada sem ser enfeitada.
Dourada a não ser de sol e mais nada.
Também será ela perfumada
de incensos os mais delicados?
Será deste dia a minha?
Quem quer me seguir,
- ouço sua voz entusiasmada -
tem que achar sua escada
de cada dia
e subir.
Cá de cima a vista é linda.

09 novembro 2007

Somos estranhos uns para os outros

Notícia do dia 08/11/07
Mãe, me ajuda, que está saindo alguma coisa de mim. Esta foi a frase que uma jovem disse para a mãe ao dar a luz em um avião sem saber que estava grávida.



Mãe,
dizia a mocinha,
minha querida mãe,
mãezinha que não me alertou
mãezinha que me deixou
na inocência de não saber
o que há tanto eu deveria:
somos estranhos uns para os outros.

Mãe
me ajuda,
Que pedaço é esse? um eu
que vai se tornando alheio,
se partindo e se libertando.
Há uma dor e um alívio,
um prejuízo e um lucro.
Me ajuda que está saindo
alguma coisa de mim.

Mãe,
mãezinha,
minha querida mãe,
eu te entendo. Fica triste não.
Este que saiu de mim é filho.
Um filho...
e eu não sei quem ele é.
Eu também te sou estranha,
...não é?

07 novembro 2007

No entanto

Eu sei,
infelizmente sei,
que o único jeito de voar
com as próprias asas
é fazendo poesia.

Um dia a ciência vai provar
que a única e absoluta utilidade da poesia
é fazer brotar nas costas do sujeito que escreve
- ou que lê -
um par de asas.

É claro que o tamanho,
a penugem,
a força,
a beleza da asa
vai depender de fatores que não sei explicar.

Meus vôos são sempre rasteiros,
mas ainda assim me lanço
e me rasgo em brutos esbarros com o chão
em pontas, pregos e pedras.
A pequena altura que alcanço
vai mais alto, no entanto,
que qualquer avião.

06 novembro 2007

É pelas mãos que se faz

Um querer veio torto
pelas tripas em muitas voltas
pelo estômago como uma aflição
e pela boca saiu um
ahhhhhhh,
vou escrever um poema!
Quis seguir o conselho do Drumonnd
e deixar amadurecer
o que era cedo pra dizer.
Me afastei do teclado,
me reclinei na cadeira
e me soltei em um delicioso vaguear.
No ahhhhhhh relaxei e esqueci
o que o ahhhhhhh iria dizer.
Morreu verde a intenção.
Parece que devaneio
não amadurece poema.
O meu, que sempre guarda um amargo,
é pelas mãos que se faz.
Muitos rascunhos,
não-sentimento profundo,
e prazeroso trabalho.

04 novembro 2007

Rei dourado

O rosto do faraó Tutancâmon foi mostrado hoje (04/11/07) pela primeira vez na história, depois de sua múmia ter sido transferida de seu sarcófago para uma urna transparente no interior de sua tumba no Vale dos Reis, em Luxor, no sul do Egito.



Vi o rosto de Tutancâmon.

Tu-tão-cansado
como qualquer um
que morreu.

Tu-tão-cândido
como um menino
sol dourado que se pôs.

Tu-tão-comum
como gentes e desertos
e sofrimento sem fim.

Tu-tão-compungido
como escravo a cumprir
o que o dono dos destinos mandou.

Tu-tão-começo
como jovem que não findou,
antes de acordar, um sonho bom.

Tu-tan-câmon
Tudo tão confuso nesse mundo que já foi o seu.
Mas bem sei que seu sonho bom também é meu: querer viver.

Eternidade é outra história...



Ps.: Este poema poderá ser modificado.

31 outubro 2007

Passei do presente e caí

Passei do presente e caí
num ponto do tempo errado.
Essa ânsia pelo futuro é quem cava buracos
na alma como a síndrome de Alzheimer no cérebro.
Mesmo sabendo demorei em perceber.
E quando me decidí voltar,
vazio de preocupações,
para dar vida aos momentos,
os de agora,
essa única e absoluta benção,
não regulei o passo,
pisei num buraco e cai
nos idos tempos em que não vivi.

26 outubro 2007

Outro fragmento

... vou
nesse vôo com asas molhadas,
viver o destino que me preenche e me pesa
me puxando pro chão,
Pro pó.
Poesia,
recolhe meus pedaços!
Proposta que me faço - sonhar.
Propósito que desfaço – só viver, sobreviver.
Por intercessão da mesma poesia,
embriago-me.
Não me embriago, tomo um porre.
Ressaca horrível. Que coisa!
As ruas não chegam a lugar nenhum.
O calor faz coçar cada poro.
Esporos de flores que jamais vão nascer
ficam grudados na pele molhada de sal
das marés avançadas do mar sem praias
do vazio que como oceano
me invadiu onde não poderia
sobre os casebres poucos que eu construíra
ao longo dos anos de trabalhos penosos
- como imigrante - em busca de outras fronteiras.
O melhor é encarar a vida, o destino, tudo
como uma terrível e deliciosa brincadeira.

Porto

Porto.
Minha cidade é um porto.
Parte-se,
chega-se,
além das coisas que vão
e que vem nos porões.
Os navios,
tão lindos no porto,
nem parecem ter porões.
Parecem prenhes de poesias,
grandões,
prontos a dar a luz.

25 outubro 2007

Exagero de azul

Esse exagero de azul que como uma trama cai sobre mim
num dia tão lindo, desses que não deveria jamais acabar,
me faz ter a noção do prazer de um esperto peixe no mar
e sua agonia de se ver na fiação da beleza do dia
puxado pra fora, sem chance nenhuma de escapar.

Já é tarde...

...é preciso acender as lâmpadas
e esperar que o óleo – ou o amor ou a paciência - não acabe
antes do novo alvorecer.

23 outubro 2007

Estou farto de não partir

Se as cigarras cantam até a explosão,
danem-se! O que posso eu?
Bem menos posso quando canto,
nem aos pardais espanto,
pois comigo se habituaram
aos meus lindos quintais.
Fico assim nesse poeminha preso em casa
desnorteado entre ver e dizer,
desorientado entre os anseios e os outros,
impedindo-me de sair por ai.
Há tantas estradas me esperando
e já estou farto de não partir.

