03 abril 2013

O pássaro do livro (outro conto)



Aquele livro, ao ver aquele livro no chão da sala algo lhe veio à mente, sem definir-se bem, uma lembrança, um sentimento, uma verdade, uma saudade, ele ficava sobre a mesa, sobre o aparador, sobre a escrivaninha, tinha que se perguntar onde ficava aquele livro, o pássaro colorido na capa, não sabia, na casa dos pais?, de uma colega? e nunca soubera do que tratava aquele livro, era um romance, de um autor de um daqueles países da Europa Oriental, não lia romances naquele período, a vida exigia todo o tempo, toda a mente, todos os interesses, não a vida exatamente, mas aquilo com o qual se identifica a vida, as preocupações, os objetivos, o onde se quer chegar, o que se quer ser, ficava aquele livro em algum lugar, o livro com o pássaro em voo, saindo das tintas, uma espécie de fenix.

Era isso, tinha que ser agora o renascimento, seria, o marido, arquiteto, só sabia trabalhar, escolhera aquele velho apartamento, imenso, no quarto andar, chegara ali pela escada, seguiu seus passos, ele faria com certeza daquele velho apartamento um belo lugar pra viver, pra resnascer, ela pensava, leria o livro que encontrara ali.

Mas estava assustada, inquieta, algo lhe tinha esbarrado no pescoço enquanto subiam o último lance da escada, estava escuro, não porque era noite, mas porque o tempo estava no ponto de derramar-se num temporal  às cinco da tarde, as escuridões tantas vezes se juntam, tomara se juntem na vida das pessoas os amores, os ventos bons e as coisas boas, pensava desorganizadamente, a escuridão da noite que chega mais cedo em abril, a escuridão da tempestade que  não se despede em abril, seria o mais feio dos meses?, decerto não, sua filha nascera em abril, a mais bela das alegrias, mesmo que tenha partido tão pequena, nem mencionaria em pensamento o mês.

O quê? Perguntou-lhe o marido sem dar importância admirando o apartamento novo já brilhante em seus olhos que se voltavam para cada canto, uma coisa tocou-me a nuca, me picou,  um calafrio me percorreu a espinha inteirinha, ele  não deu atenção ao que ela falava entusiasmado com o que via na mente, as mudanças todas já implementadas, o apartamento novinho, e ela entre inquieta com o livro ali no chão, jogado, o pássaro voando da capa, ele não voava para o alto, ele descia, como uma ave de rapina, colorido ainda apesar da poeira e do desgate do sol.

Ela tomou o livro, o marido veio-lhe com carinho e bateu o livro na perna esquerda da da calça jeans, soprou sobre a capa, e passou a mão sobre ele, aqui está, disse, o que você me diz, minha querida?, e aquele minha querida ele dizia pra todo mundo, pra seus clientes, pra seus funcionários, uma coisa tocou minha nuca, ela disse, abriu o livro e deu-se com uma frase de Mayakovsky a título de epígrafe, E só Deus, na sua onipotência, soube que eram mamíferos de outra espécie, depois leria o livro, seria bom ler aquele livro, ele já tinha entrado em sua vida, haveria de se lembrar onde, guardou-o na bolsa, o marido falava e ela não ouvia e se dirigiu à cozinha, abriu a torneira e deixou a água escorrer, não ouvia o que o marido falava, ele ia e vinha, já na sua mente tudo estava pronto, ele já vivia no novo apartamento totalmente transformado, a noite e o temporal se uniam.

Depois de lavar bem as mãos ela ergueu seus cabelos torcendo a cabeça levemente na direção da luz escura, quase tocava o ombro com o queixo, seu marido agora a observava, a luz era pouca, quase noite, o temporal resvalava pelas vidraças de uma ampla janela na área de serviço, ele admirou-se de sua beleza, sua elegância, seu corpo marcado pelo vestido que lhe definia em contraste com os flashs dos relâmpagos e trovões a forma da beleza, seus quarenta anos não lhe diminuíra o esplendor, sua dor e luto, nada, era magnífica a mulher que escolhera.

E então sofreu ali uma dor inesperada, não era hora para aquilo, mas sofreu ali a olhar para ela na última réstia de luz do dia, sofreu por tê-la traído, não poucas vezes, sofreu um remorso inadequado para ele e para aquele momento, surpreendia-se consigo mesmo, mas jurara a si mesmo que tudo recomeçaria do zero, o novo apartamento seria o marco de uma vida nova, ela estava ali, isso importava, ela estava ali no escuro da cozinha, e precisava dele, ou ele começava a sentir que mais precisava dela do que supunha, em silêncio ficou a admirá-la, apenas a chuva fazia seus rumores, cantava seus cantos, o temporal entoava seus deboches e seus lamentos, ela repetia o gesto, mão na nuca, não na torneria, ele então foi ao interruptor e acendeu a lâmpada chamando-a pelo nome, havia sinceridade na doçura que impunha à voz, e assustou-se, da sua nuca escorria um filete de sangue que ela tentava estancar com a mão ora pressionada sobre o corte, ora indo à água.