27 maio 2013


Lâmpadas fracas

 

Chovia, da lanchonete olhava aquela velha casa em frente, de dois pavimentos, em estilo eclético, do início do século 20, perdida entre os prédios. O dia caído se anunciava não pelos ponteiros do relógio que se avizinhava das 17 horas, mas pelas lâmpadas fracas que se acendiam lá pelos fundos, na sala de jantar provavelmente, e que tingiam de melancólica luz as janelas da sala que davam para a rua. Se não fosse até lá agora, nunca mais iria.

Ao chegar pôs os pés e os olhos sobre os três velhos degraus de pedra como se fossem sagrados, ali sentara tantas vezes para descobrir entre aqueles homens que visitavam sua mãe qual seria seu pai, acreditava que ele daria algum sinal de que ele era ele. Iludia-se. Os degraus lavados anunciavam que nada permanece, os passos às pedras serradas deram suavidades, os passos mudam as pedras. Mas não mudaram nos últimos tempos, pareciam os mesmos. Chovia. Não era uma chuva boa, era uma que entristecia. Trazia em suas rajadas coisas dos tempos, de tantos tempos, coisas ardentes e pontiagudas, preferiria não voltar, mas voltava. Já batia à porta, batia sem certeza do que iria fazer. Quando a porta se abriu ele não podia imaginar aquele rosto, era outro, feito do mesmo. Teve um pensamento de beijá-la, e outro pensamento de perguntar coisas, exigir respostas, dizer desaforos.

Quando seus olhos se colocaram sobre os daquela mulher que lhe abria a porta, e antes que de todo estivesse aberta, veio-lhe de imediato o dia em que fora por aquela mesma porta posto para fora de casa. Não esperava aquela lembrança, não se preparara para recordação tão clara exatamente naquele momento. Tinha apenas 12 anos. Não era um filho ruim, muito pelo contrário, e nunca entendera sua expulsão. Sentiu um rubor nas faces. Fora simplesmente abortado aos 12 anos. Agora estava ali, tinha andado mundo, e ela o recebia sem saber a quem recebia. Na verdade ia àquela porta em busca de uma ultima réstia de luz, a esperança de que por detrás daqueles olhos de prostituta pudesse haver um veio de recordação que a ela avisasse: é seu filho.

A mulher docemente o atendeu. 30 anos depois. Não o reconhecia com certeza. Sentiu-se feito de bobo pelas próprias ilusões. Virou-se sem se despedir, tinha se enganado, foi só o que disse enquanto saía. Um grito. Chovia. Saiu correndo pela rua em direção à marquise da lanchonete do outro lado.

21 maio 2013


Que ventos são aqueles que atravessam em assovios casas abandonadas?
(conto)
 
Lembrei de você e pensei, vou escrever uma carta para ele. Na verdade não vou escrever, não consigo, também não se escreve mais deste tipo de carta, é uma besteira, vou escrever aqui na cabeça enquanto ando pela casa. Lançar mão das palavras escritas para dizer o que não organizo bem significa que não ando bem, mas não se preocupe. Você sabe de muitas coisas, não sabe de todas, nem eu, mas eis que penso e falo. Não sei se escrevo em voz alta. Que se dane se alguém estiver lendo meus pensamentos!

Os ventos, os ventos me povoam de pequenos mas vastos redemoinhos, empoeirados, são aqueles ventos que sopraram quando nos encontramos naquele passeio bobo de trem pelas montanhas no fim de semana, ventos perdidos, hoje sei, que nos juntaram e também nos separaram. O que vivemos? O que foi aquilo? Hoje meus remédios mais fazem as nuvens caírem do que dar-me uma leveza para viver. Peso. Nem sei direito como escrevo peso para distinguir de peso. O primeiro tem som aberto, o outro tem som fechado. A gramática também é o que menos importa para alguém que já morreu. Vocês daí devem ler mais as intenções do que as letras. Estou pesada, afinal, é isso que quero dizer, de viver. Decerto são as curvas, as linhas tortas, nossa!, como são tortas as estradas que fiz, você até tentou me endireitar, mas, que importa isso? A vida sempre pesa... agora mais. Os remédios me dão uma zonzeira, e eu queria uma leveza.

