27 março 2010

O último porto do rio
53

O que tens a dizer, ó florista, do amor? Podes dizer-me da vida, a vida, um balanço de árvore que se avista de uma janela de um segundo pavimento em tarde madorrenta. Escrevo-te ao amanhecer, mas parece-me tarde. As cortinas em leves movimentos de um resto de vento que traz o cheiro das folhas verdes fazem pelo tecido fino o laço entre um acontecimento e outro, a ruptura, o limite. Escrevo-te do Rio de Janeiro, pois minha passagem apressada de despedida pela tua oficina não me permitiu as palavras que eu te prometi sobre a ida até o Último Porto do Rio. Ainda tenho dificuldades de dizer o que escrevo, pois nem sei se importa dizer, se haverá em meus mares, ou nos seus, nas aves, andorinhas e gaivotas que me cercam, nos barcos que me atravessam, um novo movimento de rumo. Mas, sigamos. Por mais que a vida seja assim, assim vamos, vivendo-a, o adeus se dando na maior parte do tempo oculto na ilusão e no estranho prazer de viver, anseio de continuar a existir, apesar.
Lembro-me agora, enquanto me deixo ser o que são estas palavras que escrevo, tua singela e discreta presença no cais. Do vapor te avistei e o teu gesto, de mãos vazias de qualquer flor, acenava o mistério de um sonho, isto que une e separa os dias uns dos outros, o que separa o sol da montanha no momento que os dois se tocam, o que leva pelas palavras o poeta para longe dos mundos que ele alcançou. Doi-me agora mais o adeus, vejo a cidade pequena encostada no morro, um presépio que não se desmontou, em fevereiro, tudo se indo para o universo infinito, a claridade da manhã impedindo o disfarce das nuvens nos olhos, ciao, vidiamoci presto, queria dizer às pequenas coisas vividas ali naquela pequena capital de província, o penedo vistoso, ainda mais calado em sua posição de guardião da ilha, tu voltando para a oficina, para outras flores. Os imigrantes logo chegarão, viverão outros olhares sobre a mesma ilha, como primeiro passo de uma vida completamente nova, motivadora de todos os esforços, fonte de força para suportar os sacrifícios a que ela, a vida nova, se submete e sobre os quais se levanta. Fico a imaginar, disse para o marido, o que sentirão os imigrantes ao entrarem na baia em direção ao porto. Ele não responde, silencioso também, distante, somente abraça-me. Penso-me como um deles, um imigrante, tudo para trás, tudo pela frente. Mas não sou, invejo-os.
Começo a dizer-te. Levantei-me com o sol, mas grossas nuvens de chuva se avizinham cinzas da janela que abri. Começo a dizer-te, já com os olhos distantes de tuas habilidosas mãos, o que foi minha viagem pelo Santa Maria. Quisera agora ver as tuas mãos juntando amarelos em pétalas grandes de girassóis a modificar para melhor o que digo. Forço a memória para ver um girassol bem amarelo, luminoso, em tuas mãos, não me recordo. Fizeste girassóis? eu nunca presenciei a feitura de um. Surgem-me as hortências, aceito-as. O arranjo das palavras agora se vai pelo azul plácido e pela manhã que já se recolhe em respingos de chuva . Assim como as pelejas de tuas mãos a vida segue por aqui. Logo perderemos o contato, as cartas cessarão, talvez mesmo esta primeira seja a última. Agora relato a viagem pelo Santa Maria, desejo relatar. Ensaio o que vou dizer, usino-me por dentro em procuras de sentidos, faço alguns, incipientes.

Cuida de ti, ó florista, sinto vontade de dizer-te, cuida de ti nas flores que confeccionas, mas não digo, também não mudo de folha de papel, não rasuro o que se tornou letra. Mas, sigamos. Conto-te um capítulo, apenas um, e único. Do mais importa as habilidades que tens de transformar o vazio dos arames, tecidos e papéis em um sentido, bom quem sabe, frágil sempre, de seguir, todavia. As calêndulas, lembras as calêndulas?, pois bem, o capítulo que te relato é somente o capítulo das calêndulas.

