30 dezembro 2011

Cansa-se, mas continua a pedalar, segue, levanta a cabeça e vê o nublado da tarde. A volta para casa sem dinheiro torna-se longa, não havia vendido senão uns poucos doces, nada, a festa logo se dissipou depois da missa por causa da chuva, afetou-se de uma tristeza, sem querer, mas não se entregou, recolheu o pouco dinheiro contado mais de uma vez, daria ao pai. A cada vez que somava as poucas notas queria diminuir no peito a distância que o oprimia. Agora, nos pedais da bicicleta, cansava-se de viver, mas não, não desistia, esgotado fazia ainda mais fortes as pernas para pedalar e subir a ladeira na curva da estrada sem descer da bicicleta. Para chegar em casa tinha uns oito quilômetros pela frente. Queria comprar novos sapatos, já se ia em tempo de namoros, estava de olho naquela menina, Mirian. Casaria-se com ela, sabia. Tão linda, mais doce do que linda, tranqüila e tímida. Linda afinal, pois que lindeza é a soma disso tudo e outras coisas, o olhar, o olhar com a cabeça levemente inclinada para frente, as mãos grossas do trabalho na lavoura e brancas como leite, a voz de segredos e de modinhas de amor. Mas ainda não tinha o dinheiro dos sapatos, nem pediria ao pai, tão pouco conseguira na festa, tinha que dar um jeito no único par que possuía, reforçar a sola, engrossar as trincas e rugas com cera preta e então polir, polir, polir com a velha flanela. Chegou ao topo da ladeira, olhou sem muita demora para a estrada triste e solitária que se espichava para trás, mirou adiante e pensou, 1954 vai ser um ano melhor.

21 dezembro 2011

Ela se levantou e foi à janela, nada queria dizer, mas disse, entre a obrigação e o costume, você devia ter me ligado. Olhava para um jardim que ainda era bonito, mas já se percebia a falta de uma mão cuidadosa. Aquela frase, você devia ter me ligado, já era uma frase perdida, se ele tivesse ligado ou não, não fazia mais a menor diferença. Ia seguindo com aquilo, a vida, a vida, a vida ia, um teatro, uma invenção que se encarna em dores cotidianas das quais ainda era incapaz de se desvencilhar. O sonho, ah, aquela história de viver os sonhos... Então se imaginou num grande teatro, a peça retratava a vida e a decadência de uma importante família, ela suavemente virou-se para ele, deu-lhe seus olhos, os mais verdadeiros que podia representar, amor é o que marejava em cada brilho fosco do olhar, e disse novamente sem dar importância às explicações, mas você devia ter ligado. Ao dizer-lhe assim a frase percebeu que tinha engolido o me. Ninguém haverá de perceber, disse para si mesma, e este pensamento deu-lhe no desempenho do papel um ar mais humano, denso, complexo. Ao mesmo tempo, para coroar a cena, imaginou como fundo musical eu sei que vou te amar, ao piano.

20 dezembro 2011

Uma onda vem com uma instantânea abundância de alegrias, pequenos intensos contentamentos, um flash de momentos que apresentam gentis, amáveis pedidos. Um carro segue pela estrada empoeirada, numa tarde que ia chover e não choveu, tarde temperada de um frescor no ar e uma amiga luz no céu. Pintou-se o tempo, num instante, num arco-iris de resquícios de coisas da vida. Que boa sensação, sensação de viver, sensação de que a beleza que se escondia, sorridente se apresenta agora nos eventos mais ordinários, numa estrada que faz suas curvas no coração, num carro que levanta as poeiras dos dias, uma estrada qualquer, um carro indo embora, feliz. Ali, nos campos por onde o carro passa, vai um cavalo solto em disparada. Um menino corre também, rindo, rindo, rindo, e quando o carro passa ele acena e continua correndo como se ele e o cavalo e o campo e a estrada e o carro constituíssem a dança, a dança que desdobra a dor, que explica o caminho da estrela. 

19 dezembro 2011

Era um nada que estava ali por detrás dos olhos, por entre as folgas do pulmão em cada respiro, um nada, como um grito depois do último eco, quando se olha as montanhas sozinho e nem se tem vontade de ir, nem de falar, nem de cantar, nem de assoviar, nem de sentar, nem de ficar de pé. Olha-se apenas, e alguma coisa estabelecida na alma impede até um pequeno volver do pescoço ou do globo ocular. O olhar cancela-se de sua inquieta dança entre aqui e acolá e fixo chora, seco, chora, sem piscar. Então se ouviu um chamado, um insistente chamado, o cão latindo, latindo como se visse ali um perigo. Era humano o perigo de tornar-se outro, nascia-se no silêncio.