Ah, o que me faz leve são os encontros, os bons, o nosso nem sei se foi bom, mas naquele dia me fez leve. Por que escrevo? Por que agora os ventos voltaram mais fortes? São aqueles ventos que atravessam em assovios casas abandonadas, são aqueles que na lavoura abandonada traçam com fios de palha de milho seca os pensamentos que o doutor não gosta de ouvir, mas, como posso pensar outras coisas quando eles sopram? Falo para ele dos ventos, para o doutor, que me cobra caro, só atende particular. Ele me ouve com medo, vejo nos seus olhos, e me dá remédios como se fosse para se proteger dos ventos. Me dá uns que tira das gavetas e outros que tenho que comprar, sempre tão caros! Fui menina no interior, em espaços abertos de muitos matos e ventos, fantasmas e histórias. Depois me meti com os sonhos de fazer o Brasil ser de todos, na minha juventude. Te conheci depois. Nem sei o que passei, cadeias são espaços quadrados que nos tiram e nos dão coisas. Perdi mais, nem poesia escrevi.

Não tenho mais permissão para dirigir, eu gostava, você se lembra? eu dirigia melhor do que você. Fico aqui, o apartamento é habitado pela Solange durante o dia, à noite os ventos tomam contam, rodam, rodam, e acabam saindo pela área de serviço, mas não encontram ninguém. Ela cuida da casa, deixa sempre a janela da sala um tanto aberta para ventilar, ela diz que é pra retirar o mofo, de mim... talvez de mim... ela cuida. Mas a Solange  cuida bem das fotografias, pra cada uma ela faz perguntas sempre novas enquanto canta uma dessas músicas sertanejas, isso faço questão, de manter as fotografias, as paredes estão cheias. Desejei falar de você para ela, mais uma vez, estou ocupada agora, lavando a cozinha, depois você me conta, ela me disse, e eu ouvi, sabe quando você ouve bem uma coisa?, você cala, eu calei, fechei bem as janelas e fiquei esperando que os ventos batessem na vidraça. Virei para o lado do criado mudo para olhar meus remédios. Tinha uma caixa bonita, destas que se vendem por aí, a Solange que comprou, mas me pediu o dinheiro, bem cara essa caixa, é bonitinha, mas cara. Olhei meus remédios todos coloridos na caixa bonita como se formassem um arranjo de flores. Então me lembrei de você.

08 maio 2013

A janela ficou do outro lado (outro conto)


Onde se esconde a angústia?, ou, mais sincero seria perguntar, onde ele escondia  a angústia?, rodoviárias, não gostava delas, se apavorava em vontades de voltar, mas não voltaria, era assim, o que decidia estava decidido, e pronto, mesmo que lhe custasse um alto preço. Vou-me embora, ele dizia pra si mesmo, vou-me embora, tenho que ir, depois voltarei, e vai ser diferente. Não levava mais do que o necessário para uma semana em alguma pensão de uma rua triste qualquer. Uma sensação lhe percorria por dentro as tripas em ânsias de que a hora não chegasse, da partida, mas ao mesmo tempo a ânsia pedia que a hora chegasse logo, da partida, que o levasse, e o tirasse da rodoviária, que lugar mais esquisito estas tais rodoviárias, mesmo que pequenas, como aquela na sua cidade, pensava.

Era tudo por amor, iria embora por amor, iria com a economia que foi possível fazer ao longo de meses, pouca coisa que conseguiu guardar, iria e voltaria pra casar, ela ficou de esperar, ela o esperaria, combinaram em abraços e beijos e mais beijos, e lágrimas e pare com isso, ele repetia, pare com isso, não te quero mais ver assim, chega de despedidas, de beijar como se a gente nunca mais fosse se beijar, ele dizia consolando-a.

Era tão jovem, 22 anos, magro, uns pelos no rosto, perdidos, mais abundantes no bigode, um olhar de água parada, não sem brilho, mas calmo, calmo como pessoa boa, mas era nervoso, inquieto, teimoso, reclinou-se com a cabeça tocando o vidro da janela do ônibus, nenhuma alegria, apenas decisão, dura decisão, encarar o que Deus mandar, não voltar atrás.

Mas ela apareceu na rodoviária, rompendo o que fora combinado, se o amor propõe fidelidade, o amor também faz romper tratos, ela não aguentou e correu para a rodoviária, quando chegou o ônibus já dava marcha a ré para tomar rumo, ela olhou e viu sua cabeça recostada no vidro como um menino no castigo, sua vasta cabeleira preta, seus olhos buscando sabe-se lá o quê.

Ela estava ali movida por alguma esperança, ele a proibira de ir à rodoviária, mas ela foi. O  ônibus virou-se para o outro lado, dando a volta para pegar a rodovia de tal modo que a janela onde ele estava ficou do outro lado, nunca mais se viram.