20 outubro 2007

Fresta

Deram-me uma fresta na janela
e eu vi que as estrelas seguem seu rumo
independentemente de eu estar aqui.
Mas eu olho o universo e não me importo
se ele se expande sem me ouvir.
O que canto na janela só eu escuto,
pronto, fico feliz e me ponho a espiar mais
até que estes olhos que a terra há de comer
terra volte a ser,
planeta que circula uma estrela
de grandeza quinta
numa periferia do céu.
Enfim penso, minha vida é somente
um piscar de olhos da viva terra.
É ela que pelos meus olhos varre o céu,
sabe-se lá com que intenção.
Deram-me uma fresta na janela
e eu senti o pulsar do universo imenso
e me perguntei: O que a terra pretende
abusando assim do meu coração?

15 outubro 2007

Como você sabe

Eu sou assim
como você sabe.
Vendedor de flores no mercado,
ao lado da banca de peixes.
Mas meu pai era bonito
e minha mãe linda, linda é.
Eu sou assim,
como você sabe,
estranho, tímido, pago pra não falar.
Padeço de saudades do que não vivi,
sonho que moro nas casas que existiam no lugar dos prédios,
viajo todos os dias na Enterprise como co-piloto do capitão Kirk.
Sofro e percebo que sou assim,
como você sabe,
desigual até no modo de sofrer.
Às pessoas o tempo assusta, delas tira a beleza, a saúde...
Mas eu, eu não me assusto, nem me entristeço.
Sofro
e me consolo.
Meu pai era bonito
e minha mãe linda, linda é.
Não há escapatória,
ela me persegue,
a beleza vai me pegar.

13 outubro 2007

Palavras molhadas

Perdi o dia com as palavras
andando por caminhos com muitas encruzilhadas
em paisagens rotineiras e cinzentas
sem olhar para quem passava.
Procurei lugares onde o vento fosse bom
e me permitisse armar um varal para secar as palavras.

As palavras vêm sempre molhadas como crias
de qualquer bicho quando sai do útero.
Prefiro-as secas e leves
e por isso perambulei em busca da melhor corrente.
Quando o dia chegou ao fim
me achei longe sofrendo de vácuo
de uma perdida parte que ficou pelo caminho
que eu bem nem sei, nem me pergunte.

Do que sofro, necessito falar outra vez,
- quem me analisa que interprete -
manifesta-se numa sensação ruim a me roer
como lombricóides seres intestinais,
enquanto ando por outras estradas
onde todos me dão bom dia
e reputo-os como loucos
uma vez que aqui no centro estou vazio.
O vazio vem dessas muitas palavras úmidas
que se grudam nas curtas horas do dia
apagando-lhes o fulgor.

Palavras!
Não encontrei o vento certo.
Era tão pouco o que eu queria,
um sol que brilhasse as cinco da tarde
como brilha ao meio dia.
Palavras sem umidade, sem secreções,
sem salivação excessiva.

12 outubro 2007

Sem sentimento

Palavras que não desvelam mistérios,
nada ensinam, nem emocionam,
nem rimam, é o que aqui
em atenção a outras coisas, deixo entornar
como leite fervido sob a guarda de um menino.
Nem sei se é, mas pode. Quem sabe seja
uma tentativa de distinguir coisas que se sente,
que não seja sentimento.

Depois de viagem longa recolhendo olhares,
redondeei o mundo e cheguei no mesmo porto.
Os fardos que descarrego apressado de tanta gente
são re-sentidos sentimentos. Assim ressecados
se tornaram outras coisas, pedras,
cobras, fogo, punhais, peçonha, dores,
granadas, pensamentos doidos, poemas.

Mas, maravilhosos são os dias em que se tem
- este talvez seja um deles -
o contentamento de viver preenchido,
sem sentimento,
sentindo outras inomináveis coisas.

11 outubro 2007

Não querer dormir de novo

Eu dormia no escuro primevo
e não tinha medo,
nem sonhos.
Nem esse eu
que me enche o tempo todo
de anseios.
Acordei em mim,
me encantei com a luz
e agora sofro muito
por não querer dormir
de novo.
Será que quando eu for
o sol também vai se por
e só brilhará o amor?

06 outubro 2007

Do lado de cá do desfiladeiro

Um vento bate forte sobre a casa
que está do lado de cá do desfiladeiro.
Abre as portas, janelas, esparrama murmúrios.
Desadormeço, esqueço velhos propósitos,
me determino a fazer a coleta
em cada canto, sobre as mesas, no teto,
nos marcos, nos móveis, nos pratos,
no que se avista pela janela e pelo vão da porta.

Depois do muito trabalho que é faina diária
me percebo completamente insensato.
Todo esse afazer é inútil.
O que escrevo ao recolher o que o vento esparrama
é tão somente mais um retalho
do que já foi infinitamente costurado.
O que se marca em folha frágil
é o que na pedra com sangue já foi talhado.
Mal digo o bem dito que já foi de alguém.

Exaustivo fluxo insubordinado que não se interrompe,
ventania que não pára!
Não sei se te esconjuro ou se te abraço.
Se coloco grossos ferrolhos nas portas
ou se solto arraias nas barreiras do precipício.
Sou tomado, não tem jeito, é sina, por esse influxo,
barulho ensurdecedor, murmúrio de dor
a me exigir canções.

O que resta de mim ao fim da lida
é um espantalho de palhas,
exposto às tempestades e aos raios
para ser queimado de vez.
O problema é que a cada dia
ressurjo dos meus fracassos com uma vontade maldita
de achar no murmúrio palavras
que me permitam um grande e único salto
sobre o abismo.

04 outubro 2007

Água de arroz

Ao dirigir pelo descampado seco em agosto
minha velha caminhonete caiu num buraco
e com ela dentro de mim eu caí.
Um fio de ouro, naquele instante, me ligou a um outro eu.
Olhei, procurando alguém que me entendesse
e me estendesse a mão e me trouxesse água,
ficasse comigo até a aflição passar.
Perdi o rumo, o tino, o senso.
Quando voltei me achei o mesmo. Me decepcionei.
Terei duro trabalho pela frente.
Na verdade queria me achar outro, louco,
para desfazer os caminhos pelos pastos
em meio à dívidas com os bancos,
e abrir outros por entre os arrozais,
imaginando que na Índia ou no Paquistão
levo um belo e cheiroso pedaço de pão
para aquele menino que cantarolando vai para a escola,
e como merenda carrega uma garrafinha
só com água de arroz.

