23 fevereiro 2010

O último porto do rio
46

A volta para casa agora parece escorrer por um século longe, bem longe daqueles dias estendidos como roupa no varal logo ali no passado, ali onde a vida se ia estagnada, de casa para o cais, do armazém para casa. Alguns poucos dias se passaram desde o momento em que desci ao porto para ir me encontrar com Maria Júlia e atender seu pedido. Mas o tempo, corda atada aos tornozelos, se vai em friezas por vastidões do universo e nos entrepontos dos passos que dou. Não sei se o vinho ou o ar lavado pela chuva faz tudo ainda mais distante, impassível, os fatos e a vida dissociados, o pé se alevanta atrás e se apoia adiante nas pedras do calçamento da rua, o que foi adiante fica para trás, o que se baseou no chão volta ao ar, um avanço e um recuo na zona morta entre o agrado e o desprazer de mais um dia. Desconcentro-me do pensamento nos passos quando José Bento se despede, tomando o rumo de sua casa. Sigo pela rua abandonada e apenas o que quero é uma cama, o estirar-me sem anseios senão o do corpo que quer destituir a alma de seu comando deixando-a às tontas, desamparada, e o corpo fará da sua prostração o escárnio da agonia da alma em se ver sem o poder da vigília permanente, o farol apagado e ela vagante, perdida sobre o mar dos meus anos, perdida de seus rumos nos meus passos, inventando sonhos para não se desprender de mim. Dou-me conta de que estou sem as chaves de casa, a maleta ficou no armazém, ou no gabinete do juiz, Onde meu Deus? Volto ou arrombo a porta, uma janela? Paro. Olho para um lado e para o outro, alguém, alguma coisa poderia me tirar da indecisão, Maria Júlia em outros tempos ao meu lado diria vamos voltar, qual o problema? Aquele sorriso, borboletas amarelas e abelhas sobre a florada do cafezal em manhãs de sol quente depois de chuva mansa, me ajudaria. Volto sozinho ao armazém, sem resignação, sem revolta, alguém, insone, que olha por pequena janela e avista uma nesga de céu com uma lua esvaziando-se e traída pelas nuvens a deixá-la ora escondida, ora à mostra, despida. À porta do armazém sou invadido pelos olhos do menino, o filho do pescador, o feliz, e sinto seu medo, a escuridão como um poço profundo, um túnel imenso ali por dentro onde se escondem os que só se mostram por leves toques na pele. Encontro a maleta, volto para casa e desejo, volto apressado para casa com um desejo, não entendo, sonhar com a jaqueira mansa e amiga, a velha jaqueira cuja sombra ao cair da tarde chega, agora sei, para acariciar as mãos de meu pai, o rosto de minha mãe. Não me importa mais a cama, apenas a jaqueira.

19 fevereiro 2010

O último porto do rio
45

Algo em mim diz Acende um lampião, tateia pelo escuro seguindo a memória de passos passados e encontre um lampião. Outro em mim, destituído de vontades, se alimenta de uma consoladora repetição, uma engastada forma de fixar o tempo na calmaria, no frio de viver longamente um instante congelado, Fica quieto, fica quieto, fica quieto. A dor é maior que a inércia, sempre, a dor sempre vence, até perder de vez. Então, um tempo depois, ainda não de todo derrotado, a dor me põe no escuro dando passos certos pelos espaços dentro do armazém como se os passos é que enxergassem o rumo, os olhos de nada servindo, alcanço um lampião, o mais próximo, a parecer a vida imaginada em ilusões de conduzir os acontecimentos, acendo a luz. José Bento fica à porta, figura delineada pelos clarões, aguardando-me a despeito de não saber o que eu ia fazer. Volto com uma garrafa, coloco-me no chão de cimento, recosto-me quase deitado com a cabeça nas sacas de café, sinto alguns grãos perdidos no chão me pressionando o corpo, ajeito-me, ele se aproxima e se recosta por ali também. As vozes da chuva persistem e recontam histórias que ouvimos sem querer, alunos de uma escola onde as lições impostas parecem tão além da compreensão que ouví-las mais uma vez não custa senão a atualização de um insípido hábito, alunos a lidar com as letras de palavras desfeitas para se montar, por tarefa ordinária, indócil idioma, outras palavras, estas que queimam os olhos e se negam à qualquer possibilidade de entendimentos. Tomamos do vinho no gargalo, um vinho sem cerimônia e por conseguinte derrotado em seus sabores, abandonado de qualquer emanação dos deuses da alegria, descendo peito abaixo sem desatar nós, umedecendo-os apenas, desdenhoso sumo, rio exonerado dos princípios da benfazeja embriaguez.

