31 outubro 2008

A vez do amor

Tomar o barco à tarde e remar. Ir até a ilha.
Ir para ver de lá o sol se esparramar nos confins.
Ir para olhar e escrever num caderno de capa dura,
num caderno bem guardado debaixo de uma pedra,
o desenho das águas, a história das estrelas e conchas,
o enredo dos barcos e praias, a música de cada coisa.

De tanto repetir o mesmo caminho virou esquisito
na boca do povo, no olho da vila. Um menino ainda.
Se falava muito do tal caderno que ninguém via,
onde estariam escritos mistérios e oráculos
aprendidos com a avó quando viva. Agora era só.
Mas dele também se dizia uma verdade
bonita como marlim azul:
ninguém sabia pescar como ele,
só ele mesmo entendia onde os cardumes em festa
se perdiam nas tramas das redes.

Num dia de vermelho arroxeado no horizonte,
ele não voltou da ilha. O barco também sumiu.
Lá se encontrou o caderno num local bem visível,
com uma única página escrita.
Estava escrito: sei escrever, mas não escrevi.
Eu só traçei destinos, somei o que vi a cada dia
e embelezei a ilha com o gesto da minha mão.
Brinquei de maestro diante de uma imensa orquestra.
Agora é a vez do amor, é preciso partir.

30 outubro 2008

Un cuore senza poesia è come una cattedrale vuota

...alguma coisa. Tarde da noite,
escuro como breu. Estranho ruído.
Colamos o ouvido na porta.
Alguma coisa... o que será?
Batiam à porta. Batiam nossos corações.
Depois de um tempo sentimos vontade
de dizer qualquer coisa. O que importava
era falar em voz alta e recolher o que viesse
como resposta do que batia. Nada saía.

Nada respondia.

Resolvemos, quando o barulho cessou,
bem depois, abrir a porta. Nada, ninguém.
Reconhecemos por um pequeno rastro
quem nela batia. Quem à porta batia
era uma espécie de poema
não muito conhecida, de pouco valor.
Não acolhido se retirou, sabe-se lá para onde,
e deixou na soleira da porta a tal pista,
uma frase, pequena incógnita frase:
a catedral está vazia.
Parecia a frase final do poema, perdida
pena de asa batida, que se desgruda
exatamente na hora de alçar vôo,
quando o esforço é maior.

Tomamos a pena e choramos, choramos.
Mesmo sem valor, aquele era o nosso poema,
a nós oferecido pelos segredos do mundo,
para aquela noite que vivíamos.
Choramos abraçados e depois rimos, rimos muito,
esfregando a pena no nariz um do outro,
nos olhos e nos ouvidos, a catedral está vazia,
nas mãos, no corpo todo, no coração.
Com a brincadeira e a dorzinha do poema perdido
instituímos sem perceber uma liturgia, um rito, uma magia
que celebrava o que perdíamos e o que ganhávamos no amor.
Nutríamos uma esperança: o poema retornaria,
mesmo que outro, e ainda que não mencionasse,
por delicadeza, que a catedral estava vazia.

29 outubro 2008

Os requisitos e as importâncias

Procura-se quem de veias e sangue acredita
na vida, nos mistérios, no amor. Ele
alegra-se com o anúncio. Há vagas!
Encontrará, é a chance, o que a ventura propõe,
o que sempre esperou. Já era hora.

Há que se ter entusiasmo, ser verdadeiro,
barba feita, roupa alinhada, um cheiro amadeirado
com notas de pimenta. Ser gente
é o que importa mais, mas não se pode esquecer
as habilidades antigas do vento, da chuva, do fogo...
Também ser como óculos certos para desejos de leitura,
espelho sem ferrugem onde não se vê o tempo passar,
e taça translúcida para vinho tinto, paixão.

Bem... ele assim supôs os requisitos e as importâncias.

Pronto. Fez-se a foto do candidato (sou eu?).
Ela analisou no retrato umas fumaças vazando
pelo olhar (tristeza não era, seriam meus pecados?
ai meu Deus!) No relatório final a recomendação:
é um olhar muito impregnado de constelações,
explosões, esse exagero de fogo poderá,
ela escreveu, ressecar-lhe a visão da mundo real.

Ele (eu?) foi considerado inapto.