01 outubro 2007

Ao som de "have you ever seen the rain"

E vejo que alguns dolorosos instantes se vestem em trajes de gala.
Assim a beleza nostálgica do adeus em estações de trem
e o cruel "glamour" das despedidas.
Há belezas tão estranhas na vida!
Corri com aquela mochila nas costas
como um “beat” fora de época,
e tomei meu vagão.

Retornarei, mas não serei mais eu, serei diferente. Rico.
Muitos sóis se levantarão em alvoradas promissoras, sei.
Voltarei com os braços abertos
ao som de “have you ever seen the rain”.

Olhei pela janela e a vi, linda, linda,
com o aceno de quem pede: fica,
sossega, aproveita a fortuna
que está aqui.

30 setembro 2007

Olhar

Do pó que faz rubro o horizonte da cidade
seus olhos estão cheios e lacrimejam constantemente.
Seu olhar ganha um brilho que para quem vê
anuncia um jeito de ser sossegado, com uma certa tristeza bonita
de um andarilho sem estrada, de um junco quebrado.
Para quem sabe o que é ter labaredas na visão
o fulgor não vem senão das faíscas das espadas
que no fundo de uma escura oficina são forjadas
por obstinado trovador.

29 setembro 2007

Escriba do rei em momentos de inquietude

Me retirei para uma cava nas montanhas,
lá encontrei os malditos pastores que falam outra língua,
com suas ovelhas e cabras, que sempre estão onde não devem.
Enxotei-os de lá e tomei-lhes o que me servia,
mas eles continuaram por ali.
Fui para escrever as máximas que deveriam ser boas
mesmo se alguém não concordasse que fossem.
Fui escolhido pela inspiração e aferro que imaginam sei ter.
Sei das minhas obrigações, não espero que me mandem.
Faço o que devo como fiel do império.
Candura que nunca tive aparece no dizer quando escrevo
com destreza - ou sinistreza - o que "docilizará" os vassalos.
Levei tinta, couro, óleo, lamparina e coração
- um resto de amor ilusão de quando era moço.
Ao escrever, estranhamente,
as palavras foram tomando certos cíngulos
do cérebro que nunca usei e forçaram
indagações estranhas sobre a verdade.
“O que parece tão torto certo já foi
e curva é a via
que se precisa
para contornar o pântano intransponível”.
Fiquei atordoado, saí, matei dez ovelhas,
esquartejei uma em mil pedaços. Me ensangüentei,
comi o que não pude, me empanturrei de gordura,
bebi todo o vinho, tudo aos olhos dos pastores imperturbáveis.
Nada mudou, inquieto continuei, inchado de orgulho e de verdades.
Mas ao final me deixei partir pela espada:
ou me junto aos nômades,
retomo a lingua que jamais consegui esquecer
e resisto ao império,
ou continuo o iludido escriba fiel
que já tem sua hora de morrer.

28 setembro 2007

Alma parada

Quando encostei meu barco no cais
percebi ao sair do balanço do mar
que minha alma estava parada. Parada.
Assim como bandeira hasteada em país sem vento,
como canhões antigos apontando pro nada
e como capela de jesuíta que virou museu.
Achei estranho e pensei,
morri.
Quando se morre, no entanto
mais ainda a alma se move.
Ela sobe - disseram.
Então o que aconteceu comigo ali?
Morri de outro jeito, pensei.
Que nada, tudo passou quando notei
que o que parecia um buraco no tempo
era a agonia de um peixe se debatendo
e morrendo dentro do barco
junto dos outros já mortos.
Fiquei ali,
estacado, com muita pena do bicho,
como se ele fosse gente, meu parente
irmão ou eu mesmo, sabe-se lá, cruz credo!
Tudo está ligado – disseram –
como numa rede.
Mais do que nossas explicações,
os mistérios são maiores.
Me benzi.

27 setembro 2007

Misteriosas estrelas

Há um anúncio de tempos difíceis
e dele apesar umas misteriosas estrelas
brilham por detrás da fumaça, do cobre, do sufoco
do fogo que faz um buraco no peito, na atmosfera,
que gela as extremidades e degela os pólos.
Eu sumo de mim mesmo por este mundo que esquenta,
ou eu somo e conto os dias que podem ser lindos
e me empenho e me levo a rasgar o véu
para enxergar – escrevendo –
nas estrelas algo que ainda não sei?
O que escrevo não será o pão para o faminto
não será a água na aridez dos tempos
não será nada, nada, nada.
Será o respiro desse que olha
as estrelas por detrás da fumaça
do cobre, do sufoco e do fogo.

24 setembro 2007

Contentamento

Que espécie de contentamento é este
que experimento assim sem entender,
quando o tempo alcança setembro
e esparrama-se em mim sem pressa
doido pra saber o que ando fazendo
que amor ando vivendo
e pra quem vou oferecer
o que a primavera me der.

23 setembro 2007

Ah, o interior...

Ao abraçar minha mãe
- arcano do céu desvendado em amor cotidiano -
senti na sua pele branca de mãe italiana,
vindo do interior do seu coração,
o bálsamo indescritivelmente bom
de salas com tetos altos, janelas amplas,
portas abertas, acolhida certa,
horta orvalhada, montanhas altivas...

... e lembrei,
forçado por movimentos agradáveis no peito,
do interior do Estado do Espírito Santo
de onde migramos nos anos setenta.
Vitória, ó cidade de Vitória!
Uma das mais lindas do Brasil.
Tu és agradável aos olhos como uma visão de mãe,
mas o interior, o interior do Espírito santo,
ah, o interior...
... é Deus.

22 setembro 2007

Canções que não se repetem

Uma poesia se dará quando
ao andar na rua apressado e cansado
na claridade despercebida e linda, mais que a do verão,
os olhos se abrirem em insólito encontro
com o ipê desfolhado, feio e torto,
tocado pelo vento de setembro,
se preparando para florir.
Mas ao perceber a singularidade do momento
e ao voltar os olhos para a mesma cena
ela já será outra,
demudada num segundo
desfeita e refeita em outras
canções que não se repetem.

