31 agosto 2007

Carros abandonados

Esta terra está cheia de sonhos despedaçados.
Cada vale, cada vala
se entope dos seus pedaços
enferrujados
deixados ao léu.
E os novos são amontoados
por todos os lugares
embora os velhos não se tenham ido embora.
Demoram-se em decomposição lenta.
Ficam.
São fantasmas os sonhos
- carros abandonados -
alguns ainda lindos.
Nós que agora vivemos
(quer palavra mais feia do que essa que nos define:
consumidores)
como vacas que pastam;
sonhamos os sonhos dos outros
pensando ser os nossos.

30 agosto 2007

Reflexo

Me doeu na alma o reflexo na lâmina do rio
que neste deserto corre como se fosse uma canção de ninar
na voz de uma velha , bem velha mulher .
Terá O Filho passado por aqui quando caminhou na terra
e enxergado O Pai-do-céu pelo céu que se vê ao olhar pro rio?
Bem poderia ter sido desse modo,
o que explicaria minha dor agora,
além da secura na garganta
e do desatino do viver.
Na agonia da sede, antes de beber
me dei tempo de olhar e vi
no reflexo o que não esperava ver.
Um olhar (Do Espírito?) que ficou aqui
nas águas, nas pedras
nas ervas, no limo
no fundo.
Não, de Deus não,
me engano e me iludo.
O que vi foi meu próprio olhar
- e como me dói.
O deserto me fez seco
e áspero como as pedras.
As viagens são fundas e curtas.
Meu olhar é opaco de inveja
desse rio que atravessa o deserto
e se espalha raso-calmo
só para espelhar o céu.

27 agosto 2007

Na margem desse agora

Essa água escorre e vai
pelas costas dessa Gaia velha
e se desperdiça em voltas e curvas
num caminho que se assemelha ao meu.
A parecença fica por aí,
pois do milagre que a Gaia velha faz
- que se mostra na montanha corroída e áspera
gemendo em gozo por séculos
nesse lindo filete d’água -
eu não sou partícipe.
De dias pequenos é que sou comparte.
Nem reparam nos meus anseios e já passam
um depois do outro
antes do fim do meu gozo escasso.
Destituído da conivência dos dias que se seguem, falho.
Não canto a música que tocam,
não choro a mazela que anunciam,
não engulo a batata-frita que comprei,
olho a montanha e não fico zen.
Fico assim,
nem dentro, nem fora,
na margem desse agora
que já passou.

22 agosto 2007

Trilhos

No descanso pensaste
escrever um poema
e quem sabe encontrar
a leveza de um momento
nessas horas, tantos tormentos.
Mas o que veio foi um trem
pesado e forte pela mente
atravessando sem piedade.
Ficou a imagem,
dos trilhos brilhando por cima
onde o atrito se dá
e a ferrugem embaixo
onde o ferro e a madeira fazem um pacto
de indiferença e frieza.

21 agosto 2007

Hora morta

Aquele anjo naquele barco,
lindo porto-só-desconsolo,
porão vazio, alma parada, maré subindo.
Navio sem carga, recordações,
hora perdida na madrugada.

Aquele beijo naquela noite,
a maciez na mão sem tato,
o desejo aceso, o ato.
Depois o sono veio pesado
e veio mesmo prendendo a mente,
inviabilizando qualquer poesia.
Ela esperava uma palavra
depois de tanto sexo sem expressão.
Nem antes, nem depois, nem quando os dois
passeavam pela beira-mar,
e ela ensinava desesperançada
- a boca há de falar do que o coração se abarrotar.
No ultimo espasmo do gozo farto
o pensamento deslizara em intenções:
usar aquele barco, aquele anjo,
juntar cenário, verbo e sentimento
num belo jeito de dizer “te amo”.
Barco e anjo mal pintado foram dar no sem-fim-sem-nada.
Nada durou, ela cansou e foi-se embora.

Da tal morta falara um dia o amigo.
Ele desconhecia tal expressão.
Sabia agora, mais do que sabia, sentia
o cais, o navio, a maré,
tudo a acatar a hora,
a de agora
a morta.

20 agosto 2007

Maçãs e percevejos

Me dobrei de dor,
de não saber,
de querer saber.
Nessa luta que não acaba,
poder que perdi.
Ganho que tive foi ser
sei lá, quem se vê.
Me vi sozinho aqui
e não tive outro sonho
senão o que me acordou
enquanto me perguntava
quem eu era,
ora essa!
Quem era esse
Eu.
Me dobrei mais que pude.
(Sentir a dor
me é dado poder).
Me dobrei por dentro
e apareci por fora
e descobri na hora
replicada em tantos instantes
que sou um feixe
desarranjado de linhas,
emaranhado de desejos,
maçãs e percevejos.

16 agosto 2007

Pronunciar o silencio

Quis pronunciar o silencio
e disse para mim mesmo,
o silencio.

Outro desejo surgiu,
quis dizer el silencio.
Assim em espanhol me pareceu
nome de vale.
Não era o que eu queria.
Que querer é esse?

Procurei outras línguas,
nada aconteceu.
Voltei à língua mãe,
ao silêncio.

(cetim, lã, algodão, veludo)

14 agosto 2007

Escorrendo em prata

A vida anda escorrendo em prata
mas é chumbo derretido, ao invés.
Tem uma aparência de brilho que ilude
mas logo o peso do chumbo imprime seu cinza.
Fica para lá do horizonte barrado
aquele sol que ainda brilha na dor.
Essa consternação de viver sabendo
que não há transcendências no chumbo
não me permite o engano.
O chumbo escorrido como se prata fosse
faz um vale devaneante para olhares compassivos.
Eu vejo o que não desejo
e lamento o mundo
que longe, longe ,
se mostrava em profecias ruins,
mas no instante da respiração presente
é o dia que chegou concreto
sem qualquer chance de fuga.