09 dezembro 2011

dizer umas palavras. Ninguém prestava muita atenção, mas havia ali um desejo de dizer. O som, as luzes, as pessoas ocupavam todos os lugares. Queria dizer riacho com areias brancas e águas transparentes, mas não, não disse isso, apenas sorriu timidamente, e deu-lhe o bilhete. Na verdade me contaram depois que ali estava escrito: tenho muitas cismas na mente, e receios no coração, e um titubeio na voz... mas escrevo: te amo  

18 novembro 2011

luto, tristezas e uma certa paz

Quem desejar pode me acompanhar nesse exercício ( acho que exercício espiritual) em que vou me deixando falar sobre o luto, clicando aqui no Lados multiplicados.


Desnorteadas tentativas - 3

Foi num outro dia que nem sei qual, dois ou três depois do nosso último encontro, que ele, meu pai, reapareceu. Ele, acredito, tivesse alguma intenção em me dar aquele tempo de solidão. Deu-me um tempo de dor de solidão não por ausência de vivos, mas pela ausência de mortos. Eles cessaram seus ruídos, perguntei-me acerca dos motivos e nada encontrei como resposta. Na verdade sofri de solidão rodeado de pessoas, destituído abruptamente dos ruídos como mensagens, deles sentia falta, da sutileza de suas palavras, pequenos movimentos no revés das coisas. É bom que se diga, contudo, antes que esta história, este conto ganhe outras conotações, que eles, os mortos, não vem falar dentro do meu coração, não falo de alocução interior, falo de movimentos e sons aleatórios do mundo que são tomados por eles como palavras para suas frases, língua que eu não entendo, mas que são modos de dizer coisas dos mundos. Eles falam, eu ouço e não entendo, invento sentidos, dou-me ao trabalho de traduzir barulhos em pequenos poemas que logo esqueço, pois que não os registro, mas o que importa é saber que algo acontece entre nós, somos presença uns para os outros. Bem, ele apareceu, é isso o que eu ia dizendo.

16 novembro 2011

Desnorteadas tentativas ( título provisório) - 2

E ali, no seu desaparecimento fiquei, e ouvi o que era possível ouvir, um ruído aqui, outro ali, enquanto as horas silenciosas e frias passavam lentas, levantei-me fechei a janela e fui para a cama, a porta levemente empurrada não fechou, ficou a um palmo do batente e por aquela abertura jorrava uma pequena e muda cachoeira de luz vinda do abajur acesso na sala, o sono não veio logo, os olhos fechados e apertados repetiam-se autonomamente na construção de cenários, rostos, palavras,  desnorteadas tentativas de aliviar o peso do dia, ou modos de impor-lhe, mesmo sem querer, uma outra carga. E então, a tentativa de aquietar-se e dormir foi rompida, a porta ia e vinha pacientemente fazendo tinir a lingüeta da maçaneta no batente, mas sem força suficiente para fechá-la, favorecendo assim com seu ruído a construção de todo um mundo, que é de onde vem estes contos que te conto. Pensei se não seria ele que voltava, talvez lá os mortos não tivessem noites, nem cansaços, nem sono, nem necessidades de refazer-se para as lutas, e a porta ia e vinha com aquele movimento insistente de dizer o que eu nunca seria capaz de decifrar, sílabas incompreensíveis, formação repetida de uma única e breve palavra. Levantei, tomei uma sandália de borracha e ali coloquei, respeitava assim a vinda dele naquela cachoeira muda de pouca luz se ele quisesse voltar, e forçá-lo-ia a dizer na língua dos vivos o que ia me dizendo com aquele bater frágil de porta. Voltei para a cama e então foi a porta do banheiro que começou a falar com um singelo e sonoro e lento e macio e doce e incompreensível ruído. Então compreendi, ele me queria ajudar a dormir. Adormeci