19 setembro 2007

Se não posso ser muitos, o mesmo é que não serei

Quando as letras se levantarem no horizonte em frases
trançarei em vingança cada palavra na areia para ver
o que restará quando a maré encher
e levar, apagar, essas letras desgarradas
que se negam a construir meus outros eus
visto que decidi ser mais que um
e escrever vários poemas ao mesmo tempo.
Mas meus olhos se gastam nesse azul lindo sobre o mar
e me canso das madrugadas não dormidas
acocorado sobre o morro dos reis magos
esperando essas letras que demoram além da paciência.
Embravei-me e desorientado digo,
não procurarei mais nenhuma palavra,
pois que há outro perigo em avizinhamentos
a me pedir urgência em decisões.
Não darei distinção a nenhum sentimento
só escutarei e perscrutarei o que vem subindo,
aparecendo, tecendo uma rede, alinhavando o chumbo nas franjas
e que se arremessa ligeiro sobre um corpo que é o meu,
peixe que sou eu preso de mim mesmo,
vazio de novas, distintas, líricas expressões.
Porém, tenho nas mãos um canivete afiado pra romper essa trama.
Aproveitarei as linhas e debocharei das palavras, que já serei outro
com asa e tudo, pronto pra me mandar.
Se não posso ser muitos, o mesmo – presa fácil – é que não serei.
Haverei de pegá-las no ar e acertarei contas com elas,
escrevendo naquelas linhas entrecortadas um conto sem sujeito
e morrerei de rir.

17 setembro 2007

O que dói

Quando qualquer coisa assim dói
e não se sabe onde,
nem no corpo é,
tampouco no outro lado dele
que se diz alma,
é no fim do dia que dói,
pois que o dia é parte da gente
é o membro que não se sente,
mas dói.

16 setembro 2007

Cordas de violão

O homem na noite longa
pensa e pesa.
O filho não chega da casa do rei
que não tem coroa, dinheiro muito é o que tem.
E armas também.
O sono pesa, na água afunda, os olhos fecham.
Uma música salvará a vila.
A música que ninguém conhece.
O menino gosta de violão,
quer voltar a tocar.
Há de comprar novas cordas.
Mas ele anda muito ocupado
a serviço do rei. Agitado, assustado.
Ninguém canta, os monges tentam, mas não funciona.
Que monges, que nada! É a tv.
Os demônios se alvoroçam, fazem ouvir seu murmúrio zombeteiro.
Algo reage, a alma quiçá, ou o que está nas vagas
entre o coro dos monges e o coração.
Quer subir, abrir as asas, voar sobre a cidade
e descobrir onde o menino está.
Estampidos, música de demônios.
Estampado no chão. Mãe assustada, pai cansado.
Esperança? Não, nenhuma. Mataram mais um.
Na porta de casa. O filho talvez.
O menino se debate, sonha que na água afunda
- o mar é vermelho -
e quer acordar
pra subir,
subir
com as cordas nas mãos.

13 setembro 2007

Andante

A lendária ruína se avistava de longe
bem no alto da montanha infecunda.
O andante perguntava que ilusão aquela teria sido
de construir em região tão deslembrada,
só trilhas, montanhas escarpadas, terra batida.
Com o eco a pergunta voltava e batia nele com força
indagando sobre a jornada aquela mesma que ele fazia,
feita por outros, decerto perseguindo os mesmos horizontes.
Ele não sabia a resposta, não cantava vitória,
seguia na luz daquele dia.
Cada passo sangrava o caminho conquistando territórios
onde só uma labuta seria possível.
Nem vinhas, nem trigo;
nem girassóis, nem milho;
nem abelhas, nem papoulas;
nem criação de ovelhas, nem de cabritos;
nem construção de santuários, nem de guaritas.
A única faina seria a daquele dia:
seguir, segundo a instrução recebida,
sem perda de tempo,
atravessando o vale,
assobiando,
se possível.
A lendária ruína já se avistava de perto
quando o andante perdeu o passo
e deu de cara com um diamante.

11 setembro 2007

Ou

O que diz,
o que grita,
o que conta ou explica
esse sobradão italiano na foto envelhecida?
Casa de onde saiu minha mãe querida pra casar.
Casa de travesseiros cheirosos, leite e pão
e muitos risos.
Ali ele está no interior do estado brasileiro que é do santo
ou do espírito.
É a singularidade não destacada
ou a beleza despercebida?
O delírio desiludido e nostálgico
ou a cristã esperança assumida?
Deve ser só minha sede de vida nova
espelhada na antiga.

Ou...

09 setembro 2007

Festa da poesia

Inhames, inhames, inhames.
Tive que repetir estas palavras
para me tirar do chão.
Inhames, inhames, inhames.
Procurei na repetição a poesia única
que me levantasse o olhar.
(como é triste sofrer de olhar-caído).
Inhames, inhames, inhames.
Levantei-o com custo.
Foi difícil romper o anseio
de dormir, de ficar, de não ir à festa da poesia.
Além de falar, e sem forças, comecei a escrever.
Inhames, inhames, inhames.
Minha mão não queria parar,
havia um silêncio que me prendia
e me construía com cada letra de inhame.
Ao final, minha outra mão me interrompeu e
me apontou uma jurisdição de mim mesmo
alagada, iluminada por um “sol”
(usei as aspas para parecer que o sol brilha)
e uma imensa plantação de inhame.
Ah se o inhame enflorasse!
No ritmo dos anos 80 (lembra?) comecei a cantar.
Inhames, inhames, inhames.
A poesia apareceu, aconteceu.
Não por que cantei, mas o inhame enflorou.
Infames, aceitos, rizomáticos desejos de sei-lá-o-quê
e outros tantos; o que foi e o que vai ser,
flor-de-inhame.
(maravilhoso mundo das palavras,
da escrita que redesenha o mundo,
desafia a deus, desdenha da morte
e faz a festa)

08 setembro 2007

Desaguar numa nova manhã

A estranheza do olhar
não está no rio no-fim-do-dia,
na tarde feita de escória de cores.
A estranheza está no que se foi
no que ainda não veio,
no fora que já é noite, entrementes.

Eu me imaginei firme como uma rocha
um São Pedro-de-botas
altivo e feliz.
Sou só a dobra dessa noite fora,
fluidez e acontecimento,
que se faz sentir como um rio.

Não é sem sangue
que me reviro de um lado para o outro
em lençóis suados
em cada palavra escrita
para desaguar numa nova manhã.

05 setembro 2007

Interstício

Estou num interstício
indo e vindo
procurando resistir.
Não crio nada de coerente
só me debato contra as correntes
sangro e choro esse desejo
que me impõe um aqui
me inventa
venta como deus
me sopra nas narinas
e me faz “feliz”.
Me produz entre aspas
me cobre com uma capa
E me diz:
desapareça

31 agosto 2007

Carros abandonados

Esta terra está cheia de sonhos despedaçados.
Cada vale, cada vala
se entope dos seus pedaços
enferrujados
deixados ao léu.
E os novos são amontoados
por todos os lugares
embora os velhos não se tenham ido embora.
Demoram-se em decomposição lenta.
Ficam.
São fantasmas os sonhos
- carros abandonados -
alguns ainda lindos.
Nós que agora vivemos
(quer palavra mais feia do que essa que nos define:
consumidores)
como vacas que pastam;
sonhamos os sonhos dos outros
pensando ser os nossos.