20 março 2010

O último porto do rio

52

As noites, passadas, todas, se somam em peso e caem sobre o quarto, de repente. O espaço entre o que falávamos silenciosamente e o momento do cair das noites, parece, não existiu. Maria Júlia afrouxa o aperto que mantinha com suas duas mãos sobre a minha direita pousada sobre o seu peito quando olha para a menina para chamá-la para si, sem chamar. Uma nuvem fria de orvalho escorre entre as palmas, separando-as por tênue limite. A menina corre, escorada na porta todavia, em ruas de abandono, com um leve mexer de corpo entre ir até à mãe e ficar onde está, presa. Uma mão estendida nos seus olhos aponta para a mãe como a dizer a um adulto, sem palavras, acuada, onde está a tesoura que ela tomou como brinquedo e largou onde ninguém conseguia achar. Zune em minha mente um som agudo, o de um transporte súbito para um lugar, um campo, numa manhã de fim de outono, manhã iluminada mas fria, onde numa peleja sem sentido vence o vento a disputa por cada centímetro da pele que se arrepia. Giro, giro e avisto as montanhas ao derredor, as árvores, as colinas ondulantes, as pastagens e os pássaros, muitos pássaros, alvoroçados bandos de espécies diferentes, todos voando e atualizando suas comunicações sobre o frio próximo do inverno. Não há casas, nem estradas, nem rios, apenas prados verdes, cercas velhas, árvores perdidas aqui e acolá. Alguém aparece e toma a menina que parecia uma estátua barroca em madeira sem pintura presa ao portal. Leva-a. Outra pessoa toma a mão de Maria Júlia da minha e planta nela, na umidade em que cultivamos pequenos e suaves momentos, a haste que não brotará, de uma flor de fogo, uma vela. A pessoa aperta aquela haste infértil nas mãos de Maria Júlia como se acreditasse, por costume de quem lida com lavoura, fixar futuras raízes ali nos vales e linhas daquelas mãos doces e ainda flexíveis, macias, cheias.

09 março 2010

O último porto do rio
51

Ou morro, eu sei, ou sou enlouquecido ou me ensurdeço assim como agora, retirando do mundo seus ruídos e os rumores encachoeirados de dentro de mim. Vejo tudo por uns momentos sem sentir, depois voltam as insossas agonias, mas na surdez imprevisível alevanto-me como folha seca em ares de ingenuidade e uma boba alegria, uma fria alegria de viver. Nessas horas a vontade que vem é a vontade de andar, andar, andar todas as estradas possíveis. O trágico é chegar, e chegar quando se quer andar, o acaso e o incontrolável, montanhas impassíveis sobrepondo-se às planícies que vivo. Chegamos à casa. Maria Júlia já fora informada da minha chegada e me esperava, bem vestida, cabelos arrumados e uma força de sorriso nos olhos brilhantes e abatidos. Talvez agora ela também apenas me enxergue naquela espécie de silêncio, surdez, mundo calado, a dor renegada e aceita. Nos falamos sem nos ouvir, falamos um para o outro coisas bem diferentes do que dizemos em voz alta, se falamos Estou bem e você?, falamos no duplo daquela frase, pelas costas das palavras, pela traíção delas, nos entendendo, Não estou bem e sei que você também não está. Se falamos, Nós vamos descer o rio logo logo, vamos juntos, como combinado, realizar o seu desejo, a força da dor que carregamos em nossos destinos diz O tempo passou como um rio, nossa barcaça está no cais incapaz de navegar. Ficamos a olhar um para o outro, capazes de conversas que ninguém ouvia, um condoendo-se do outro, até que nossos olhos mornos e tristes caem sobre uma pequena menina assustada, olhos arregalados, que também parecia participar da conversa silenciosa. Ela olha para Maria Júlia olhares de mil palavras, para mim olhares de mais mil, além das perguntas que lhe ocorrem sobre o estranho homem, eu, ao lado da cama da mãe. Na claridade suave do quarto seus inocentes e já marcados olhos me surpreendem e me machucam uma dor que não dói. Ela fica parada entre a sala e o quarto, o corpo torcido pela timidez mais para a sala, encostado no portal, o olhar totalmente esticado para o quarto, para Maria Júlia, aquele mesmo olhar de anzol, uns quatro anos. Os três falamos de amor, amor sem sentido, amor trágico, amor em linhas de uma mesma rede, peixes presos, amor que se debate ao ser puxado para fora do rio.

