31 agosto 2008

Os passos mais criavam a queda do que um caminho,
mas ele seguia como se abrisse uma estrada.
Corria no estômago uma fome navalha
uma fome cortante que nem um pão sacia,
e para além do que ele podia ir, caiu,
espatifou-se com a cara no chão e se viu,
por um instante se reconheceu no rés,
no destino de chão, no gosto de sangue na boca e poeira.
Passado o instante voltou a agonia
de correr, ir e saltar sobre o precipício
como se o correr e a agonia formassem penas,
... e leveza.

29 agosto 2008

Passeoabadá.
Hum?
Passeoabadá.
Hum?
Passeoabadá se não te dou um tiro.
Logo ali na no porto o minério caía sem parar
no porão do navio.
Passeoabadá.
Hum?
Passeoabadá.
Hum?
Passeoabadá se não te dou um tiro.
Logo ali na ilha a rainha se preparava
para a festa.
Passeoabadá.
Hum?
Pápápápá...
Dois tiros na barriga,
16 anos,
correria, hospital, a rainha
de nada soube, o navio se foi.
Tudo continua.
Hum?

26 agosto 2008

Arde, queima, incendeia-me,
procuro nas mãos, no peito,
por dentro, por fora,
ontem, agora, e não encontro,
até que me dou conta que está nos olhos
este fogo, este ardor,
nem de dor, nem de amor. De algo triste,
sem ser de tristeza mesmo que me entristeça.
Procuro um livro, uma aventura,
um café, uma quentura, outra
que não esta que me seca os olhos
e me expõe aos outros,
nu, maltrapilho, maldormido.
Sem sonhos me escondo,
chamo as palavras, nada fala,
de nada falo, não sei o nome, o que sinto
é o silêncio que vem das estepes, parece,
cinza como lobo, olho que arde
quando olho pra dentro vejo cinza,
vejo fora, arde, queima o que resta, enfim
...
o silêncio cinza-me pelo chão.

Um vento bom sem pretensão
passa e levanta-me no ar...
É a "deixa" para eu renascer.

24 agosto 2008

Eu sobrevoava as plantações onde trabalhavas,
te via correndo e acenando
pela alegria de me ver passar rasante
e ficava tão feliz lá no alto.
Agora não queres mais sair de casa,
não te vejo mais, voei demais, cansaste.
Adoeceste Anda.
Terá sido o pesticida que eu borrifava sobre as plantações
o causador desta falta de desejo de andar?
Mas se fui eu, minha querida Anda,
deixei de voar;
o que quero mesmo está aqui no chão,
é a estrada que juntos vamos trilhar.
Anda, minha querida Anda,
vim correndo só pra te dizer isto.
Te amo Anda.
Anda, levanta, vamos...

20 agosto 2008

Agitei o espírito em olhares rápidos,
abri a porta em duas partes azuis.
Entrou um ar de terra seca e ardida,
um ar de agosto bem longe, distante
tempo que agora só existe no coração.
Veio um pó de sustos e espantos santos,
o que eu não sabia que batia à porta,
me batia, ferida que no susto não sangra,
por entre as partes da porta que eu via
esta espécie de amor nunca esquecido,
lembranças, outra era a porta que se abria:
eu me via menino ao te ver linda chegar
da cidade com os braços cheios, embrulhos caindo
para cada um, nada esquecido, um tecido,
um par de sapatos ou outra coisa,
pouco dinheiro muito bem dividido.
- Mãe!

19 agosto 2008

Ele voltava da festa,
assaltado com os amigos,
se apavorou, demorou para entregar o carro
e levou um tiro. Um tiro na nuca.
Um frio na espinha.
Os olhos se cobriram de nuvens.
Não se viu mais o coroa de luzes
na curva da ponte
nem no alto o santuário.
O sonho de todos os tempos passados
de todos os astros e fogos
condensados naquela vida
acabou. Agora tu
que te encontras comigo pelo olhar
nesta história que conto
terás que andar com mais esta dor.
Isto não tem poesia.

14 agosto 2008

Do instante a porta é o coração.
Do coração o choro é a explosão.
Da explosão o redemoinho é a embriaguez.
Da embriaguez a taça é a razão.
Da razão a melodia é o pensamento.
Do pensamento a catedral é o instante.

Da catedral o instante é a porta.
Da porta a explosão é o choro.
Do choro a embriaguez é o redemoinho.
Do redemoinho a razão é a taça.
Da taça o pensamento é a melodia.
Da melodia o instante é a catedral.

...

Escolha um dos cartões de embarque acima
e boa viagem.

13 agosto 2008

O sujeito vinha, vinha
sobre o seu cavalo vinha
e vinha cada vez mais
chegando determinado
ao horizonte e o horizonte
não era o do nascer do dia
nem o do céu fechado
se preparando para chover,
era o horizonte
de uma tarde fria.
Eu era o horizonte.
Mas fiquei feliz
quando me encontrei comigo
que vinha.