14 novembro 2011

Desnorteadas tentativas - 1

O tempo é uma estrada pequena, ele foi dizendo sem desviar o olhar do vão da janela como se a janela fosse o nicho de um santo de devoção, tinha o olhar de quem já morrera, mas era vivo, estava tão vivo e eu tão apagado de cansaços e cenários nublados, como os mortos podem estar aqui?, morreu a mais de trinta anos, pensei, mas me consolei com sua presença, tanto tempo sem vê-lo, e ali estava ele, era bom vê-lo ao meu lado, ali, solidário, como se sentisse o que eu sentia, sua voz naquela frase era tão confortante, como quando um pai ensina um filho a andar de bicicleta, ele olhava pelo vão da mesma janela, e eu perguntava-me se nossos olhares se influenciavam de uma mesma luz, ele olhava lá fora, lá fora ele e eu enxergávamos, ou apenas mirávamos um ponto, aquele ponto bem no verde da colina em frente, o ponto que coincidia com a velha mangueira perdida no pasto, árvore boa estendedora de sombra amiga em que, em dias como este, o gado se achega assim de manso ao alcançar a tarde o meio do seu curso, algo imprecisamente em torno das belezas e tristezas das horas da tarde, ele dizia, olhando a árvore gasta por tantos olhares, o tempo é uma estrada curta que pensamos grande, e fiquei atravessado de espadas, um punhal de gumes finíssimos, sentíamos a mesma ausência, os dias se tinham ido tão rápido, mas era como se os dias passados se constituíssem num único dia, tão perto estava o adeus, a despedida, a ultima palavra balbuciada com brisas e suaves movimentos dos lábios. Quando tornei a olhar para dizer, pai!, já ele não estava ali, nem nunca estivera, algo em mim criara-lhe a forma, dera-lhe a palavra, o olhar, tudo era meu, era minha a janela que dava para o escuro da noite.

11 novembro 2011


me pego na música
pássaro
me prendo e escuto
as estradas que passam
no vento. Sigo
quando penso,
quando penso que não,
a música e o pássaro
se capturam
em confidências de sim,
e eu no entre
entre eles
vou

05 novembro 2011

Ao abraçar minha mãe
- arcano do céu desvendado em amor cotidiano -
senti na sua pele branca de mãe italiana,
vindo do interior do seu coração,
o bálsamo indescritivelmente bom
de salas com tetos altos, janelas amplas,
portas abertas, acolhida certa,
horta orvalhada, montanhas altivas...



... e lembrei,



forçado por movimentos agradáveis no peito,
do interior do Estado do Espírito Santo
de onde migramos nos anos setenta.
Vitória, ó cidade de Vitória!
Uma das mais lindas do Brasil.
Tu és agradável aos olhos como uma visão de mãe,
mas o interior, o interior do Espírito Santo,
ah, o interior...


... é Deus.

24 outubro 2011

Proclamações do apocalipse do fim do dia

Ali, sentada, na tristeza da tarde, quase noite, quando não importam as lamparinas, apenas as estrelas importam, importam como uma espécie frágil de consolo, ou de companhia, ou nada disso, ali à porta da larga cozinha, sentada nos ladrilhos gastos do último degrau ela descansava das lutas do dia, de ter vivido de trabalho, ela descansava batendo na mesma tigela de tantos sabores uma meia dúzia de ovos com gemas vazantes de forte amarelo. Depois acrescentaria outras cores, verdes e sabores. Vinha-lhe a velha gata enrolar-se nas pernas, ela nem percebia. Ela, a gata, a cozinha, os cheiros, as chamas no fogão, o fim da tarde, a tristeza, a felicidade, tudo era uma coisa só. Olhava tudo, sem prestar atenção em nada, olhava porque olhava, porque tinha olhos, porque era costume ver aquelas paisagens, com amizade, com intimidade e indiferença ao mesmo tempo, olhava o pomar como uma longa faixa escura recortando as montanhas acima, olhava as montanhas e seus parentes que lá moravam mais altos, agora em suas casas abocanhadas pela escuridão, escuridão ainda maior pelos avisos dos pássaros em suas proclamações do apocalipse do fim do dia. Enchia-se o olhar no amarelo nublado pela noite nos ovos batidos, enchia-se daquela felicidade, daquela mornidão de viver, viver, viver. Haveria de levantar-se do chão com cuidado, a gata já acostumada com os empurrões iria por ali numa curta meia volta, e depois retornaria, amaciava-se ainda mais a gata em suas pernas, apesar dos empurrões, nunca teve nenhum arranhão das unhas do felino, depois se dobraria com cuidado para pegar a tigela, tinha a coluna ainda maravilhosamente flexível, naquele dia doia-lhe mais o joelho esquerdo.