17 fevereiro 2010

O último porto do rio


44

Todas as águas dos céus, parceiras e antagonistas da sufocante noite de verão que se levanta indômeta sobre os despojos que arrasto nestes últimos dias, parecem querer se juntar às do Santa Maria num cair de zombaria, num correr vale abaixo em risos e murmurosos menosprezos aos meus malfadados intentos. Corremos para o armazém, nos encostamos à parede onde o beiral largo do telhado nos protege precariamente, abro a porta e entramos, mas ficamos ali, na entrada, olhando a chuva sobre o porto, ninguém nada fala, a intensidade da chuva, o barulho sobre o telhado exigem de cada um os pensamentos mais destituidos de palavras, aqueles que mesmo não sendo tristes ganham da tristeza o jeito, o feitio, aqueles que para pensá-los só se pensa na imobilidade do corpo, da voz, do olhar, ao modo de uma hipnose sofrida. O menino se aproxima do pai precavendo-se do medo, percebo, daquela imensidão escura por detrás, dentro do depósito, e somente ele com seu olho que vagueia entre o presente e o futuro curto e certo, o dia de amanhã, se divide entre olhar o porto lá fora e a escuridão dentro do armazém instantaneamente iluminado pelos clarões que atravessam os empoeirados vidros de umas poucas e altas janelas nas laterais da edificação. Nós outros ficamos presos ao rio, à chuva sobre o porto, presos ao que em nós, de um modo ou de outro, já é a consciência de que o rio permanecerá ali, mesmo e tristemente quando o porto se compor somente de umas pedras marcadas, sinais e ruínas de um tempo vencido, consciência de que o que flui é o que se evade inexoralvelmente de nós. Depois de um bom tempo olhando o porto dominado pela chuva agradeço a disponibilidade de José Bento e reconheço a total impossibilidade de descer o rio naquela noite como eu desejara, ele garante descer comigo no dia seguinte e me aconselha a descansar um pouco dizendo-me que minha aparência não era nada boa. O pai pescador e o filho se despedem, resolvem ir sem esperar o temporal passar e enfrentam a chuva para voltar para casa, o menino sai correndo atrás do pai como se fosse a mais feliz brincadeira de muito não desfrutada, a cena que se foi perdendo na chuva e na escuridão fixa os meus olhos naquela direção, o que o negro falava, por um certo tempo, não me chegava nas cavas do entendimento, de longe o som de uma voz amiga, a sua, me dava leve conforto a deixar-me seguir em pensamento, abandonado e livre, correndo também pela chuva afora. Deparo-me com crianças o tempo todo, a cidade tem muitas por todos os lados, mas agora elas me exigiam pensamentos, lembranças, cotas de pagamentos atrasados, dívidas impagáveis. E Maria Júlia? pergunto depois. Maria Júlia não está bem, ele diz. Eu sabia, digo, O que acontece com ela? A chuva ganha força, os relâmpagos se antecipam em respostas incompreensíveis e clarões desnorteadores.