28 outubro 2008

Um fio de esmeralda


Existe um planeta sem sol, bonito,
bom de morar, mas precisa de luz.
Vou arrecadar fundos
para mandar fabricar um fio, longo, longo
que ligue este mundo
com aquela beleza escondida.
Um fio de esmeralda.
Vou montar uma usina na bica da quina,
na esquina da casa do mar.
Quando vier qualquer chuva
e a água cair pela bica
a usina vai começar a funcionar.
Depois, quando o vento passar,
vindo do sopro na vela do barco,
do toque na asa da gaivota
e atravessar olhares na janela,
produzirá abundante energia.
Quando a maré subir e descer
dela também vou pegar essa dança
de sentimentos, maresia e saudades
que faz a luz aparecer das coisas.
Depois vou mandar para lá, para longe
pelo fio que se tece de esmeraldas.
(quase disse que se tece de esperança. Titubeio).

Se pensei esse sonho
ou delirei esse pensamento, não sei.
(Terá sido um novo movimento de amor
em velhas e fundas sombras?)

27 outubro 2008

Um suposto conhecimento

Antes da existência
ele acariciava o meu destino
nos olhares, o amor.
Tornei-me, mas sou somente
a irrupção dele num ponto
do chão misterioso.
Dobrei-me sobre o coração e pensei
um pensamento de beleza, bondade.
Espanto. Foi demais para entender...
Veio um suposto conhecimento,
o que é o amor.
O mundo além do mundo,
outro mesmo mundo apesar,
próximo. Do outro lado,
dentro quando se olha,
fora quando se vê.
Com as recordações
o espírito fez meu corpo.
O amor constrói a casa
da alegria para onde eu vou
mudar.

26 outubro 2008

O que passa?


Saber o que fazer ele não sabe.

A tarde que cai como peso,
mais uma vez é que cai.
Talentos, quantos? Muitos. Ousa.
Mas o mundo lhe engole o coração,
na estrada fica uma cratera de muitas agonias,
ou uma única perplexidade com um raio maior
do que o raio azul-dourado do mais belo poema.
A beleza lhe diz o amarelo do girassol, veja;
a água fazendo música na torneira, ouça.
Um fragmento definiria tudo, pressente,
mas o tempo passa, passa e nada,

nada, nada, nada. Sente.

O amor vai, como um trem, leva, carrega
e abre portas, lindas portas por todos os lados.
Quer acreditar. Não sabe se...
O vento do movimento do que passa
– o tempo ou o amor? –
beija-lhe a face, toma-lhe pela mão.
O amor vai, leva, carrega, passa.
Passa... ele balança.

Há muitos que não embarcam.

25 outubro 2008

Luz-água das palavras

Eu ia indo. Então,
decidiram me reiniciar
no mundo da luz.
Me pararam na curva da estrada.

Nada fizeram comigo
a não ser pôr na minha língua
como pitada de sal
umas sílabas,

sílabas-deus,
e me disseram,
Efeta! Hic, hodie!
"Lux, etsi per immundos transeat, non inquinatur".

Vida sedenta,
curva da estrada,
observar que ela toca o rio,
a sede por hoje pode ser saciada.

Vida verbo,
curva da estrada,
hodie, o respiro, a poesia per immundus transeat,
a luz-água das palavras.

(A frase entre aspas é de Santo Agostinho e diz que a luz, mesmo que passe pelos impuros não se polui. Efeta, abre-te. Hic, hodie, aqui, hoje).

23 outubro 2008

O M da minha mãe e o B do meu pai

Gavetas.
Em gavetas? mais do que isso,
em cheiros, cheirinhos puro carinho,
no tempo perdido passado,
tempo vivido e achado
em odores e perfumes,
no tempo pego pelo olfato,
descobri outro dia, feliz,
junto com coisas de mãe, guardados,
minhas primeiras letras e um parabéns
sobre a folha amarelada.
Folhas de papel almaço
unidas por uma fita azul;
na capa um menino desenhado
por detrás de um grande “um”
dizendo: o primeiro ano foi difícil,
mas passei.

Um dia, tudo,
nas origens, horizontes
entre as montanhas,
pequena colônia de imigrantes
com sotaque italiano
aprendendo português.

Gestos em ensaios,
eu lembro bem,
uma mão sobre a outra
a professora, a mãe
ensinando um caminho
que não mais, não, não tem mais fim.
Eu adorava o M maiúsculo da minha mãe
cheio de voltinhas como flores em buquê
e o B do meu pai
como a boléia de um velho F(e)N(e)M(ê).