08 março 2010

O último porto do rio
50

Lá vem o Onofre, diz José Bento, custei a ouvir, a casa perdida na desolação da pequena colônia abandonada que ficou para trás ainda me prendia a atenção e esfriava-a de um vento sul fora de época, dava-me um frio de sentir o destino como um inimigo que tendo vencido a peleja oferece a mão, Lá vem o Onofre apressado, repete, e então ouço, mas sem muita atenção. Senhor, continua, há algo estranho com o Onofre, este homem é sempre lento, parado igual maré morta, e o que o faz ter tanta pressa agora é o que vou saber. Então olho para o negro que vinha, e o seu cavalo manifestava, como o dono, o descostume da pressa. Mas vinha num bom trote, mesmo descompassado, vinha, e logo nos alcançou. Vou buscar umas ervas nas bandas da cachoeira do Zé Valente, respondeu às perguntas de José Bento, Maria Júlia não está nada bem, piorou nos últimos dias, parece impaludismo, mas é coisa mais grave, todos sabem. Ele falou assim sem saber de mim, sem saber que suas palavras me alcançavam como pedras, toras de madeira desatadas das amarras, tropa em trilhas estreitas e lamacentas escorregando pelas ribanceiras. Maria Júlia já vem doente de um tempo, mas agora as coisas se complicaram, ela anda com aquelas febres e calafrios de impaludimo, está muito pálida e fraca, continua o Onofre. Um silêncio rasga o céu e cobre todas as bocas, todos os pios de pássaros, todos os borbulhos de água, fico surdo ou o mundo perde os seus ruídos. Logo, na surdez, vejo o Onofre se despedindo, justicando sua presssa e se indo na direção contrária à nossa. Tento recordar aquele dia no baile, o último, o pedido que ela me fez, mas nenhum elemento novo me dá a recordação. Sobrepõe-se sobre a recordação do baile, daquela nossa conversa, sobre o seu pedido, a imagem de Maria Júlia no cais, me olhando, me olhando, me olhando com aquele seu olhar de anzol, sua sombrinha parando-se de seus giros... Meu Deus! e, agora, na recordação, por detrás dela, ao contrário daquela manhã, ao contrário da luz do dia, o que vejo é uma lua, cheia, solene, se erguendo num céu aberto. Começo a correr, Calma seu João Francisco, melhor é manter o passo acelerado que correr, diz José Bento. Seguimos. Se não leio em mim os mapas dos entendimentos das sinas, mapas encobertos pela neblina do frio destino que como sombra me acompanha, inimigo solidário, algo me concede, na ausência dos ruídos e das vozes, a percepção do rosto de José Bento. Seu rosto vai se tecendo de umas linhas novas, uma linha de aflição se encontra com outra, que se cruza com outra, e se emaranham todas no entorno dos olhos que se lançam dezenas de metros adiante, apertados e fixos no rumo da estrada. Observo-o de resvalo, num momento e noutro, e enquanto olho me indago, sem os tais mapas dos entendimentos de viver, sobre o amor que uma pessoa pode receber, ser tão querida, e, mesmo assim, não encontrar o sol levante, ter uma vida de se alongar em noites, ser capaz de chegar até à madrugada, pertinho da aurora, mas, mas nunca amanhecer em sol. Por quê?