30 agosto 2007

Reflexo

Me doeu na alma o reflexo na lâmina do rio
que neste deserto corre como se fosse uma canção de ninar
na voz de uma velha , bem velha mulher .
Terá O Filho passado por aqui quando caminhou na terra
e enxergado O Pai-do-céu pelo céu que se vê ao olhar pro rio?
Bem poderia ter sido desse modo,
o que explicaria minha dor agora,
além da secura na garganta
e do desatino do viver.
Na agonia da sede, antes de beber
me dei tempo de olhar e vi
no reflexo o que não esperava ver.
Um olhar (Do Espírito?) que ficou aqui
nas águas, nas pedras
nas ervas, no limo
no fundo.
Não, de Deus não,
me engano e me iludo.
O que vi foi meu próprio olhar
- e como me dói.
O deserto me fez seco
e áspero como as pedras.
As viagens são fundas e curtas.
Meu olhar é opaco de inveja
desse rio que atravessa o deserto
e se espalha raso-calmo
só para espelhar o céu.

27 agosto 2007

Na margem desse agora

Essa água escorre e vai
pelas costas dessa Gaia velha
e se desperdiça em voltas e curvas
num caminho que se assemelha ao meu.
A parecença fica por aí,
pois do milagre que a Gaia velha faz
- que se mostra na montanha corroída e áspera
gemendo em gozo por séculos
nesse lindo filete d’água -
eu não sou partícipe.
De dias pequenos é que sou comparte.
Nem reparam nos meus anseios e já passam
um depois do outro
antes do fim do meu gozo escasso.
Destituído da conivência dos dias que se seguem, falho.
Não canto a música que tocam,
não choro a mazela que anunciam,
não engulo a batata-frita que comprei,
olho a montanha e não fico zen.
Fico assim,
nem dentro, nem fora,
na margem desse agora
que já passou.

22 agosto 2007

Trilhos

No descanso pensaste
escrever um poema
e quem sabe encontrar
a leveza de um momento
nessas horas, tantos tormentos.
Mas o que veio foi um trem
pesado e forte pela mente
atravessando sem piedade.
Ficou a imagem,
dos trilhos brilhando por cima
onde o atrito se dá
e a ferrugem embaixo
onde o ferro e a madeira fazem um pacto
de indiferença e frieza.

21 agosto 2007

Hora morta

Aquele anjo naquele barco,
lindo porto-só-desconsolo,
porão vazio, alma parada, maré subindo.
Navio sem carga, recordações,
hora perdida na madrugada.

Aquele beijo naquela noite,
a maciez na mão sem tato,
o desejo aceso, o ato.
Depois o sono veio pesado
e veio mesmo prendendo a mente,
inviabilizando qualquer poesia.
Ela esperava uma palavra
depois de tanto sexo sem expressão.
Nem antes, nem depois, nem quando os dois
passeavam pela beira-mar,
e ela ensinava desesperançada
- a boca há de falar do que o coração se abarrotar.
No ultimo espasmo do gozo farto
o pensamento deslizara em intenções:
usar aquele barco, aquele anjo,
juntar cenário, verbo e sentimento
num belo jeito de dizer “te amo”.
Barco e anjo mal pintado foram dar no sem-fim-sem-nada.
Nada durou, ela cansou e foi-se embora.

Da tal morta falara um dia o amigo.
Ele desconhecia tal expressão.
Sabia agora, mais do que sabia, sentia
o cais, o navio, a maré,
tudo a acatar a hora,
a de agora
a morta.

20 agosto 2007

Maçãs e percevejos

Me dobrei de dor,
de não saber,
de querer saber.
Nessa luta que não acaba,
poder que perdi.
Ganho que tive foi ser
sei lá, quem se vê.
Me vi sozinho aqui
e não tive outro sonho
senão o que me acordou
enquanto me perguntava
quem eu era,
ora essa!
Quem era esse
Eu.
Me dobrei mais que pude.
(Sentir a dor
me é dado poder).
Me dobrei por dentro
e apareci por fora
e descobri na hora
replicada em tantos instantes
que sou um feixe
desarranjado de linhas,
emaranhado de desejos,
maçãs e percevejos.

16 agosto 2007

Pronunciar o silencio

Quis pronunciar o silencio
e disse para mim mesmo,
o silencio.

Outro desejo surgiu,
quis dizer el silencio.
Assim em espanhol me pareceu
nome de vale.
Não era o que eu queria.
Que querer é esse?

Procurei outras línguas,
nada aconteceu.
Voltei à língua mãe,
ao silêncio.

(cetim, lã, algodão, veludo)

14 agosto 2007

Escorrendo em prata

A vida anda escorrendo em prata
mas é chumbo derretido, ao invés.
Tem uma aparência de brilho que ilude
mas logo o peso do chumbo imprime seu cinza.
Fica para lá do horizonte barrado
aquele sol que ainda brilha na dor.
Essa consternação de viver sabendo
que não há transcendências no chumbo
não me permite o engano.
O chumbo escorrido como se prata fosse
faz um vale devaneante para olhares compassivos.
Eu vejo o que não desejo
e lamento o mundo
que longe, longe ,
se mostrava em profecias ruins,
mas no instante da respiração presente
é o dia que chegou concreto
sem qualquer chance de fuga.

13 agosto 2007

Para lá das dunas

Sou um templário perdido
bem perto de Jerusalém.
A cruz no meu hábito se apaga,
me apago
como fogo de acampamento
que abandonei.

Sei que pedis mais
do que meus passos agora podem andar.
Pedistes honra e te dei.
Pedistes pureza e me mantive assim.
Pedistes coragem e lutei.
Mas agora
Jerusalém está ali,
vazia.
Descobri que estais
noutro sitio, para lá das dunas,
lá onde as crianças choram.

12 agosto 2007

Réquiem besta

Tu és uma semente
que caiu bem longe
de onde poderias criar raízes.

Caíste no meio de umas formigas
fortes, fedorentas, valentes.