13 fevereiro 2010

O último porto do rio
43

Decidi. Vou subir o Santa Maria. Pedi ao marido e ele concordou, vamos num passeio logo em alguns dias até o Último Porto como despedidas desta província, já que voltaremos ao Rio de Janeiro. Ele é áspero e impertinente, delicado não me é no dia a dia, mas tem em si por causa de nutrir uma nobreza da qual ele não é herdeiro, mas que pensa que tem, mais sou eu do que ele concebida nestes títulos que não me significam muita coisa, uma necessidade de me ser cortez, de me fazer certos agrados uma vez ou outra e ai me aproveito do que posso. De tudo o que falo pensas, sei que pensas florista, que minha vida é isto, un letto di rose, um lago de superfície plácida onde um barquinho vai sem balanços sob um sol poente iluminando de vermelho e amarelo em suaves tons o horizonte. O que de pior acontece nesse quadro que me pintas é que em não faltando nada, falta-me o arremate, e assim sendo, sem ilusão ou com uma dela bem ínfima dose destilada em minhas mãos pelas ditas cartas, tudo se perde em descontentes momentos que se há de viver de qualquer modo.

Não concordas, sei, ainda que não fales não concordo. Observo que vacilam tuas ágeis mãos em leves erros nas artes de compor estas belas flores que copias da natureza ou que inventas em teus recursos, revelando assim que segues ouvindo-me em discordâncias. Imagina, pensa, te explico, se, em tendo feito todo o trabalho da armação, o recorte das pétalas e o revestimento das hastes, tudo com finos tecidos, tendo necessidades de entregar tuas encomendas, um ramalhete de flores delicadas antes em teus sonhos confeccionado, sem amassos e dobras, te vem a faltar as lantejoulas, as linhas douradas, as delicadezas dos desfechos. Imagina estas privações impondo às tuas flores o caráter de um punhado de trapos amarrados. Pois bem, é isto que careço em viver, os arremates, e então tudo o mais se desfaz em permanentes e visíveis incompletudes, com as quais vou e com as quais me acostumei a um certo modo. De outro espeta-me o lençol, não me refresca o banho, as rezas não me consolam, e não me reconheço em vozes cantantes, as minhas, que há muito não consigo soltar entre aqui e ali, entre a sala e a cozinha, entre a porta e o cais em pequenas e bobas modinhas e cantigas.

Tirando estas vezes que aqui venho, quando pelo encanto com a presteza de tuas mãos e pela atenção dos teus ouvidos me ponho a falar, e além do que devo, prefiro o silêncio e o recolhimento. Não é religioso, nem cheio de Deus e de seus santos, mas é um outro o recolhimento, sinceramente digo, é aquele em que dedilho as contas das horas ocas, dos dias perdidos, da insensatez de querer felicidades e estas coisas que se seguem nesse rumo. É nas sombras do quarto e nos nublados da sala que sigo meus longos dias. Me acostumei, estas malditas cartas que começaram a aparecer debaixo da porta é que me tiraram do morno seguir da vida. Ir ao Último Porto do Rio, não me engano, será um passo que na ilusão darei, e nada mais que isso, um candeeiro aceso e colocado ao sol, um café que se passa só pelo perfume a dar à casa um ar de... sei lá, me entendes?
Um ganho secundário talvez advenha da viagem de barcaça pelo rio acima e rio abaixo, o recolhimento de uma paisagem, o desvelar de outros cenários. Olha que as paisagens nos alteram por um momento, ficamos outros, mais leves, num misto de alegrias e melancolias. Este caminho entre a alegria e a melancolia me pega quando me ponho à janela e vejo a baía, os navios, as barcaças. Amolecemo-nos, presta atenção quando olhamos um lugar bonito ou diferente, ganhamos uma certa coisa de água, de vento, que se dá talvez pelo desarranjo das seriedades que nos tornam opacos, rijos, repetitivos. Ah, o autor das cartas? sim, talvez conhecê-lo, talvez, questo mi piace, e aqui não nego a ilusão e a cor da ilusão e o gosto dela, e lá haverei de saber as nuances do sabor. Decerto, se me for possível, a ti com gosto relatarei no que me surtiu a viagem e o que nela vivi.