13 agosto 2007

Para lá das dunas

Sou um templário perdido
bem perto de Jerusalém.
A cruz no meu hábito se apaga,
me apago
como fogo de acampamento
que abandonei.

Sei que pedis mais
do que meus passos agora podem andar.
Pedistes honra e te dei.
Pedistes pureza e me mantive assim.
Pedistes coragem e lutei.
Mas agora
Jerusalém está ali,
vazia.
Descobri que estais
noutro sitio, para lá das dunas,
lá onde as crianças choram.

12 agosto 2007

Réquiem besta

Tu és uma semente
que caiu bem longe
de onde poderias criar raízes.

Caíste no meio de umas formigas
fortes, fedorentas, valentes.

Pegaram-te antes que sentisses o frescor da terra
e tremesse dentro tua força
no desejo por terra, sol e água.

Elas te levaram e eu te acompanhei.
Queria te libertar, mas como?
Tu serias uma bela árvore.
Rezei para que tua pele endurecesse
e lá no buraco elas não conseguissem te mastigar.
Num dia de chuva a umidade chegaria
e tu explodirias todo o formigueiro com tua força.

Entretanto,
teu broto é tenro,
tua raiz saborosa.
Não tem jeito.
Não me escutas, pois dormes feliz.
Para ti canto um réquiem besta
tropeçando minhas patas
nas patas de outra formiga
- outra escrava -
que mais doida e obstinada do que eu
segue seu destino e teu enterramento.

11 agosto 2007

Um corisco no chão

São pedaços,
cacos,
fragmentos de sonhos
o que tu vives.
Eu sei, pois estou fora deles
- rocha que sou.
Falo de dentro do céu
de onde qualquer pedrinha avista
o limite da tua ilusão.

Vai,
goza,
verás que tudo foge
no instante que tens
e que não terás.

Mas..., tu não sabes
e eu confesso:
É o despeito em mim.

Tu não conheces mais a aspereza que pesa
nem o silencio do espaço.
Rocha não és mais.
Ah, desejo uma explosão
que me faça cair
- rocha rodopiante e sem rumo -
em chuva de fogo sobre o teu planeta.
E como pó, mineral
que teu sangue precisa,
plasmar o coração do filho que conceberás
e através dele olhar para o céu
pra projetar nele
o que só na terra se encontra,
o paraíso onde as rochas
ganharam alma
e perderam o silêncio.

Um corisco no chão,
- sou ..., meu Deus! -
por isso essa ânsia aqui
e a barulheira que escuto,
palavras dentro de mim.

Ah, tu conheces um mestre
que ensine a um aturdido humano
a esvaziar a mente?

10 agosto 2007

Esqueço o poder dos espelhos

Quando estou com os jovens
sofro de um mal, uma síndrome de esquecimento,
não um qualquer.
Nem deficiência de memória é.

Esqueço o poder dos espelhos.

Mal me vejo.
Somente sinto o empurrão
como se eu fosse um filhote já bem penado.
Os pais com o bico jogam-no
para fora do ninho,
para o vazio do ar
e para o prazer do vento.

07 agosto 2007

Nascer

Acordei
e um clarão invadiu minha consciência.
Compreendi tudo num instante
naquele mesmo em que tudo esqueci.

Ficou uma nostalgia
cor de tarde oca,
fim de dia longe da família,
entrada de noite sem festa e sem fogueira,
fria.

Acordei e sei
Que caí numa hora
nenhuma daquelas do relógio.
Hora de dor
de quem nasce já tendo nascido
sem nunca jamais entender
que nascimento foi esse
e para quê.

Acordei e decidi
recolher nos campos do meu vagante rumo
em meio ao joio farto
cada poesia, único grão
para o pão capaz de me nutrir.

Amor, o mar

Doido, sentia-se,
desorientado, andando apressado
na tortuosa e curta imensidão da vida.
Um poema feito de vez.
Os pés empoeirados,
descalços e mais grossos que o solo,
vencendo com intrepidez
a aspereza do cascalho.

Onde a palavra podia ser outra
ficou aquela mesma.
A primeira, não pensada,
insurgida de súbito
sem escolha, sem melodia,
como um grito farpado
de dor.

Dor, amor, o mar.
Quem sabe essas palavras
façam outro caminho.
Ele tem que seguir,
ou perseguir, distante verso.
Na praia, talvez,
ainda construa uma casa.

01 agosto 2007

Trocar de olhar

Essa viagem longa
- por entre paisagens cinzas,
rios sem água,
que se avistavam por seus olhos -
fazia-o pensar que outro dia seria outro peso,
na mesma sina de ser infeliz.

No entanto ele ouviu uma canção sem graça
que vinha chorosa sabe-se lá de onde
de um vazio qualquer,
de um porão sem entrada de luz
ou de um peixe agonizando fora d’água.

Depois de tantas viagens,
Ele ouviu.
(Antes tarde do que nunca).

Ouviu e decidiu que choraria com a música.
Sim, choraria por ter perdido tanto tempo
em acreditar numa sina que o fazia viver
uma vida infeliz.

Ele contou isso pra me animar.
Pra me convencer a trocar de olhar.
Mas, não sei...
Não sei se é tão simples.
Será que as cores correm ainda
por baixo da cinza,
dos leitos secos,
rios que outrora
foram as minhas fontes?