22 outubro 2008

Desnecessário necessário para viver com mais ternura
(como escrevo poemas)

Num momento qualquer, numa sala de espera;
no vácuo de certos dias e de certos sentimentos;
na sonolência de cansaços, ou de tédios;
no retorcer de esgarçadas paisagens, escrevo.
Estátuas líquidas aparecem do nada e são solidificadas
sobre fibras de longas e dançantes árvores prensadas
ou sobre planas telas brilhantes do mundo em rede.
Falsos moinhos são movidos por ventos duvidosos
que sopram sem rumo, sem propósito, desatino talvez,
definindo cruzamentos, construindo narrativas e aparições
de jardins em geometrias; mas caóticos escritos esconderijos
e armadilhas, jogo antigo não abandonado,
que se joga sem inspiração. Elementos e verbos que se ligam
ou se desfazem, concordam ou não reagem de jeito nenhum.
Jogo permanente, viciado jeito de dizer o desnecessário
necessário para viver com mais ternura.

Noutro momento quem navega em seus próprios dentros
se leva em viagens, sublimes olhos sedentos,
em si mesmos é que vêem a beleza que avistam
no horizonte destas linhas, estátuas enfileiradas, artes brincadas,
monumentos de águas tintas e de nadas, apenas poemas.

(Disse um poeta - penso que o Leminski - qualquer coisa assim: poeta também é quem lê poesia).

21 outubro 2008

Através do deserto comigo
(não me proponho a postar longos textos aqui, mas ai vai uma exceção. Para se ler rápido e em voz alta )
Com carinho dedico aos blogueiros amigos.

Atravessar o deserto, escriba doido,
com gasturas de areia nos pés, entre os dedos,
com suor e o peso de passos longe das caravanas
para escrever em E-pergaminhos.
Querer saber o mistério sabe-se lá de quê.
Não querer mais ver tv,
nem seguir como guias, estrelas
que não tangenciam minhas elipses.
Talvez melhor mesmo seja andar
no silêncio, desgarrado.

Travessia do deserto
sem encontrar tesouros. Ouro?
Estás brincando.
O que fica...
lábios que se oferecem,
promessas. Silêncio. Peregrinação
areias, rochas, no sabor delas mesmas,
enquanto os caravaneiros e rebanhos se deleitam nos oásis
com tâmaras e passas
e cafés de puro perfume.

Atravessado pelo deserto
no silêncio cortado em dois,
em três, em mais, em mil,
ter que se ver cara-cara e enfrentar
o que não se quer ver. Avistamentos
da alma, de eus, de óvnis, de corpos,
câmaras por todos os lados filmando a desgraça,
cortes que se arregaçam em revelações apócrifas,
evangelhos de tão poucas boas notícias.

De través a diária e desertificada escritura,
o silêncio da página, janela,
amplificador de sussurros,
perceber, escriba, afinal,
que tudo não foi senão o efeito de,
doidejo,
gorjeios de pássaros-bússolas
essa pulsão para fora, para o sol, para o grande nada,
o minúsculo tudo, numinoso, apavorador.
Eles, pássaros, criam rastros
marcam as palavras,
migalhas de achados, grãos de significados,
ao mesmo tempo em que os devoram.

Desertar da pretensão da saciação, fome maldita,
me leva, me incita, me excita e decreta
minha sina na ponta dos dedos,
na ponta do lápis,
da caneta ou de qualquer coisa que sangra um sangue
sem nenhuma paga ,
doidejo pleno, êxtase pela metade.

20 outubro 2008

Amarras molhadas
(não à violência)

Como uma reza, uma salmodia
ele dizia não me sinto bem,
não me sinto bem. Fustigado
por olhares, acuado num canto da rua
reagia como se estivesse amarrado,
puxado por um caminho que não queria.

Ameaçava chover, mas não chovia,
aumentava o calor e as pessoas diziam
vai chover, vai chover. Ele não,
não pode chover, não, não.
Preciso morar longe da chuva,
preciso viver longe da chuva,
o diabo me persegue molhado, eu fui avisado.
Ninguém entendia o que se passava.

Do meu ponto eu olhava, olhava. Mesmo de longe,
frio, tudo eu via, tudo eu ouvia. Me compadecia.
Julgaram-no louco, drogado, bêbado e foram embora.
Eu fiquei. A noite chegou e o centro se esvaziou.
Me aproximei e relâmpagos caíram. Chuva forte.
Ele ainda repetia baixinho o diabo me persegue molhado.

Quando cheguei ao seu lado eu esperava um sorriso
mas ele só foi capaz de apontar para mim apavorado
e repetir o diabo me persegue molhado. Chorava.
Frio, olhei para ele por detrás da caixa de papelão
e depois para mim mesmo, encharcado... sorri.

