31 outubro 2007

Passei do presente e caí

Passei do presente e caí
num ponto do tempo errado.
Essa ânsia pelo futuro é quem cava buracos
na alma como a síndrome de Alzheimer no cérebro.
Mesmo sabendo demorei em perceber.
E quando me decidí voltar,
vazio de preocupações,
para dar vida aos momentos,
os de agora,
essa única e absoluta benção,
não regulei o passo,
pisei num buraco e cai
nos idos tempos em que não vivi.

26 outubro 2007

Outro fragmento

... vou
nesse vôo com asas molhadas,
viver o destino que me preenche e me pesa
me puxando pro chão,
Pro pó.
Poesia,
recolhe meus pedaços!
Proposta que me faço - sonhar.
Propósito que desfaço – só viver, sobreviver.
Por intercessão da mesma poesia,
embriago-me.
Não me embriago, tomo um porre.
Ressaca horrível. Que coisa!
As ruas não chegam a lugar nenhum.
O calor faz coçar cada poro.
Esporos de flores que jamais vão nascer
ficam grudados na pele molhada de sal
das marés avançadas do mar sem praias
do vazio que como oceano
me invadiu onde não poderia
sobre os casebres poucos que eu construíra
ao longo dos anos de trabalhos penosos
- como imigrante - em busca de outras fronteiras.
O melhor é encarar a vida, o destino, tudo
como uma terrível e deliciosa brincadeira.

Porto

Porto.
Minha cidade é um porto.
Parte-se,
chega-se,
além das coisas que vão
e que vem nos porões.
Os navios,
tão lindos no porto,
nem parecem ter porões.
Parecem prenhes de poesias,
grandões,
prontos a dar a luz.

25 outubro 2007

Exagero de azul

Esse exagero de azul que como uma trama cai sobre mim
num dia tão lindo, desses que não deveria jamais acabar,
me faz ter a noção do prazer de um esperto peixe no mar
e sua agonia de se ver na fiação da beleza do dia
puxado pra fora, sem chance nenhuma de escapar.

Já é tarde...

...é preciso acender as lâmpadas
e esperar que o óleo – ou o amor ou a paciência - não acabe
antes do novo alvorecer.

23 outubro 2007

Estou farto de não partir

Se as cigarras cantam até a explosão,
danem-se! O que posso eu?
Bem menos posso quando canto,
nem aos pardais espanto,
pois comigo se habituaram
aos meus lindos quintais.
Fico assim nesse poeminha preso em casa
desnorteado entre ver e dizer,
desorientado entre os anseios e os outros,
impedindo-me de sair por ai.
Há tantas estradas me esperando
e já estou farto de não partir.

20 outubro 2007

Fresta

Deram-me uma fresta na janela
e eu vi que as estrelas seguem seu rumo
independentemente de eu estar aqui.
Mas eu olho o universo e não me importo
se ele se expande sem me ouvir.
O que canto na janela só eu escuto,
pronto, fico feliz e me ponho a espiar mais
até que estes olhos que a terra há de comer
terra volte a ser,
planeta que circula uma estrela
de grandeza quinta
numa periferia do céu.
Enfim penso, minha vida é somente
um piscar de olhos da viva terra.
É ela que pelos meus olhos varre o céu,
sabe-se lá com que intenção.
Deram-me uma fresta na janela
e eu senti o pulsar do universo imenso
e me perguntei: O que a terra pretende
abusando assim do meu coração?

15 outubro 2007

Como você sabe

Eu sou assim
como você sabe.
Vendedor de flores no mercado,
ao lado da banca de peixes.
Mas meu pai era bonito
e minha mãe linda, linda é.
Eu sou assim,
como você sabe,
estranho, tímido, pago pra não falar.
Padeço de saudades do que não vivi,
sonho que moro nas casas que existiam no lugar dos prédios,
viajo todos os dias na Enterprise como co-piloto do capitão Kirk.
Sofro e percebo que sou assim,
como você sabe,
desigual até no modo de sofrer.
Às pessoas o tempo assusta, delas tira a beleza, a saúde...
Mas eu, eu não me assusto, nem me entristeço.
Sofro
e me consolo.
Meu pai era bonito
e minha mãe linda, linda é.
Não há escapatória,
ela me persegue,
a beleza vai me pegar.

13 outubro 2007

Palavras molhadas

Perdi o dia com as palavras
andando por caminhos com muitas encruzilhadas
em paisagens rotineiras e cinzentas
sem olhar para quem passava.
Procurei lugares onde o vento fosse bom
e me permitisse armar um varal para secar as palavras.

As palavras vêm sempre molhadas como crias
de qualquer bicho quando sai do útero.
Prefiro-as secas e leves
e por isso perambulei em busca da melhor corrente.
Quando o dia chegou ao fim
me achei longe sofrendo de vácuo
de uma perdida parte que ficou pelo caminho
que eu bem nem sei, nem me pergunte.