06 março 2010

O último porto do rio
49

Chegamos ao cais dos pretos e logo seguimos a pé por uns quatro quilômetros, caminhamos sem muita conversa, ou quase nehuma, a marcha acelerada, o ar carregando a densidade do sol forte sobre a terra molhada, as plantas respirando e exalando seus cheiros. O agreste e o doce de um pequeno canavial de um lado, de um cafesal do outro, me empurram para onde não sei, nenhuma imagem ou sentimento se abre em clareiras na memória, somente uma sensação, uma sensação de que um tempo bom que sustentou minha vida, um dia, muitos dias, resvala agora na minha pele, no veio do suor que escorre sob a camisa, mas não lhe dou crédito. Ao mesmo tempo em que o dia aberto me alivia, me torna leve, do mesmo modo, um segundo depois, me condensa um tijolo áspero que não se encaixa em nenhum dos meus vãos. Se contente vou, tão perto de me encontrar com Maria Júlia, e este é o contentamento que me faz feliz, ligeiramente feliz, vou também incerto do que farei depois, como serão os dias seguintes, que vida vou levar adiante. A estrada agora forma uma pequena reta de solo arenoso e branco, lavado, a areia brilha, a mata ao lado, um trecho curto de mata margeia o lado esquerdo, ali dentro da mata corre um córrego, um veio, águas limpinhas seguindo por baixo das raízes, muitas folhas apodrecendo em seu miúdo leito, desejo entrar nas mata para encontrar o arroio, abrir as folhas e enxergar um pequeno poço, olhar a água limpa, brilhante, correndo vagarosa. José Bento segue ao meu lado, nem imagina a intenção que tenho de entrar na mata, encontrar a água, molhar o rosto, batizar-me de vontades novas. O trecho de mata acaba, do lado direito me segue uma cerca de arame farpado enferrujado, estacas de braúna inclinadas, inconsolável pastagem tomada pelo mato, nenhum cavalo a pastar por ali, nenhuma vaca, uma vaca e um bezerro fariam ali a paisagem do paraíso, um consolo para os olhos, e o sol, o sol sorridente sobre as guachumbas força-as ao excremento do odor de cansaço, de fastio. Cheiro minhas mãos e os braços, não, não cheiro a guachumba não. Surge uma pequena casa abandonada, à direita, sobre pequena colina, olhando para a estrada. Quem ali viveu? Uma jaqueira no descampado, outra ali, um sonho de frutas abandonado, uma mangueira e algumas laranjeiras secas, estendem-se em silêncios, doces que não vingaram, brincadeiras e risos varridos, não sonhei com meus pais, nunca sonho com eles, a jaqueira à noite me aparece, apenas ela, e sua sombra da tarde. As janelas da casa desamparada são de uma banda só, abertas, caídas de uma de suas dobradiças, mas ainda penduradas, abertas, a esperar um olhar de dentro, dos seus cômodos vazios para o mundo, talvez há morcegos morando ali, mas sou eu que passo e olho, de fora, suas sombras de dor ali por dentro. As vozes dos pequenos pássaros se mostram nos arredores da casa, falam-me de seus nascimentos e suas mortes, como morre um passarinho?, conversam suas insanidades destituídas de dor e de amor e me dizem, morremos sem dor, morremos sem peso, morremos assim, como um passarinho, e riem, pássaros riem e choram, mas não sofrem. Tiro o chapéu, desliso a mão úmida da testa até à nuca, um meu Deus disfarçado, e recoloco o chapéu.

05 março 2010

O último porto do rio
48

Se o tempo continuar firme ainda amanhã subiremos o Santa Maria. Será nossa viagem de despedidas desta província como te falei. Agora invadem-me sensações de não ir, sensações de rir, rir muito, de ir-me embora sem subir o rio, me bastaria talvez escrever, e sei, poderia enviar a carta ao Porto do Rio apenas com o nome do destinatário, mesmo sem endereço, e chegaria com certeza ao autor daquelas cartas. Mas, não. Desfazem-se também as letras dos desejos de escrever ao tal João Francisco. É como se eu compreendesse que o que se sucede em fatos e acontecimentos definiu o que se deu, a leitura e o sonho. Agora sei, o que farei pelo rio acima será apenas um sobrevoo de pássaro que se despede de um prado, de um campo, de um sítio, rodando, rodando, sem tirar ainda do vento o rumo do proximo e último voo. Não me entenda aqui último voo como sinal de morte iminente, não, tudo na vida é último, o que se tem é somente a despedida, a despedida atualizada, permanente, inferno de prazer e castigo em que se diz adeus.