...como em outras vezes, me dei conta de quem eu era,
mas logo esqueci, no momento exato do estampido do tiro.

Coitado! Quem lhe meteu esta bala no ouvido?




19 outubro 2008

Endiecendo

Bondade tua em querer ir adiante no escuro comigo.
Nos passos me ensinas a ver as faíscas do meu próprio nome.
Na poesia me colocas a carne e o sangue de ser límpido
e me incitas à convicção de ser diverso logo mais, ser dia.
Ah, mistérios e viagens de pássaros e espíritos,
sopros iluminados em brunos salões e cavernas.

Tu me convocas a fazer o coração e as vistas, dia;
os pés e as mãos, dia; as tripas e os sonhos, dia.
Estou endiecendo por bondade tua. Já me alvoreço.
Oficiarei a sagrada dança do este ao ocaso, horizontes de abraços.
Me destrevei. Nem que seja só agora, enquanto escrevo...
(o que só é... um pretexto do prazer, nada mais).

18 outubro 2008

Bye

Mira meus olhos, se vão em outras jornadas.
Veja como me escorrego no sofá
e como minhas mãos se entretêm com uma linha curta.
Escuta, há muitos encantos na vida, mas eu...
eu perdi muitos deles sem querer. Vivendo.
É o que todo mundo quer. Viver se ganha perdendo.
Então nos descobrimos em direções contrárias.
Você viu minha ousadia e minha ingenuidade e
construiu um sonho. ...Linda!

...

Eu? Bem, é difícil dizer,
espera... eu me vejo como uma estrada
no fim da tarde quando ainda não se pode parar.
Imagem imprecisa? Não me exija demais.
Meu espelho não é de prata... Temos que ir,
já está na hora. Não demora o sol vai nascer.
Vamos amanhecer ganhando boa estrada.
Onde está a chave do meu carro, do seu? Meu cigarro?
Ah, o sorriso. Sim... Eu prometi. Sim... Linda! Aqui... bye.

17 outubro 2008

Absolvei as pessoas

Comiam o dia.
Não sei quem, nem que dia.
Quem estiver no terraço
será outro, diferente.
O cadáver da flor
deixará cair a semente.
O juiz dará à noite
a posse do tempo.
Foi ela que comeu o dia.
Absolvei as pessoas,
senhor juiz,
gente passa com o tempo.
Gente não come dia,
gente vive de alegria,
e quando não tem,
aguenta.

Vejo o céu. Escuro.
A noite não tem luar.
Você se pega doido no terraço?
Eu também. Me desfaço no sol
do dia seguinte.

Não sei onde planto a semente.
É um amorzinho.

16 outubro 2008

Tintim!

Há que se ter cuidado na colheita destes frutos das tristezas,
são delicados, são cerejas, framboesas e morangos.
São romãs, maçãs e rubis, vermelhos de dor, frágeis.
O amor neles é um sabor a se distinguir. Tristezas:
ninguém sabe a hora dos cálices em que transbordam os sumos,
onde começam e onde terminam as estradas e o que elas trazem.
Talvez levem cada vez para mais longe. Há que se ir.
A colheita destes frágeis frutos não se vende.
Vendem-se livros usados,
o suficiente para cobrir as despesas das demoradas andanças
e festas
entre uma colheita e outra.
Tintim! Saúde!

14 outubro 2008

As palavras podem pegar

Ando sofrendo de um sentimento de porto, sei lá,
preciso falar, danei a ver as pedras escuras do cais
brilhando, brilhando como se fossem estrelas.
Acho que são portais para a felicidade. Penso
muito nisto quando estou em alto mar.
Você acredita? Mas é segredo, por favor.
Falei para alguns, ninguém valoriza essas visões.
Você me entende? Não posso falar, mas só de pensar...
as palavras se levantam em alvoroço, doidas;
querem se organizar em versos sobre o porto
e falar das pedras que brilham no cais.

O fogo escasseia por dentro nas veias,
uma chuva de outubro mais fria do que se espera
se soma ao sal, ao cansaço, ao suor.
No desalento também sinto desejo de ser pedra,
Você já sentiu isto? Vez ou outra
quando descarrego os peixes do barco
um zombeteiro, bêbado, falando das horas que me sufocam,
do trabalho que me mata, e das pedras que brilham,
chama-me de aluado, doido, corno. Não respondo nada.
As palavras que quero dizer não posso,
para outras então é melhor calar. Você concorda?
Mas às vezes o que ele diz me dói. Caio em mim
e chego a ouvir o baque surdo da dor,
por dentro, sabe como? Peixes, peixes, dor, gelo
queimando os dedos, peso quebrando o orgulho,
você já sentiu essa queimação?