15 outubro 2011

Era rouca, levemente áspera, mas nela havia uma maciez de voos

Uma voz no limite, um canto destes pássaros de alturas, um sussurro entre dormir e acordar, entre cantar e gritar, entre ficar quieto e entristecer-se. Vinha a voz lhe dizer qualquer coisa assim difícil de entender. Uma única vez ele me confidenciou isso nos longos anos de amizade. Era rouca, ele dizia, levemente áspera, mas nela havia, hoje entendo,  uma maciez de voos, de tempos vagos perdidos em algum lugar pedindo resgate. Era a voz um lençol de coisas, de sentimentos que não se delineiam em nenhum padrão, roupas num varal defronte ao azul de dias bonitos e tristes, voz que ele ouvia, que ouço e tu também, eu sei, se me permites. Um quê de não sei onde que vem e  diz, vai, pega a estrada. Ele olhou o perfil das montanhas recortadas nos olhares e se foi. Não foi, é claro, assim tão rápido, foi com demoras de tardes solitárias, de chuva miuda por dias, demoras de entremeios de domingos nublados e cartas por escrever. Rápida é a história, de muitos anos, na brevidade deste relato que fui encarregado de contar-te. Ele não tinha um destino, tinha vários, tantos que se perdia entre eles. Há deste tipo de pessoas por ai, talvez até conheces algumas. Sempre fora assim, desde a escola, quando por entre as lições que não deixava de ouvir, se desorientava entre o rio que corria impassível, tranqüilo, e o redemoinho que se levantava inesperado em folhas secas e espíritos. Recolheu a voz no peito, como se tivesse morrido, de certa forma tinha sim, e se alargou em passos por uma estrada que não sabia aonde ia dar. Nos passos dele aquele dia dei também os meus. Não te nego, contar-te este conto, que tão pacientemente ouves, é uma forma de reviver. Mas os tempos que pedem resgate nunca são resgatados, eles apenas se reescrevem nas novas páginas das estradas que vamos vivendo.

11 outubro 2011

Múltiplas mãos dançam suas sombras em cada letra que deixo nestes papiros

Estou rodando o caleidoscópio que é a vida e olhando. Olhando e vendo tempos em meus escritos... e resistências. É como se eu dissesse, não sou consumidor de palavras, sou vivo o bastante para não ser apenas consumidor, leitor; sou marcado por tantos tempos que não posso ser apenas consumidor, sou criador. Há em nós um impulso intempestivo, um desejo produtivo, um anseio de poesia. Mas bem sei, o que criamos, criamos em parcerias com o tempo, em parcerias entre nós – algumas bem disfarçadas - e em outras mil parcerias. Múltiplas mãos dançam suas sombras em cada letra que deixo nestes papiros luminosos à minha frente. Sou, somos, a mestiçagem de tempos, de dores e poesias, de vivos e mortos. Somos uma mistura ainda não muito bem mexida entre os sulcos na terra rasgada pelo arado e as avenidas barulhentas, entre a carroça e o satélite, entre tinteiros e  bytes. Estamos na interseção. Bem... não sei. Estou apenas rodando o caleidoscópio.

08 outubro 2011

Tempos que se avizinham das minhas mãos nos seus menores tremores


Escrevo assim como vocês também escrevem, escrevo marcado pelo que vou sendo, pelos modos atuais de produção de subjetividade que nos constituem, e que inclui esta máquina humana pela qual nos afetamos de suavidades e intensidades. Nossos cadernos maravilhosamente tiveram suas páginas misturadas. No mesmo folhear o olho em seus doces e amargos enxerga traços, digitais reveladoras de anseios, sonhos e desejos, cicatrizes e belezas, as nossas. Nossas poesias e buscas que se adensam e criam asas aqui por detrás dos dígitos, das fontes, nesses nossos computadores, telas, tecidos e pergaminhos pelos quais jorram em fabulações nossas almas e corpos.

Sei, vazam, escorrem no meu texto uns tempos que marcam meus dizeres como seus domínios, e plantam suas bandeiras em cada pequena colina de palavras deste pequeno escrevedor. Uns tempos, maiores do que eu, é claro, bem maiores, imensos, mas que me incluem, pequeno nome em compêndio de larguíssimas páginas. O século XIX, o XX, e o XXI. Tempos que se avizinham das minhas mãos nos seus menores tremores, que me habitam nos sonhos mais escondidos; tempos anjos ou fantasmas, espíritos, vozes, todavia, e que falam nessas titubeantes grafias. Tempos que me temperam, espero.

Quero em gratidão e delicadezas dar nos meus textos, quaisquer que sejam, umas linhas, uma cor, uma nuvem, um parágrafo, um espaço, um riacho, ou uma vírgula que seja para o século XIX. Tantas histórias bonitas ouvi sobre aqueles meus que eram daquele século! Aquelas vozes ainda me embalam, me embarcam, me despacham em viagens, como numa tela de cinema em sala com poucas pessoas em plena tarde de um dia qualquer da semana. Tantas vezes ouvi como foi atravessar o mar e se aventurar pelas matas do Brasil, que esta para mim é “a história”. Deixar a própria terra e em navio abarrotado, lançar-se para outro mundo. Antes de qualquer outra história, da bíblia, infantil, da televisão, da literatura, esta é a história, a história que sempre me conta e se reconta nas esquinas dos meus textos. É a primeira. História contada recontada, ou seja, contada por alguém que já nascera aqui, mas que fazia questão de torná-la marca de vida naquelas crianças, contada por alguém que queria marcar a memória como atualização de aventuras e sonhos, coragem e determinação. História sem letra e papel, apenas voz e coração, contada, cantada num português muito precariamente assimilado, na voz de avôs, no lusco fusco de noites em que sentir o bom de viver incluía lembrar, em carinhos e reverências, os que morreram.