10 fevereiro 2010

O último porto do rio
42

Um cansaço é o que havia ali, um cansaço dele e um meu, ou um mesmo cansaço em duas pessoas. Se bem que o cansaço ficava ali como um aparador encostado à parede entre as janelas naquela sala. O espaço entre os móveis e entre nós era ocupado por curiosidades e interesses indistinguíveis, coisa a se pensar melhor para entender talvez. Vou agora pelas ruas em direção ao cais. Desejei ficar uns minutos a mais ali, isso confesso, um tempo de uma conversa sobre o que se passa por debaixo da vida ou acima dela, algo que fosse capaz de dar um leve mesmo que estremecido entendimento dos fatos, um juiz bem que seria capacitado para isso. A escuridão se levanta nos vãos entre as casas, nos dentros de algumas janelas não iluminadas pelo lampião da rua nem por uma vela de reza ali nos recantos, na torre imponente da igreja um perfil de fantasma sobre o morro. Ele queria falar-me e eu desejei que me perguntasse sobre a vida, sobre o que era viver aqui perdido nas melancolias da cidade apertada entre montanhas, no fim navegável do rio, perto do sumidouro. Ele fica ali na direção de quem vai para as futuras colônias dos imigrantes, o sumidouro assustador. Angustia-me tal recurso da natureza em conduzir suas águas por debaixo das pedras, o rio mergulha misterioso e só surge bem distante adiante, um mergulho em sono sobressaltado para acordar bem no meio da noite, longe do consolo da manhã, com o coração na garganta e o suor banhando o corpo todo, ah, o sumidouro, a noite, a incerteza, a imprevisibilidade de amanhecer de novo.
Vou para o cais procurando o negro José Bento Caetano, mas enquanto desço para o porto penso que ali, nessa hora, já não o encontrarei. O juiz exploraria da minha vida que conteúdos senão e nada além de pequenos segredos como os que se vão naquelas cartas, minha situação com Maria Júlia, o emprego na companhia fluvial de nevegação, e, sim, o passado. Meu passado. O passado não anuncio mas também não resguardo em selos de sigilo, isto sim reservo para o meu pé direito, o pé preto, escondo-o quanto posso, do mais perguntasse ele o que quisesse. Sento-me por um minuto sem saber o que fazer, vejo uma pequena canoa que poderia me ser útil e penso em descer o rio sozinho, mas desisto, o negro José Bento me será bom companheiro não só navegando rio abaixo na escuridão como na busca de Maria Júlia. Então ao acomodar meus olhos ao ambiente vejo vultos de quem pesca com varas de sobre as pedras, quase invisíveis na noite fechada, o pai e o filho, gente conhecida, pergunto se viram o José Bento, dizem que sim, peço ao menino para ir correndo chamá-lo, Diga que espero por ele aqui no cais com urgência, o moleque sai feliz correndo, era feliz pescando, era feliz no cumprimento do mandado, também fui assim, invejo a felicidade da prontidão do menino, ser feliz nestes casos é uma inexplicação. O senhor João Francisco não deveria descer o rio agora não, vai cair mais chuva, e das grossas diz o pescador, É urgente, o Bento conhece bem o rio, digo, Se eu fosse o senhor deixaria para ir amanhã, o rio está perigoso, alerta o pescador, Ainda mais à noite, continua. Sua voz se torna um canto insosso que se ouve sem ouvir, volto ao ocorrido com o juiz, seu interrogatóro abandonado pelas metades, ele tinha uma intenção que não levou a termo. Caíra em suas mãos algumas das cartas? para ele estaria levando as cartas o tal canoeiro com atitudes suspeitas? Entenderia com certeza o digníssimo juiz que o que digo são inconsistências em palavras de horas enfastiadas. Bem poderia ter ele conhecimento do ocorrido com meu pai, a acusação que lhe fizeram, a morte, a sociedade secreta. Logo percebo que os fatos dos últimos dias vão me desgastando os pensamentos. Passado um tempo chega o menino contente com a missão cumprida e um pouco depois o negro José Bento.