Pegaram-te antes que sentisses o frescor da terra
e tremesse dentro tua força
no desejo por terra, sol e água.

Elas te levaram e eu te acompanhei.
Queria te libertar, mas como?
Tu serias uma bela árvore.
Rezei para que tua pele endurecesse
e lá no buraco elas não conseguissem te mastigar.
Num dia de chuva a umidade chegaria
e tu explodirias todo o formigueiro com tua força.

Entretanto,
teu broto é tenro,
tua raiz saborosa.
Não tem jeito.
Não me escutas, pois dormes feliz.
Para ti canto um réquiem besta
tropeçando minhas patas
nas patas de outra formiga
- outra escrava -
que mais doida e obstinada do que eu
segue seu destino e teu enterramento.

11 agosto 2007

Um corisco no chão

São pedaços,
cacos,
fragmentos de sonhos
o que tu vives.
Eu sei, pois estou fora deles
- rocha que sou.
Falo de dentro do céu
de onde qualquer pedrinha avista
o limite da tua ilusão.

Vai,
goza,
verás que tudo foge
no instante que tens
e que não terás.

Mas..., tu não sabes
e eu confesso:
É o despeito em mim.

Tu não conheces mais a aspereza que pesa
nem o silencio do espaço.
Rocha não és mais.
Ah, desejo uma explosão
que me faça cair
- rocha rodopiante e sem rumo -
em chuva de fogo sobre o teu planeta.
E como pó, mineral
que teu sangue precisa,
plasmar o coração do filho que conceberás
e através dele olhar para o céu
pra projetar nele
o que só na terra se encontra,
o paraíso onde as rochas
ganharam alma
e perderam o silêncio.

Um corisco no chão,
- sou ..., meu Deus! -
por isso essa ânsia aqui
e a barulheira que escuto,
palavras dentro de mim.

Ah, tu conheces um mestre
que ensine a um aturdido humano
a esvaziar a mente?

10 agosto 2007

Esqueço o poder dos espelhos

Quando estou com os jovens
sofro de um mal, uma síndrome de esquecimento,
não um qualquer.
Nem deficiência de memória é.

Esqueço o poder dos espelhos.

Mal me vejo.
Somente sinto o empurrão
como se eu fosse um filhote já bem penado.
Os pais com o bico jogam-no
para fora do ninho,
para o vazio do ar
e para o prazer do vento.

07 agosto 2007

Nascer

Acordei
e um clarão invadiu minha consciência.
Compreendi tudo num instante
naquele mesmo em que tudo esqueci.

Ficou uma nostalgia
cor de tarde oca,
fim de dia longe da família,
entrada de noite sem festa e sem fogueira,
fria.

Acordei e sei
Que caí numa hora
nenhuma daquelas do relógio.
Hora de dor
de quem nasce já tendo nascido
sem nunca jamais entender
que nascimento foi esse
e para quê.

Acordei e decidi
recolher nos campos do meu vagante rumo
em meio ao joio farto
cada poesia, único grão
para o pão capaz de me nutrir.

Amor, o mar

Doido, sentia-se,
desorientado, andando apressado
na tortuosa e curta imensidão da vida.
Um poema feito de vez.
Os pés empoeirados,
descalços e mais grossos que o solo,
vencendo com intrepidez
a aspereza do cascalho.

Onde a palavra podia ser outra
ficou aquela mesma.
A primeira, não pensada,
insurgida de súbito
sem escolha, sem melodia,
como um grito farpado
de dor.

Dor, amor, o mar.
Quem sabe essas palavras
façam outro caminho.
Ele tem que seguir,
ou perseguir, distante verso.
Na praia, talvez,
ainda construa uma casa.

01 agosto 2007

Trocar de olhar

Essa viagem longa
- por entre paisagens cinzas,
rios sem água,
que se avistavam por seus olhos -
fazia-o pensar que outro dia seria outro peso,
na mesma sina de ser infeliz.

No entanto ele ouviu uma canção sem graça
que vinha chorosa sabe-se lá de onde
de um vazio qualquer,
de um porão sem entrada de luz
ou de um peixe agonizando fora d’água.

Depois de tantas viagens,
Ele ouviu.
(Antes tarde do que nunca).

Ouviu e decidiu que choraria com a música.
Sim, choraria por ter perdido tanto tempo
em acreditar numa sina que o fazia viver
uma vida infeliz.

Ele contou isso pra me animar.
Pra me convencer a trocar de olhar.
Mas, não sei...
Não sei se é tão simples.
Será que as cores correm ainda
por baixo da cinza,
dos leitos secos,
rios que outrora
foram as minhas fontes?

30 julho 2007

Estranha vida bela

A sala não comportava
a espera da noticia que o médico daria.
A morte chegara
pra levar ao “Tudo” mais um.
Mas ainda não.
Para lá da porta tentavam
o resgate do respiro e do tambor do coração.
Tentavam espantar para longe aquela cor
E a imobilidade do corpo.

Na sala de espera só ela.
Ninguém mais ocupava lugar,
senão ela, a espera,
que apertava o coração,
o baço, o fígado, o aço dos nervos
e compactava a vida toda num momento só,
de solidão.

Nesse momento
de minutos maiores que um longo ano ruim,
aquela porta de duas bandas se abriu,
o médico apareceu e deu a boa noticia:
A vida venceu.
Que alívio!

Na infinitude das eras do universo
O pouco de tempo que se tem com a vida
não permite a ninguém
ter todo o conhecimento dela.
Estranha e bela sempre será.
Em verdade, em verdade lhe digo – me disse a vida –
tudo passará e o Tudo chegará.
Mas tenho minhas desconfianças que o Tudo seja nada.
Perdoe-me o medo, ó Tudo!

28 julho 2007

Fogo abortado

Sei não...
minha religião é outra.
É qualquer coisa assim
que diz que é perda de tempo querer ser alguém.
O segredo é ser ninguém,
e pegar todo mundo de surpresa
com um belo poema
que pareça inspirado
mas que foi escrito com lascas de pedra
noutra pedra
de onde surgiu um cheiro forte de fogo
abortado.

26 julho 2007

Entre uma coisa e outra

Entre uma coisa e outra
se via exausto
como se a energia do corpo
tivesse se posto com o sol.
Mas havia ainda muito trabalho
a ser feito naquele computador.
A ponte já se iluminava linda.
Avistava-a do prédio,
e ela se assemelhava a ele
entre uma coisa e outra.
Contentou-se por um momento com a semelhança
e esperou como quem tem fé,
que uma beleza se revelaria na sua vida comum.
Talvez ele conseguisse chegar à garota,
quem sabe a loteria acumulada seria sua.
Algo extraordinário de bom viria,
dessa vez viria,
como Deus na vida do arameu errante.
Logo se desencantou.
Percebeu que a ponte ligava
e ele perdia-se
entre uma coisa e outra.