Tempos, meus tempos, eu tempo, em tempo...


Continuo depois com os outros séculos.

07 outubro 2011

Uns passarinhos assustados voaram



Estava ali para dizer, mas o que queria mesmo era ver, e não dizia nada, apenas rodava o botão da camisa sobre a meada de linha que lhe dava sustentação no tecido como se desse a um mundo uma ajuda no seu movimento de rotação sobre os próprios eixos. Abaixara a cabeça sem saber o que dizer, à porta, nem dentro nem fora da casa, o que desejava mesmo era entrar, ver. Seria muito bom ver, outra vez. Não se cansaria de olhar. Tinha esquecido o recado. Só sabia que deveria ir ali levá-lo. Mas qual recado? Guardara o destino, esquecera a palavra, juntava demais destino e desejo. Tenho que voltar, disse ainda de cabeça baixa, vou buscar o recado. Ao levantar a cabeça esgueirou o olhar gotejante para dentro da casa, para as suas sombras, para os seus segredos e intimidades para tentar ver o que tanto desejava... e não viu. Só ouviu a doçura da voz perguntando, quem é, meu bem? Saiu em disparada. Haveria de voltar repetindo as palavras do recado, não esqueceria, e, quem sabe, ao postar-se à porta de novo ser-lhe ia dada a sorte. O homem voltou-se para dentro da casa, o sol se intensificou sobre a estrada, uns passarinhos assustados voaram.

04 outubro 2011

Gave me the gift old song


Se lhe falo talvez você venha a me entender. Talvez. Como a tarde se avizinha de palavras sussurradas é bem provável que você se avizinhe dos meus pensamentos. São tantos, me perco e talvez você se perca também. Personagens fugazes confundem o leitor. Perdoe-me. Olhe, se possível, olhe o que corre na voz de Nina Simone, ali estão algumas caligrafias, muitas palavras que aquele personagem queria dizer, e não disse. Ele só cantava uma canção, uma canção que se lhe tinha sido dada. O nome dele era Epifânico, e trabalhava com lavouras, umas cabeças de gado e fazia arte com couros, selas e arreios. Sua voz era densa, corria as montanhas em lombo de cavalos marrons e lá do alto gritava o grito do mundo, ou outro grito, não sem o mundo. Ali ele espreitava o mar, quem sabe veria um pedacinho do mar, se dizia que se avistaria o mar da montanha certa, dalí, pelo olhar ele fazia soltos seus anseios de ir-se até o mar, de subir o Convento da Penha e rezar, agradecendo a canção que lhe vinha à mente sempre que voltava pra casa e encontrava os filhos, todos pequenos e barulhentos em torno da esposa, sob a luz parca de uma única lâmpada pendurada em fio bem do centro da cumeeira. Mas ele queria dizer isso que agora lhe entrego como missão. Por favor. Diga você. Ele se foi, não entrou em nenhuma história, ainda não, talvez ele mude de profissão, talvez seja aviador ou preparador de mudas de cerejeiras. Mas, de mais, o que se pode contar? Para que se avizinhe você do que peço, digo que restaram as montanhas, tantas possíveis poesias e a voz. As montanhas doces do Espírito Santo, um pequeno rio que deságua talvez no solene e alargado rio doce, possíveis poesias e outras histórias que você inventará, como esta, assim, como esta, de marca e cicatriz de chuvas e tardes que parecem tímidas crianças em primeiro dia de escola. Você sabe reconhecer essas tardes, eu pressinto. Tudo o que o amigo, a amiga precisa para dizer as palavras do Epifânico está ali na voz. Se bem que me exagero no que pesa nessas chuvas na janela; algumas caligrafias estão ali na voz, outras estão no que pousa como pássaro sobre suas próprias mãos. Seja abundante na recolha das palavras, naquelas que diria o Epifânico, e que venturosa e suavemente agora dirá você. Ali, veja, ali, bem ali, na voz de Nina Simone que canta Compensation.