08 fevereiro 2010

O último porto do rio
41

Ao juiz talvez eu devesse falar sobre o pedido que Maria Júlia me fez, falar da dívida que contraí com ela, dívida não honrada, pagamento carregado de pequenos mas fartos impecilhos ao seu cumprimento. Mas não, com certeza não seria isso matéria de conversação, estes pesadumes de consciência mantenho eu mesmo por cá em meus juízos, até quando uma água fria de banho na bica fria nos fundos da casa, nos inícios da mata, me der um precário refrigério. Acendem-se os lampiões da rua, a cidade tremeluz pela janela e o que vejo, vejo ao contrário, o avesso, o tremeluzir de pensamentos, umas ruas, muitas ruas que se cruzam na mente queimando-se de pequenas brasas espalhadas por sobre todo chão e no ar. Pode ser que o juiz com sua erudição, através do único e tênue elemento comum que nos une, o Último Porto, me alcance no colóquio um aperfeiçoamento de ser, de delinear nas entrelinhas do que se escreve na vida um desfastio. Veremos o que ele quer. Ele se assenta à mesa principal no gabinete e me aponta a cadeira que eu deveria tomar. Torna-se impossível não cair na lembrança de ver meu pai reunido com aqueles homens ao redor da mesa, balanço levemente a cabeça e devo ter deixado vazar uma expressão de desacordo, dois João Franciscos em pelejas pelo posse do momento presente, um querendo a revisão do passado como se nele houvesse uma chave, o outro querendo manter-se ali, segurando a impaciência, o juiz pergunta-me o que se passa comigo, Nada, nada, digo, Estou precisando de um banho, devo descer ainda hoje até o cais dos pretos, tenho coisas a resolver lá. O juiz pergunta novamente meu nome completo e o nome dos meus pais, respondo de pronto, me pergunta a idade e digo trinta e oito, ele silencia, escreve o que não alcanço ler num caderno que me parece de anotações pessoais, pergunta-me sobre irmãos, respondo que só tive um, João Pedro, adianto o nome, que não sei por quais bandas do mundo ele põe seus pés, nem se se mantém vivente nesta terra de vãos e desvãos, continuo. Indenizo-me do cansaço com a permissão de um discreto aproveitamento da cadeira almofadada do gabinete do juiz, escorrego-me levemente, logo volto a posição ereta no espaldar, ele sorri e pede que eu fique à vontade. Olhando para um ponto perdido para além da janela o juiz tamborila a madeira escurecida da mesa, brilhosa, deve ser jacarandá, ou nogueira se a mesa foi importada da Europa, o que é mais provável, livros e papéis entre nós e mais, entre nós se depositam palavras moldadas em olarias escuras nos vales barrentos de cada um, mas ainda não queimadas no forno da boca. Um movimento de falar se estabelece nele, o tamborilar na mesa cessa, mas logo, no entanto, ele contraria o que pensara fazer, percebo, e as palavras que me dirige são de agradecimento e despedidas.