25 julho 2007

As palavras tiram o peso

Sou daqueles a quem se fala para não ser entendido.
Mistério este não sei entender mesmo – a vida.
Nem viver.
Vou levando como se diz
e me engano com o escrever.
É quando desatino em viagens,
esqueço de mim mesmo.
Minto, não esqueço.

Miséria! Nunca esqueço.
As palavras tiram o peso.
Só isso. Por uns momentos
entro em outro mundo bem alto
de onde o tombo é certo
e me quebro todo.
Depois não me colo,
sou colado pelos dias que se dão
e se dariam sem mim.
O sol se levanta e se põe ignorando-me,
completamente.
Tenho que resgatar a noção de ser alguém
especial,
nem que seja para um Deus
todo cheio de amor por qualquer um.
Até por mim.

24 julho 2007

Fragmentos 2

Encontrei uma criança que me quis abraçar.
Agachei-me e ofereci o que não tinha,
um calorzinho de amor.
Ela gostou e eu senti seu cheiro forte de suor
de quem tinha corrido e brincado muito.
Não chorei nem vibrei de emoção.
Foi só um abraço bom,
sem ser benção,
sem ser maldição.

23 julho 2007

Fragmentos

É a sombra de março que vai indo.
As sombras das esperanças que se foram no início do ano.
Nem penso mais no retorno delas.
O que penso é que terei um abril – o mais cruel dos meses? - pela frente.

Tenho que esquecer o mês que vem.
Um cachorro late lá fora.
Mas, como vês, ando confuso,
Especialmente sobre o lado de fora e o de dentro.
Onde late o cachorro?

Apavorado

Ele está apavorado
e de pavor pensa.
E de pensar anda cansado,
um cansaço que dói
num lugar da cabeça.
Está apavorado e já pensa
que é assim
de natureza, apavorado.

Não anda com sossego.
Cada rua é um medo.
Cada olhar uma intenção ruim
de assalto, de arma e punhal,
entre tantos outros medos
de avião,
de avc
de câncer, da morte e
de sofrer.

Nuns momentos só
do pavor se sente livre
quando procura palavras floreadas
para escrever poemas
que nunca saem do rascunho.
Palavras que como roupa de palhaço,
larga e estampada,
disfarça o pobre coitado que está nela
tremendo no trapézio
diante do salto - obrigação sem recuo -
apavorado,
todo dia,
até a morte.
Ah, vida!

16 julho 2007

Diante dos olhos

Um momento qualquer
sem valor e distinção
é o que agora
aparecerá diante dos olhos.
Dos seus ou dos meus, não sei.
Os meus
de indignação um dia estiveram cheios,
agora de rotina é que estão
e desde sempre esperaram
aqueles momentos especiais
que nunca chegaram.
(melhor seria dizer, ainda não)

Desprezo-os agora
e aguardo somente
os bastardos,
vulgares e inexatos momentos,
descalços, sem fundamentos,
iguais,
que tem feito minha vida
uns passos curtos
dos grandes sonhos que calcei.

Terei olhos para o perto,
esquecerei os cenários horizontais
e escreverei com força
as histórias de um vendedor de sapatos.
Ele vivia num lugar de sol dourado,
que brilhava sobre esgotos.
O resto da história é sobre suborno.
Muita lama na vila
onde todo mundo precisa
e nem todos tem
botas.
Que bos......!

Outro dia no cais

Outro dia no cais
ouvindo um outro
que contava uma história
me dei conta de que eu sou eu.
Me assustei comigo mesmo,
esse estranho, velho salmourado, mudo,
cheio de maldições.
Reparei atônito
– Barco pequeno em mar sem vento –
que minhas palavras adormeciam
em cela úmida e mofada
– velas murchas e caídas –
esperando o sopro
e o céu da boca
onde o eco se daria
fazendo duas
o que no peito era uma:
a palavra que voaria
– gaivota sem rota certa –
e a outra que ficaria
encravando-me em mim mesmo
– âncora pesada.
Preciso contar minha história,
mais pelas maldições de velhos marujos que ouvirei,
que como eco, talvez,
ganhem de anjos do mar
vozes de bendições.

11 julho 2007

Escrito por debaixo do sangue

Entre livros antigos
naquele prédio decadente
do centro que não é mais,
com as narinas cheias de mofo
ele escrevia e rezava.
Apesar do século vinte e um
parecia um monge medieval.

Mas a era da violência
veio sem pena dizer-lhe
que acabara o tempo das rezas.
Era a hora de passar o dinheiro,
rapidinho,
e dizer amém.

O assaltante tremia,
o revolver não perdia,
no entanto,
a direção.
Foi uma bala só, no coração.
O jornal diz que o corpo ensangüentou
um caderno com muitos escritos
que ele segurou sobre o peito.

Ninguém ficou sabendo
quem matou o pobre homem.
Mas há em mim um desejo que não entendo.
De que me interessaria saber?
Descobriria eu algum parentesco com o morto?
Pois é este o desejo: saber
o que esteve escrito ali
por debaixo do sangue.

09 julho 2007

Sentimento de pedra que afunda ou de água que não se altera?

Água rasgada por pedra que afunda
é o que é a vida.
Uma tarde sem graça, perdida,
esgarçada pelo vento da frente fria,
- Também assim poderia definir a vida -
é o que ele vive, do caixote sentado
em frente ao banco do Brasil
onde vende filmes,
cópias piratas,
baratas.

Ele vê todos os filmes
para comentar com os clientes.
Mas nenhum filme lhe tira aquele sentimento
De pedra que afunda
na água que não se altera.

Ele treme de frio.

05 julho 2007

A eternidade vem atrás

Nenhuma eternidade é maior
do que aquela que se deu
no dia que acabou.
Que pena!
Nunca mais será o que foi.
Esse dia ficara eternamente no passado.
Preciso dizer adeus
com bom humor.
Entregar ao tempo o que é dele.
Deixar ir e não sofrer
por outro dia que virá
e se irá
Ate que me vou,
eu.
Por um tempo pensei a eternidade como algo à frente
Agora sei,
o que vai à frente são os sonhos.
A eternidade vem atrás.