27 setembro 2011

Mas havia uma certa luz vinda de não sei onde

É um pretexto, eu sei, algo que se inventa para uma conversa que parou. Tem uma cena clichê, mas apesar, é certo, este início exige um olhar caolho. Quereis se ter em vesguices por um minutinho? Foi assim, chovia, o dia frio se findava nas luzes já acesas e nas cozinhas quentinhas das casas lá fora, tu vinhas andando com pressa entre os canteiros, mas como também eu seguia com a mesma pressa, e em sentido contrário, nos esbarramos, nos desequilibramos, caímos sentados, caíram as flores que carregávamos. Mas havia uma certa luz vinda de não sei onde. Tu tinhas colhido rosas, e exatamente as amarelas, que para mim são as mais bonitas; e eu margaridas, uma braçada de margaridas, e ainda no embornal atravessado no peito muitos morangos bem firmes e densos de vermelhidão. Teu pai sempre nos espiava. Tua pressa e a minha tinha o dia seguinte - mais uma feira livre - como motivo. Ainda tínhamos que organizar muitas flores e verduras em maços, muitos morangos em caixas, inhames, vagens, muitos pensamentos em folhas. Mas rimos muito, lembras? Éramos tão felizes. Tu recolhias minhas margaridas e eu tuas rosas. A chuva era mais forte. Pelo jeito engraçado que dançávamos recolhendo as flores, os pés afundando nos canteiros fofos e molhados, quem nos visse pensaria que aquilo era cena de um filme japonês. Mas o que aconteceu mesmo foi que nosso olhar caiu sobre nossas mãos, ansiosas, calejadas, molhadas, marcadas de terra e flores, que se tocaram no impulso de apanhar a mesma flor. Foi o tempinho só de um olhar... pronto...  Lembras?

24 setembro 2011

Ninguém sabe onde

foi o que encontraram, o rádio ligado e um relógio com o mostrador amarelado de voltas e revoltas que parecia cansado, jogado ali sobre a mesa naquele quarto frio e vazio. Alguém o esquecera ou o deixara ali. As janelas fechadas, os vidros molhados marcavam um frio próximo, vizinho, invasor. Esfregou as mãos numa tentativa fracassada de dar-se alegria, só conseguiu um ânimo, um leve. No radio uma voz de pequenas cidades, campos e caminhos cantava lookin’ for a good time. Ele só queria ir para Califórnia, tinha pela frente uma longa estrada, e longa estrada é apenas outro modo de dizer que só lhe restava uns poucos sonhos, mas ainda os tinha. Chorou. Ele só queria ir para São Francisco. Iria, de um jeito ou de outro, tirou a mala de debaixo da cama que já estava arrumada com suas poucas coisas, conferiu uns poucos dólares com olhar de desejos de multiplicação, poucos eram, uns centavos a mais de poucos, os colocou no bolso com medos, bateu a porta do quarto quando se cantava nothing better to do. O relógio ficou ali, girando, girando seus ponteiros sobre o fundo amarelado da vida. E fundo amarelado da vida é apenas outro modo de dizer que ele não conseguiu chegar à Califórnia. Ninguém sabe onde.

executar a invenção

semelhanças com curvas de estradas, com redes dependuradas em casa de pescador, com vaso tombado num quintal cheio de folhas. Penso em outras semelhanças também, semelhanças com aquele personagem de Guimarães Rosa em A terceira margem do rio, que se posta numa canoa, e pelo olhar do filho não ia à parte alguma, “só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio”.  Paro aqui... pra mudar o rumo do pensamento, pra fazer outras conexões, pra alterar com abrandamentos o bater do coração.  A invenção... executar a invenção de se permanecer, assim, talvez, ao modo de se permanecer no espaço de uma felicidade, pequena, mas que abre hectares e mais hectares para o cultivo de girassóis, ipês, milho; se permanecer na amplidão do campo de uma saudade e recolher a madeira abundante ali para uma casa de cômodos aconchegantes e varanda vistosa, casa para muitos amigos;  se permanecer nesse abraço cheiroso e dar-se sem receios ao esquecimento, ao esquecimento das horas.