Até o mar quando tem manchas de óleo
bate e amordaça as pedras do cais
para que elas não falem o que sei, o que vejo.
Elas brilham, volto a dizer, não sei se confio em você
ou se necessito falar. Falo. Deus é verbo.
É febre o que tenho? Sinto dor no corpo. Você é doutor?
Isto vai passar? Voltarei a ver as pedras só como pedras?
Ver o cio das coisas, ver Janelas em pedras,
de que me adianta? Mas eu sei, acredito,
o que escapa até da música as palavras podem pegar.
Se você também acreditar falaremos juntos.

12 outubro 2008

Combinei com o porto

Combinei com o porto, numa noite qualquer,
quando a previsão do tempo anunciar
sol e céu aberto para a manhã seguinte,
afundar todos os navios. Todos. Os do centro,
os do tubarão e os da barra. Barcos e botes também.
Não os afundaremos por maldade, mas,
por brincadeira, para que no dia seguinte
encarando o sol pela frente, no alvor, lindo,
a cidade possa ver os navios emergindo,
trazendo do fundo do olhos outros mundos;
e será bom contemplar os mistérios que estão abaixo,
os que estão acima do horizonte e outros ainda
que viajam nos espaços entre um olhar e outro,
além daqueles que se disfarçam na flor
que murcha sobre a mesa. Quem sabe assim,
estas paisagens nos embarquem em descobertas
de que as coisas são coisas, rugas na superfície
do mar-luz-esmeralda-liquor medular,
o doce nada, beleza que nos inunda
e nos desenha como lavas solidificadas de um fogo
que escorreu das explosões de um único e grande amor.

(Ao mesmo tempo é tão bom existir rente às coisas,
coisa com coisa, mesmo que só por um tempinho,
elas são tão bonitas; e poder tocar,
cheirar, comer, ouvir e ver, ver, ver.
Vamos ver os navios no porto, vamos?)

10 outubro 2008

Lágrimas abafadas

Caiu sobre o porto uma nuvem escura,
na imaginação um mar avoluma suas ondas,
porcos de uma alta barreira se lançam, assombro,
as bolsas nas capitais do mundo despencam,
águas espumosas ouvem seus baques em pedras vermelhas.
Os navios ancorados se avistam pelas luzes sobre as águas
como se um feiticeiro tivesse destravado cadeados de livros
e topázios de poesias emergissem enflorecidos de planta marinha
realizando recalcado desejo de crescer sobre os mares.
Estranho, a sedução das sombras em belezas raras
para quem se entorpece com o azul e a luz
do mundo que gira em empenadas rodas nos trópicos.
O dia fechado logo cedo, a sombra, o trabalho esperando
me lançam do porto este poema de sustos,
dirijo sozinho pensando em você, no que poderemos fazer
com a nossa felicidade. Como lhe peço para voltar?
Luzes dos navios de dia, topázios de poesia,
a mente voando. Christ, send-me the right word.
I confess, “I’m so tired of being alone”.
Dói o que espontânea e vagamente recordo.
No youtube encontro e canto, “I’m so tired of being alone;
I’m so tired of on my own”.
Caiu nuvem escura e ainda não chove para desaguar de vez
– chove, chove, pelo amor de Deus – sobre o porto estas águas.
“Won’t you help-me, girl”.
A ave, o porto e a falta de amor

Lá de cima do penedo constituído guardião do porto
a ave-dos-olhares sobrevoa meus pensamentos e me ensina
poderes santos para avistamentos de encontros, beijos e desejos.
Mas estou longe, muito longe em ansiedade, sentimentos
não sei bem quais, em mim falta de amor, isso sei.
Cargas retorcidas em contêineres viscerais carrego
mar afora bem longe ainda do cais que espero ver.
Faço um trato em oração com o porto
de não lhe negar um olhar qualquer que seja,
bem que veja em troca meu coração
o favorável pássaro guardião e me ajude
a reencontrar aquela parte de mim mesmo
que esqueci de olhar.