03 julho 2007

Luz do fim do dia

Aquela luz do fim do dia
Por detrás das montanhas
Anunciava a separação.
Mas ele continuava acreditando
E acendia a lamparina
E rezava sem muita fé
A mesma ave-maria.

Quando veio a separação
Aquela luz do fim do dia
Parecia ela mesma,
Dispensando a lamparina,
Rezar aquela mesma ave-maria.

Então ele se foi
Lá pro boteco do Josias
Entre um trago e outros tantos
Ver se agüentava aquela hora
Em que a luz se amarelecia.

30 junho 2007

Onde fica o céu

Se alguém quiser saber
onde fica o céu
tem que procurar bem
entre as pessoas.
Se bem que também ali
é onde está
o quinto dos infernos.
(Meu Deus, onde se escondem os outros infernos?
Livra-nos de todos).


Como céu é coisa de Deus
Ele – é claro – não fez só um.
(há pelo menos sete)
E espalhou-os, todos,
entre as pessoas.
Talvez o mais bonito
seja aquele que se avista
pela fresta de um olhar
de mãe.

29 junho 2007

Essa solidão me passa

Essa solidão me passa
como estrada do interior
onde, na curva, ela se aproxima do rio.
Ali, onde se pode beber água
e os mais corajosos podem mergulhar.

Mas eu,
eu não faço nada,
me basta olhar pro rio
num tempo que não se marca,
relógio que não corre,
água que nunca chega ao mar.

Só quero me sentir só.
Sem saudade, nem desejos,
sem sofrimento e sem prazeres.
Comandado pelos olhos
parados,
fixos,
a cumprir outra função
que não a de enxergar.

Mas logo
a solidão,
a estrada,
o rio passa.
A vida volta,
de cheio.

E aqui, é um vazio só.

27 junho 2007

Correria

Você tanto corria
Entre um compromisso e outro
E na hora do almoço
Mal comia e lá se ia
A pagar as contas
Como se penitente fosse
De uma culpa que não sabia.

Na verdade você queria
Só um tempo e voltar para casa
Mais cedo que de costume
e compor aquela música
Que como água que vaza e pinga
ia tocando em sua mente
insistentemente.

De repente o tiroteio
Você no meio sem entender
O assalto, a polícia, o banco cheio.
De pavor você se viu
Morto e estirado; e a vida?
Ah, a vida só dissabor e trabalho.
Mas nenhuma bala lhe matou
Senão à musica que parou
De tocar.
Que alívio!

Em casa com o violão
Depois de tudo e do susto grande
Você tentou e tentou de novo
Aquela música que se repetia
Com ritmo, melodia e letra
Como água que pinga e vaza
De torneira velha que não se fecha.
Que nada!
Nada, nenhuma palavra, nenhum som.
Só uma irritação
Pelo mal do dia seguinte
Tudo igual
A sempre.

26 junho 2007

Filhos da satisfação

Poesia,
Ah, poesia,
Qual sua serventia?
Só serve pra quem escreve.
Uma ou outra
Cai no coração de quem lê.
Poesia é como espermatozóide
Você ejacula muitas
Para, quem sabe, uma
Fecundar um coração.
Mas eu não me importo
Que o que busco mesmo
É o gozo.
E se eu tiver um filho
Ele será o filho
Da minha satisfação.

Secreções

Escrevi umas palavras
Num lenço de papel
Escorridas de repente
De uma febre-de-dizer.
Alguém em mim queria
Expurgá-las lá de dentro
Sem que me tenha dado
A noção de compreender
Essas razões irrazoáveis
De falar quando o silêncio
Seria de sábio o bom conselho.

Não corria bem a caneta
Por entre as flores brancas e mais flores
E rasgava em vales secos
Trechos incompletos.

Quando tudo estava posto
E precariamente concluído
Pude ser sem muito zelo
Meu primeiro leitor.
Fiquei leso, frio, gosmento.
A secreção escorreu
O lenço sem remorso
Voltou a ser o que era
E eu já não eu.
Tantas vidas

Já vivi tantas vidas
E vivendo discordo
De que se vive uma só.
Vivi já tantas vidas
Neste mundo aqui mesmo
Assim sem ter que morrer.
Bem não nego é bom dizer
Que outras mortes já vivi.
Vivo continuei aqui
Em cada morte nasci.
Para viver mais até
inda que carregado
De brilhos apagados
Que nos olhos revelam
Quantas mortes já morri.
Olhar que gasta

Com aquele olhar assustado
Meio aceso
Meio apagado
Entre as inocências
E as maldades
Tinha aprendido a falar sem usar palavras
Não que as dispensasse
Articulando as estritamente necessárias.
Aquele menino
Gostava mesmo era de olhar
E de tanto olhar gastava a coisa olhada
Que seu olhar logo se desencantava
E não queria mais olhar.

Todos estranhavam
E profetizavam coisas ruins.
Os pais assustados rezavam
E no fim se rendiam ao seu olhar.
Era tão doce, estranho e distante.
É o olhar de quem vê a morte,
Esse menino não vai durar,
teimavam.

Levar pra benzer podia ser
Ou quem sabe pro padre rezar
Ou talvez fosse melhor inverter
E pedir a ele a benção.
Sei lá.
Vai que o menino é santo!
Cores

Meu Deus,
Eu só queria agora
Aquele caminho dourado
Com um sol de meio dia,
Daqueles de rachar
E alterar as células.
Só para andar por aquela estrada amarela
Com o velho guarda-sol do vovô.

Eu queria me ver,
Como se eu me assistisse na TV,
Pra ver o rosto dessa que passava ao meu lado,
Menino branquinho, magrelo, feliz
Esquecido do recado a levar
Naquele vale verde de vários tons
Brincando com o guarda-sol fechado
Chegando em casa vermelho como um pimentão
para ouvir o brigueiro da mãe.

Ah! Nem ouso dizer seu nome
Essa que passa e nem avisa
E quando se percebe sua passagem
Já vai longe
Na volta elíptica que faz
Quem sabe pra passar de novo
Um dia assim
Tão perto de mim.

Com que cores, oh Deus,
Pintareis esse outro dia?
Um verso

Uma palavra, um verso
é o que tenho agora.
Nem sentimento,
Nem pensamento
Dentro.
Tudo fora.

No mundo.
E eu aqui dentro de mim
(Único lugar que não é
Lugar do mundo.
É outro universo
Uni verso)