Do que sofro, necessito falar outra vez,
- quem me analisa que interprete -
manifesta-se numa sensação ruim a me roer
como lombricóides seres intestinais,
enquanto ando por outras estradas
onde todos me dão bom dia
e reputo-os como loucos
uma vez que aqui no centro estou vazio.
O vazio vem dessas muitas palavras úmidas
que se grudam nas curtas horas do dia
apagando-lhes o fulgor.

Palavras!
Não encontrei o vento certo.
Era tão pouco o que eu queria,
um sol que brilhasse as cinco da tarde
como brilha ao meio dia.
Palavras sem umidade, sem secreções,
sem salivação excessiva.

12 outubro 2007

Sem sentimento

Palavras que não desvelam mistérios,
nada ensinam, nem emocionam,
nem rimam, é o que aqui
em atenção a outras coisas, deixo entornar
como leite fervido sob a guarda de um menino.
Nem sei se é, mas pode. Quem sabe seja
uma tentativa de distinguir coisas que se sente,
que não seja sentimento.

Depois de viagem longa recolhendo olhares,
redondeei o mundo e cheguei no mesmo porto.
Os fardos que descarrego apressado de tanta gente
são re-sentidos sentimentos. Assim ressecados
se tornaram outras coisas, pedras,
cobras, fogo, punhais, peçonha, dores,
granadas, pensamentos doidos, poemas.

Mas, maravilhosos são os dias em que se tem
- este talvez seja um deles -
o contentamento de viver preenchido,
sem sentimento,
sentindo outras inomináveis coisas.

11 outubro 2007

Não querer dormir de novo

Eu dormia no escuro primevo
e não tinha medo,
nem sonhos.
Nem esse eu
que me enche o tempo todo
de anseios.
Acordei em mim,
me encantei com a luz
e agora sofro muito
por não querer dormir
de novo.
Será que quando eu for
o sol também vai se por
e só brilhará o amor?

06 outubro 2007

Do lado de cá do desfiladeiro

Um vento bate forte sobre a casa
que está do lado de cá do desfiladeiro.
Abre as portas, janelas, esparrama murmúrios.
Desadormeço, esqueço velhos propósitos,
me determino a fazer a coleta
em cada canto, sobre as mesas, no teto,
nos marcos, nos móveis, nos pratos,
no que se avista pela janela e pelo vão da porta.

Depois do muito trabalho que é faina diária
me percebo completamente insensato.
Todo esse afazer é inútil.
O que escrevo ao recolher o que o vento esparrama
é tão somente mais um retalho
do que já foi infinitamente costurado.
O que se marca em folha frágil
é o que na pedra com sangue já foi talhado.
Mal digo o bem dito que já foi de alguém.

Exaustivo fluxo insubordinado que não se interrompe,
ventania que não pára!
Não sei se te esconjuro ou se te abraço.
Se coloco grossos ferrolhos nas portas
ou se solto arraias nas barreiras do precipício.
Sou tomado, não tem jeito, é sina, por esse influxo,
barulho ensurdecedor, murmúrio de dor
a me exigir canções.

O que resta de mim ao fim da lida
é um espantalho de palhas,
exposto às tempestades e aos raios
para ser queimado de vez.
O problema é que a cada dia
ressurjo dos meus fracassos com uma vontade maldita
de achar no murmúrio palavras
que me permitam um grande e único salto
sobre o abismo.

04 outubro 2007

Água de arroz

Ao dirigir pelo descampado seco em agosto
minha velha caminhonete caiu num buraco
e com ela dentro de mim eu caí.
Um fio de ouro, naquele instante, me ligou a um outro eu.
Olhei, procurando alguém que me entendesse
e me estendesse a mão e me trouxesse água,
ficasse comigo até a aflição passar.
Perdi o rumo, o tino, o senso.
Quando voltei me achei o mesmo. Me decepcionei.
Terei duro trabalho pela frente.
Na verdade queria me achar outro, louco,
para desfazer os caminhos pelos pastos
em meio à dívidas com os bancos,
e abrir outros por entre os arrozais,
imaginando que na Índia ou no Paquistão
levo um belo e cheiroso pedaço de pão
para aquele menino que cantarolando vai para a escola,
e como merenda carrega uma garrafinha
só com água de arroz.

01 outubro 2007

Ao som de "have you ever seen the rain"

E vejo que alguns dolorosos instantes se vestem em trajes de gala.
Assim a beleza nostálgica do adeus em estações de trem
e o cruel "glamour" das despedidas.
Há belezas tão estranhas na vida!
Corri com aquela mochila nas costas
como um “beat” fora de época,
e tomei meu vagão.

Retornarei, mas não serei mais eu, serei diferente. Rico.
Muitos sóis se levantarão em alvoradas promissoras, sei.
Voltarei com os braços abertos
ao som de “have you ever seen the rain”.

Olhei pela janela e a vi, linda, linda,
com o aceno de quem pede: fica,
sossega, aproveita a fortuna
que está aqui.