Tu me sabes muito bem, atravessei uns tempos de melodias e suaves arranjos com estas cartas que me chegaram, umas palavras que somei às minhas em tons de amor e coisas perdidas amalgamadas umas às outras por um leve toque de esperança. Mas agora vou, vou subir o rio já não pelas cartas, mas pelo que criei e que sei, se situa no intervalo entre o que vejo e o que já escorreu por entre os dedos.

Tuas flores, as calêndulas, tão perfeitas como nunca fizeste igual, não mais darei à senhora tedesca, minha vizinha, já não é hora de enlaçar fitas, mas antes é tarde e urge desatar e deixá-las soltas. Isto também se dá conosco florista. Esquecer-me-á tu quando a história do incêndio na casa do fogueteiro ontem à noite também for notícia esquecida e a porta que te serve nesta pequena oficina trouxer da rua outros indícios, pobres e insignificantes, de que a vida segue. As flores, tuas calêndulas, levarei comigo, bem embrulhadas e farei delas um ponto de encontro com alguém, com uma criança talvez, e dir-lhe-ei, quem sabe, com um doce e opaco sorriso, leve-as à sua mãe.

01 março 2010

O último porto do rio
47

As águas chuvosas e amareladas do Santa Maria contrastam com o dia amanhecido, com a limpidez de incertezas no ar e com o azul desesperador no céu. As águas, o ar, o azul testemunham, indiferentes, o descer de uma pequena canoa a nos levar enfim rio abaixo na direção do cais da curva dos pretos. Nem sei mais ao certo o que me move, desço porque desço, assim parece, Maria Júlia como as horas, os dias, as pessoas, escapa. O que segue, se segue, se há um caminho, é uma estrada de fuga, um desencontro irremediável. Uma dança breve, viver, talvez. Relembro. O prazer inebriante da perda dos pesos nos sobrevoos da dança me sugere uma nova e pequena ilusão. Solte-se João Francisco, solte-se, dizia Maria Júlia. A lembrança me dá a sensação do ar, mas me pesa agora por dentro da cabeça o mesmo desconforto dos passos que não voavam de início com os de Maria Júlia, mesmo que eu já tivesse dançado, e muito, com muitas outras mulheres. Tremia-me o pé direito e eu contrariava a música. Mas o alecrim, a sálvia, o funcho do seus olhos, o hibisco na pele de suas mãos logo nos fizeram o mais leve casal do salão. José Bento, entre um assovio e outro nunca completando umas das suas toadas, interrompe e recomeça a melodia amorosa e triste, fazendo nos intervalos pequenos comentários sobre o vento. Como não lhe dou importância ele repete, Este vento bom de sol é um vento de aviso, Que aviso?, pergunto afinal, pois que era isso mesmo que ele queria ouvir para me dar a resposta planejada. Um aviso bom, o dia será bom. Todo aquele rodeio com assovios e comentários sobre um bom presságio era na verdade uma tentativa de me animar, ele não pressentia nada no vento assim como eu também não, nem no sol, nem no bando de cambuciras que chilreavam pelos galhos. O que tínhamos pela frente era mais um dia, igual a tantos, um dia que se fazia bonito no ar e no céu, mas se ia feio no rio com as margens cheias de entulhos, galhos secos agarrados nas margens, bananeiras tombadas, águas lamacentas, redemoinhos misteriosos de todos os afogados do Santa Maria. Aviso, nenhum aviso, nada de bom se antecipa, nada digo, deixo que ele determine a rapidez da descida da canoa, remo no seu compasso, o rio vai, um rio lamacento. Penso, um animal morto boiando inchado e agarrado nos entulhos na margem do rio, um porco, um cachorro, vejo, penso nas cartas que escrevi, mas agora sinto que nenhuma pena riscaria uma palavra pela minha mão, uma única que fosse.