07 fevereiro 2010

O último porto do rio
40

Finalmente assino o documento, bem mais tarde do que eu pudesse imaginar, mais de seis horas da tarde, o juiz, percebo, sem saber onde deixá-lo, Na prisão não Excelência, me adianto, ele não é um criminoso, me porto como advogado, peço desculpas por ter falado, sei, ele pensa no que fazer com o índio naquela noite, ele lê e relê o documento como se soubesse da minha pressa e se colocasse contra ela, mas na verdade ele nem lê o documento que eu já assinara, indo de um lado para o outro da sala com aquela folha na mão se dá tempo tomando o meu, para pensar, toma o tempo que eu devia à Maria Júlia. Mas, se o juiz pudesse ouvir minha voz, esta incessante e silenciosa, poderia se interpor entre mim e os meus caminhos transversos e perguntar Que Maria Júlia?, o que o senhor tanto quer com esta Maria Júlia?, é sua esposa? não?, então, por favor, o senhor João Francisco me permita pensar o que fazer com este silvícola. Ao final, sem alternativa, o juiz decide que ele seja entregue ao chefe de polícia que por ali já estava, toda a cidade se aglomerava à porta. O chefe de polícia entra na sala e recebe as orientações que testemunho, de respeito e consideração para com o botocudo, admiro o juiz por isto, esperava menos empenho de sua parte em resguardar o índio de possíveis maltratos, devia guardá-lo até o dia seguinte, quando seria conduzido ao Porto do Mar, capital da província. Ainda que o verão alongasse o dia, naquele venciam as nuvens pesadas encurtando-o, dando escuridão à cidade antes da noite. Com a saída do indio o juiz não me dispensa, peço licença para me retirar mas ele me faz um sinal para esperar como se algo a mais quisesse comigo, juiz novo, com ares de abolicionista, republicano com certeza, zeloso acima de tudo de sua autoridade não haveria facilmente de deixar transparecer nem isto nem aquilo, era cumpridor de suas funções e obrigações, pronto. Parecia no entanto querer desvencilhar da minha mente as insatisfações, minhas frustrações, meus voos curtos. Encontrava ele alguns pontos de convergências entre o seu caminho e o meu, alguns não, um único, o Último Porto do Rio, sim este era o ponto comum entre nós na linha da teia incompreensível da vida que alinhava pessoas em laços frouxos e logo as abandona em suas solitárias sinas. Sonharia decerto o jovem e elegante juiz uma outra paragem, um outro patamar no mundo de onde pudesse levantar seu voo e não aqui no fim do rio, no Último Porto. Por isso ele quer conversar comigo, este malfeito laço nos prende exatamente agora, ele não sei com quais pensamentos, eu com a aflição da pressa.

05 fevereiro 2010

O último porto do rio
39
Era para ser um dia de sol rasgado de azul, preguiças e calor, mas olha que nuvens caíram da noite sobre a manhã. Bem sei que este dia assim combina mais com a tristeza que se vai ajardinando na minha vida. As calêndulas estão lindas, este amarelo dourado que escolheste destila saudades, ou desânimo, desânimo é uma plavra sonora, animada, não é? saudades ou desânimo numa mistura de verão e nuvens escuras. Não, não, este tom de amarelo e este nublado de hoje aliançam em laços frágeis o arrependimento e o tempo perdido, é isso mesmo, presta atenção, percebes?, tu tens a alma com olhos de distinguir o que se deposita sobre as coisas transformando-as, podes ver. Bem sabes que um dia, nublado ou rasgado de luz, é mais que um dia, e estas calêndulas de seda com folhas de fino veludo se condensam de outros materiais, de forças invisíveis que se encontram com o mundo.

Reli hoje uma das cartas do João Francisco e não quero dizer-te nada além disso, esta dentre tantas cartas me fez pensar que estamos unidos sempre por frágeis ligas, mas o que falta por dentro nos ocos do coração faz um fragmento colorido de vidro ser um diamante. Relendo esta carta me dei em dores de saber que estamos unidos, ele e eu, não gosto da palavra unidos mas agora não me vem outra, por esta poeira pegadiça que se deposita sobre a matéria, sobre as pessoas e sobre os fatos, sim, esta mesma poeira que faz com que tuas calêndulas se amplifiquem com outras constituições além de seda e veludo. Não nego, todavia, que sem a languinhenta poeira as coisas elas mesmas se tornem poeira.