12 agosto 2008

Quero - e é simples o que quero -
a liberdade - e é pequena a que tenho -
de escolher as palavras.
O silêncio avança e dança
sobre os despojos dos meus pequenos discursos.
O que falo destituiu-se de qualquer poesia.
É vazia e efêmera a teima de dizer.
Ponho aqui em vestes de letras
o que me impõe a natureza,
a necessidade de respirar.

11 agosto 2008

Há algo acontecendo

Resolvi fazer um dia de silêncio, mas sem exagero.
Um silêncio só de certas coisas, tão bobas,
que nem vale aqui a pena falar.
Se me perguntarem o objetivo de tal silêncio
direi que não sei.
Mas há algo acontecendo,
como uma mentira que vai se alojando no coração,
como uma coceira nos omoplatas,
o suporte da fantasia machucando
mas as asas se abrindo sobre a cabeça.
Isto é o que digo em certas dificuldades de explicação.
De outro modo digo do desejo de me abrigar
em sombras de árvores sem poeira nas folhas,
e mais não digo. Se tenho resultado desse silêncio
também não sei dizer, talvez mais tarde
quando a lua se levantar.
Mas ele já me cobre como um cobertor em dia de frio
com uma multidão de palavras guardadas ao longo dos anos.
A quentura delas sinto bem forte em toda a pele,
mas especialmente sobre os rins, sobre o fígado, sobre os pulmões.
Também me ardem os pés e os punhos.
Nos punhos sinto um abalo, um prazer,
um gozo, um contentamento que de tão rápido torna-se dor.
Então as palavras se derramam, entornam,
falam de visões de gente que nunca vi,
que não sei se viveram ou se vão viver,
e marcam minha insanidade em dizer poemas.
Meus poemas são mudos.

05 agosto 2008

Poema inacabado (de uma dor que continua)

Respingos brilhantes de gritos no chão,
gritos desafinados de dor, sem som;
gritos para dentro transformados em olhar,
olhar repartido em mil pedaços dizendo lições
com palavras tão fundas que ninguém consegue alcançar;
olhar que me olha com doçura e falta de ar;
olhar que me mata de amor sem amar, só me ama de olhar
sem saber que me ama, como o pão não sabe que é pão, e sustenta;
olhar de três anos, vida que começa e finda, criança
com uma doença incurável no pescoço, na garganta, na boca
que me olha e aponta, sem poder comer, para um pedaço de pão.

Meu Deus, meu Deus, me fizestes ver. Quisera eu vos fazer ouvir
os respingos que vêm do chão. Não consigo
mas teimo e digo se não me ouvis, desabafo, desabo em palavras,
em loucuras de falar afino meu brado em engasgos, mas falo:

Ó Senhor das grandezas e das imensidões
por que nos acendestes como fagulhas de estrelas
e nos permitis apagar em universos de escuridões?

03 agosto 2008

Chove pouco sobre os campos certos dias

Com o pensamento em ventanias
levantando poeira de paisagens ressequidas
cheguei ao prédio para trabalhar
por volta das sete e trinta de uma manhã bonita.
O rapaz da portaria, o sem nome, que vergonha,
acionou a cancela e eu entrei,
o cartão vermelho lhe entreguei e recebi o verde.
Eu lhe disse bom dia e ele bom dia, tudo bem?
No tudo bem o pé acelerava o carro e nem lhe respondi.
Segui para a garagem. Foi o começo do dia.
Chove pouco sobre os campos certos dias
que ressecos mais ressecos ficam ásperos,
mas sei cantar e dançar chamando chuva,
sim, sei cantar e dançar chamando chuva.
Por incrível que pareça, com prazer, não com sacrifício,
sei fazer chover. Que desculpa vou arranjar?

01 agosto 2008

Sem sino só sina

Pelo que já não entendo se o sino bate às seis da tarde
como vou entender a sina boba que as coisas têm
e as pessoas. Antes eu sabia eu pensava eu me prendia.
Hoje vejo passarinho solto me entendendo no que ele é
- pulsão para viver que tudo tem, até as pedras -
com pequenos vôos e aproximações
para dizer o alpiste acabou na vasilha no jardim.
O medo assomou nos arrozais bairro novo
antigo sossego, muita gente, meninos pelas ruas.
Um estampido me pegou em distração
quando eu dirigia com cuidado o caminhão baú cheio de leite
longa vida soda cáustica corroendo nossas tripas.
Um rapaz caído morto muitos tiros
no coração um só, sem perdão.
O pó o dinheiro, povo em volta pólvora sem explosão.
A gente também morre quando morre gente assim
mas depois esquece e vive em enganos
como se morto também não tivesse sido
naquela hora sem sino só sina. Quem são os assassinos?