08 outubro 2008

Vejo o cais

Passo bem devagar
procurando lanternas abandonadas ao longo do porto,
andando com cuidado e certa ansiedade.
Vejo o cais abarrotado de anjos dançantes nos guindastes
e fantasmas melancólicos sobre as sacas de café.
Vieram de outros séculos e de outras águas
seduzidos pela cor, pelo cheiro, pelo mel da ilha
e pelo desejo de palavras em português.
E se prenderam me esperando,
a mim ou outro assim, endoidecido.
Deparo-me com um velho navio
maior do que pensamento que tira sono.
Nele embarco e desembarco num instante,
logo encontro entre cargas e estivadores,
sem entender, rosas amarelas ainda guardadas
em muitos botões prontos para serem esmagados
como se fossem uvas.
Esta é a rotina em porões, em corações
que sofrem delírios de encontrar um vinho novo.
No sabor, licoroso; na cor, de ouro.
Vinho proibido, luminoso, para ouvir da vida
seus conselhos. Antes do esmago
recolho o que posso e arranjo em janelas
estes botões que desabrocharão
sem hora certa em rosas solares
quando um passante borrifar neles
seus olhos úmidos de poeta
recolhendo de suas pétalas
com a ponta da língua trêmula e sedenta
gotas do vinho arcano que muda de sabor
de acordo com a dor e a luz de cada um.

07 outubro 2008

Porto qual será?

Hora marcada as flores, estrelas e pessoas têm a sua,
pra vir à luz e pra partir com ela. Porto qual será?
Atual é a hora e as vontades dançantes das marés,
mudanças, fluidez, tentativas, acaso, milagres, vida.

O porto define, comanda, seduz e conduz a cidade,
distribui o amor para alguns, a fortuna para outros,
uma certa saudade, maresia e poesia para todos,
além de fazer pensar, pensar... Como viver?

Na demora chega a chuva e o ônibus. Ele embarca, senta
e se apoia no vidro da janela.Vai pra casa. O que leva?
Olha para o porto – não há coisa mais linda –
para as águas, os guindastes, os contêineres,

muitos sentimentos, algumas luzes, os navios atracados,
um se indo, o apito – como dói – divulgando segredos e amores
de estivadores, catraieiros, prostitutas, imigrantes e marujos
dos mais de quatrocentos anos do cais. Que vida viveram?

Ele não sabe se ainda é tarde ou se já é noite, é triste.
– se uma luz tivesse que acender, teria dúvidas.
Sopra o vento sul, lágrimas bonitas escorrem nos vidros,
a chuva engrossa, embaça a vista, a vida segue. Para onde?

06 outubro 2008

Os dois pássaros

Atravessou o escuro bem escuro,
e a vida continuou a mesma.
Fechou cortinas e persianas
e a vida continuou a mesma.
Procurou o livro dos mistérios
e a vida continuou a mesma.
Então veio um dia quente
derramando azul por todos os lados
e ele teve lucidez para pensar
que os dois pássaros podiam estar ali,
e não tão longe onde procurou.
No exato meio do dia ele abriu janelas e portas
se jogou sobre o chão qual monge que relaxou na vigília
e se cansou das orações, hinos e compostura.
Inebriado pela luz difusa buscou nos cantos da casa,
no barulho do dia, nas paredes, no teto,
nos pensamentos, por dentro, debaixo das móveis
os dois luminosos pássaros da felicidade.
Só encontrou um... e ficou triste.

04 outubro 2008

Vai entender? nem mesmo eu

Recordo-me, esquadrinho meu peito, ressinto
desejos atrevidos pela minha mesma vida.
São estranhos estes momentos, andamento,
sou espetáculo e sou olho engastado, paisagens.
Montanhas equilibradas em beleza e desgaste,
córrego miúdo que pacientemente refaz suas curvas,
pomar cheio de frutas e mato, esquecido.
Vai entender? Nem mesmo eu. Me examino
traços e mau cheiro, espessuras e defeitos, imperfeições
que por dentro - nem sei se em mim - crescem,
crescem e me matam, ao mesmo tempo em que
estruturam uma ambição de brincar, brincar. Sem saber
pintar atirei as tintas no chão e marquei nelas meus pés
para escrever na língua desoriente
outra versão desta frase que me pronunciam.

02 outubro 2008

Quando a alegria vem

A vida era um corredor ainda a pouco, escuro,
- talvez ainda seja - e agora se ilumina para várias saídas.
Tudo o que há, há de ser bom daqui pra frente,
e invadirá minha casa, meninos em algazarra.
Temo não saber lidar com a alegria, e espantar as crianças
como quem espanta borboletas frenéticas
do entorno da lâmpada. De nada adiantará,
preciso acolher o que é meu,
quando a alegria vem, vem mesmo,
ainda que passe, ventania sem chuva.