Sim, meus filhos já sabem que voltaremos ao Rio de Janeiro e ficaram felizes com a possibilidade de estarmos próximos mais uma vez. Deles, em outras épocas, já senti muita falta, mas hoje são homens feitos, cada um com sua vida, estando lá ou aqui nada mudará os rumos da solidão que traça como competente engenheiro as estradas que me atravessam. Desci para o cais dos Jesuítas e ouví a notícia de que as barcaças do Santa Maria não navegaram por uns dias por causa da cheia do rio. Fiquei ansiosa, agora voltei a aguardar com juvenil expectativa estas benditas cartas. Ali no cais deparei-me com a senhora tedesca, me pareceu feliz, animada, comprando uns peixes e temperos, ela não me viu e nem me acheguei a ela, fiquei a distância e daí mesmo me retirei. Há momentos e momentos, e aquele estava longe de ser um bom momento, muito menos para uma conversa carregada destes protocolos que se dão antes da intimidade. Uma coisa notei, usava botinas Luis XV, pensei em como são frágeis os detalhes quando se olha de um ponto de onde também se delineia o rumo do destino.

02 fevereiro 2010

O último porto do rio
38

A cidade do Porto do Rio cobre-se de um grito às quatro da tarde, um desses gritos que se dá quando se quer experimentar o alcance do mundo do alto de um morro e nada muda e ninguém escuta e tudo continua do mesmo jeito. O calor de depois da chuva abafa a todos, o sol cresta as pedras do cais, o céu de segunda feira se vai lentamente sobre as montanhas com um azul de festa perdida, o rio amarelo sujo da cheia se esparrama na quietação das águas do porto em espumas produzidas na cachoeira logo acima. Ancoramos a barcaça e logo me encarrego do índio, levo-o ao juiz, antes aviso ao jovem auxiliar do escritório o que tenho que resolver. Quero sem tardança ainda naquele dia descer o rio, talvez com a ajuda de José Pedro Caetano, para procurar Maria Júlia. O juiz me pede que assine um documento a ser lavrado, tenho que esperar, espero mais do que posso, mais do que suporto, espero, crescem redemoínhos de ansiedade na boca do estômago, a tarde se alonga em desamparos, o mundo decerto continua nos seus giros, em que velocidade gira este mundo?, a vida segue lenta, bem lenta em todos os seus trâmites, nao tenho lugar, sento e levanto, vou até a porta, volto e o bendito documento ainda não está pronto, o indio abancado ali na sala, objeto de curiosidade de muitos, me observa, há um certo ar de solidariedade em seu olhar ao mesmo tempo em que me pede algo que não sei distinguir, sei que me pede, aglomeram-se as pessoas para observá-lo, desvio o olhar do seu, minha obrigação para com ele terminou, o que não se deu com Maria Júlia. Com ela minha obrigação ainda está em aberto, devo, quero honrar minha promessa ainda que tarde, nem sei se por ela ou por mim mesmo, indago-me sem conclusões. Quem haverá de saber se ela ainda mantém o seu pedido, se deseja meu esforço. Um pedido tão simples ela me fez, Deus, é tudo tão difícil, roda desconchavada de seu eixo, vou até à rua, distraio-me por um momento com o passar de uma tropa, esbarro na calçada desatento com um vendedor de cocadas, esparramo-lhe os doces do tabuleiro, tudo vai ao chão, peço desculpa, quase jogo o garoto sob as patas das mulas, peço que passe no escritório do armazém e lhe será pago o prejuízo. Os pensamentos se avolumam em círculos espumentos de futuros que não se abriram, já poderia ter filhos como este das cocadas, como aquele da Leonora. Aquele, num desafio inimaginável quebrou o triângulo dos afetos mal enlaçados entre minha pessoa, o mestre do Maria Luíza e o índio, ele chegou com o vinho e o torresmo e as canecas tilintando e olhou para o índio, foi-lhe ao encontro sem medo, observou-o por uns instantes, o índio arregalou os olhos para a bebida, todos ficamos observando, sem pressa voltou-se e entregou-me o que sua mãe mandara, então fitou-me como se eu fosse o algoz, o responsável pelo padecimento do botocudo. Convidei-o a ficar ali e logo devolveríamos as coisas da cozinha, e, à guisa de ações de instinto, sabe-se lá, ele se foi sentar sobre umas quatro sacas de café empilhadas e com seu olhar destruiu salutarmente o triângulo, instituindo um quadrado entre nós, e ao sentar-se mais alto do que todos determinou a supremacia do seu papel naquele momento.