22 setembro 2011

Fronteiras

As fronteiras estão postas, muitas, eu mesmo as coloquei, algumas pelo menos; mas eis que as palavras me sorriem em convites para passar dos limites. Decerto estes limites atravessados vão me possibilitando saúde de poesia, uma frágil força de passarinho, uma insegura certeza de abelha.  Mesmo e apesar dos estranhos movimentos de dança que se dança quando se vem aqui, aqui além da fronteira, e desses trejeitos estapafúrdios que se levam de cá para lá grudados no andar, no olhar, no falar, é impossível viver sem vir. Cada vez que mais se vem embrenhando por estes outros lados, mais modificados ficam os traços da fisionomia e as linhas dos tecidos que se vestem por dentro e que se dobram fora nos gestos. Mas as mudanças não são nem para pior, nem para melhor. São experiências de fazer-se outros. Experiências que marcam, mesmo que só por um instante. Se olhos se arregalam em estranhezas e perguntas indecentes, em meios sorrisos ou em gargalhadas, outros se dão em proximidades e conexões de peles e almas; e é tão agradável, bonito. Não há, no entanto, garantia nenhuma de lucro, de vantagem vindo aqui, montado neste dorso rugoso das palavras em voos irregulares e de rotas indefinidas. Há um leve prazer, mais do que prazer, uma certa paz. Uma certa

21 setembro 2011


pelas manhãs de setembro

Faz-se uma janela ali, abre-se um lago de luz. Ele olhava a manhã e tudo estava nela, tudo. Mas nada estava completo, apesar de pleno. Vou pescar, ele disse. Como vais pescar, o outro perguntou e exclamou ao mesmo tempo. Vou pescar, ele afirmou novamente. Mas havia ali naquelas palavras um outro “vou pescar”. Se te conto agora este conto é pra te fazer um convite. Talvez ele se lembrasse de um poema, um poema de Pablo Neruda, talvez. As certezas se diluem em uma espécie calma de satisfação e anseios. As palavras que aqui ficam voam em várias direções. O poeta falava em pescar luz caída, com paciência, de um poço - que imagino escuro. Caem muitas luzes de volteios macios pelas manhãs de setembro, e não pescar será um desperdício.  Vou pescar.

19 setembro 2011

o último pássaro que avistei

Ele se sentia faminto de dizer umas luzes nesse escuro em que  tateava vagarosamente letras em relevos. Mas dizer poesia é dizer o grito que não pode ser escrito. Estás louco, o outro retrucou, haverias de ter em tuas mãos os calos do trabalho, as cores das tintas com que deverias pintar estas paredes, isso sim, és desorientado desde o ventre da tua mãe. Aquele, no entanto, ouvia sem reclamar. Retomou a palavra e disse que havia em si um desejo de dizer o que não sabia, e só saberia tateando as letras em relevos. De que falas? Onde pensas teus caminhos nessas loucuras? Sossega. Não, ele respondeu, este escuro não me cega, apenas me faz chorar, não me faz louco, apenas me faz desenhar em tateios nessa parede de relevos o vôo do último pássaro que avistei. E quando eu encontrar a rota do vôo tu também em desejos de luzes e sol vai desdobrar  tuas asas mansamente, alongando cada músculo, estirando cada pena, de modo a descobrir em ti mesmo um tamanho muito maior que o que te acostumaste a saber.
conexões azuis, lilases, vermelhas


A árvore vai secando nas pontas... eram vagens de inverno, cheias de sementes, coisas, olhares, outros dias que cairão em manhãs cada vez mais densas de luz. A árvore marca um passo, esse que se dá na rotina, um leve correr das coisas, sem sobressalto, nada de excepcional, primavera, setembro, um dia depois do outro, a vida seguindo. Então já era hora de ir, abraçou-a mais uma vez, um beijo e um leve carinho, vento suavemente sul, imponderáveis conexões azuis, lilases, vermelhas. Talvez não seja outra coisa senão paz, é..., ou algo nas suas vizinhanças, paz, aquela que se percebe também no tronco grosso de anos, e rugoso e belo da árvore que seca suas vagens, que faz reluzentes sementes.

18 setembro 2011

e dizer, a vida

Ali está o livro de Rubem Braga, crônicas tão bonitas, mas o olhar cai sobre um vento. Sim, escorrega pelo vento e vai. Abre-se uma janela, e outra, e outra e o olhar vai sobre a cidade, sobre os campos e a linha de trem. Vai tonto de ser feliz, certo de ser feliz. Talvez nem seja bem felicidade, seja só uma cidade, a da vida, essa situada ali, a lhe dizer qualquer coisa do tipo cachoeira e cheiros, mar e azul de setembro, café e tarde livre. Ou talvez seja apenas idade, idade de ter visto muitos amores, e viver muitos outros, e flores. A orquídea resiste e propõe outros entendimentos, totalmente inusitados. Ah, é bom que se diga, o olhar assim no vento pode até ter uma asa que bate de um jeito que parece o bater de asa infeliz, como asa de beija-flor. Mas, sim. Sim. Acordar e dizer, a vida. Mas dizer é viver... E  se pode escrever... acordar, feliescrever a vida... seguir.