01 fevereiro 2010

O último porto do rio
37
Antes de chegarmos ao cais dos pretos no início da tarde de segunda feira tivemos que pernoitar na parada da Leonora. Rio acima como se é de supor a viagem é mais lenta, e com a enchente ainda mais, quanto maior a ânsia de ir ter com Maria Júlia maiores os ventos das adversidades. Não aceitei um quarto que me foi oferecido, me sentia na obrigação de me manter de olho no índio, e no mestre das ditas cartas, ficamos instalados num armazém, um amplo salão cheio de sacas de café e outros grãos, arroz, milho, e arreios e apetrechos de tropas, abrigamo-nos como foi possível, um lampião foi aceso e pendurado num dos esteios. Nenhum de nós podia reclamar de nada, tudo estava muito bom, acostumados, exceto o botocudo talvez, com aqueles cheiros, irmanados todos no entanto na severidade sob a qual vivíamos nossos dias. Comida não foi problema na pousada da Leonora, serviu-nos ela logo que chegamos ainda com o sol se escorregando em suas despedidas sobre as montanhas à oeste um bom jantar e depois de fartos, ainda que cedo, mas dobrados pelo cansaço, nos recolhemos, cada um no seu silêncio e recanto no armazém. Leonora é mulher de pouca conversa, forte como um homem e ágil nos negócios, mais do que seu marido, do qual enviuvara, que era um homem bom, incontrolado contudo no seu vício de beber. A parada da Leonora ganhou progresso mais pelas suas mãos de viúva do que de esposa. Firme como só, ela logo dissipou a curiosidade sobre o índio repetindo minha explicação para quem se arregalava em curiosidades. No armazém, já noite bem adiantada, ninguém dormia, o cansaço perdia para a agitação, águas ainda rolavam em fortes correntezas nos mundos de cada um, senti vontade de puxar o assunto das cartas com o mestre, não fiz, fiquei com os pensamentos, levantando idéias de que ele copiava minhas cartas assim ao modo de aprender a escrever. E pensando isso deixei me influir de uma leve compaixão e olhei para ele, naquele mesmo momento ele olhou para mim, lembrei do seu pé com aquele tipo de brancura que vai tirando a cor da pele das pessoas, uma doença sem cura mas que não traz prejuízo senão o de tornar a pessoa pampa. Em sendo a minha tez branca de raça galega não entendia o meu próprio pé, preto, numa assim semelhante mas opoente doença, apesar de que doença não era, era de nascença, ou bem poderia ser sinal de um intercurso sexual de algum antepassado com pessoa de raça negra. Meu pai e minha mãe eram tão brancos quanto eu, e de minha mãe jamais seria possível aventar da participação dela numa explicação. O índio recostado sobre uns arreios olhava-me um olhar que eu preferia se traduzisse numas palavras que eu entendesse, entre um olhar e outro eu decodificava ora estranhamento, ora respeito, ora raiva, ora gratidão. O triângulo entre nós três se mantinha, não mais equilátero, eu estava no ponto do domínio da situação, o triângulo apenas sofria com as influências das melodias das toadas dos canoeiros que cantarolavam baixinho as tristezas, estas de viver, de amores não felizes, de se sentir inacabado, de ir, ir, ir sem destino certo. Aqueles cheiros e escuros nos definiam na semelhança da desolação. Procurei concentrar-me em Maria Júlia, e o pensamento nela semeava em mim um sentimento bom, uma leve esperança, uma leveza no peito, aumentava a brandura da luz do lampião, mas ainda, e além, o pensamento nela me amparava daquelas imagens que me assolavam a mente em maltratos de recordação. Inesperado nos apareceu o filho de Leonora, menino de uns dez anos, trazia uns torresmos quentinhos e uma garrafa de vinho e numa correia de couro umas canecas de esmalte tilintando despedidas.