17 setembro 2011


Amigos, vou retomar a atualização do blog. Deixo por enquanto o inesperado sol e passo a publicar fragmentos, escritas que se fazem nos intervalos, escritas que não me exigem maiores elaborações. Um prazer de um descanso, um sobrevoo, outro pensamento, qualquer coisa assim.


Um olhar que diz

As lembranças... suavemente afirmam. Afirmam: o presente não é tudo. Um arrozal de cachos maduros em dia de sol é uma lembrança. Cortar a flor dourada, fazer os feixes, sentir o cheiro do azul do céu em cada cacho encurvado de grãos. O presente é, mas as lembranças fazem o presente, este átimo de tempo, ser vagaroso, delicado, bonito. Se assim não for, o presente será apenas tensão, passagem de ar em espaço estreito, assovio, apito, aviso do fim. Tu não sabes o que falas. Talvez, respondo. O que pensas do agora? Penso que vale um olhar, de amor, amor também para quando o agora já não for mais presente, for passado. Um olhar que diz, vai, não te prendo, se teu caminho é ir, que seja assim, vai e me leva, e me arremessa de lá, do lugar das coisas guardadas, recordadas, me arremessa para a vida.

16 setembro 2011

A sala


A sala recolhia um silêncio e pintava com ele as paredes, as janelas e a limpidez das vidraças. Mas carecia-se de silêncio ali. Era assim que sentias. A sala fundamentava o silêncio nas tábuas enceradas, rangentes e retas que se estendiam solenemente da porta principal para os fundos sob cada móvel. Mas, apesar da boniteza da sala, escapava-lhe a música, faltava silêncio, era o que tu me fazias crer. A sala fazia suavemente tremular o silêncio em cada pequeno movimento da alvura das cortinas. Mas o silêncio não estava ali. Ele estava lá, talvez lá, bem onde a asa de um olhar consegue fazer tremer a flor prestes a cair da galha mais alta do ipê. Ou, quem sabe, o silêncio esteja, não sei ao certo, nas franjas do teu sobressalto ao acordar, no fluxo de sangue acelerado que sentes no coração, ali, naquele momento súbito em que se tem a chance de se apoderar dos sonhos da noite. Não? Nem sempre te apoderas dos teus sonhos?

28 julho 2011

Inesperado sol

73

Os meninos o acompanharam e Augusto não se incomodou, gostava de vê-los ali nos seus passos, como se fossem filhos, passos silenciosos, talvez também os meninos tivessem compreendido que a morte sempre vem com silêncios que se jogam sobre todos por um momento, os passos se cadenciavam, os silêncios vem e logo se vão, ocupam seus lugares sem muita demora os barulhos e vozes da vida, pegou o carro, os meninos subiram na carroceria e então soltaram as palavras e os risos, apesar de um tanto contidos, mas já se afastavam do peso da morte de dona Estelita, o poder da morte parecia se esvair naqueles sorrisos, naquelas palavras leves que trocavam sobre o carro, sobre dirigir, riam de qualquer coisa, de um balanço maior do carro que se dirigia para onde o padre estava, o padre entrou na boleia e também ele se ia em semelhanças com os meninos nos sentimentos que deixava à vista por entre as feiçoes e os modos, parecia aliviado de alguma dor, cantava baixinho outra música, queria Augusto sentir a mesma coisa, não sentia, não era luto o que o cobria, era a urgência de ir embora que dobrava-se sobre seus olhos com nuances de cinzas e fumaças.

30 abril 2011

Inesperado sol

72

Um ondulado toque de campainha, vento esfregando-se em algo de metal pendurado, avisava que o trem atravessaria um pequeno túnel, atravessaria uma pequena escuridão de alegria, de felicidade, de emoção, de sair de si, Estelita apoiou sua mão sobre aquela no seu ombro, o padre reergueu a coluna, levantou-se, o gerente se aproximava, Luzia e seu neto também, e outros, o padre saiu sem falar palavra alguma, padre Marcos? Luzia perguntou ao cruzar com ele no quarto aproximando-se da cama sem esperar resposta, certa da execução dos cuidados que se exigiam a partir daquele momento, ele respondeu sim e se foi pelo corredor, saiu para o quintal, andou por ali, tomou um cigarro, pôs nos lábios e fumou apressado fazendo um movimento de pássaro, erguendo a cabeça como se olhasse para o céu, como se procurasse frutas, para soltar a fumaça, depois saiu para a frente da casa, cumprimentando um, cumprimentando outro, e foi pedir ao gerente que o levasse de volta, tinha suas coisas também para arrumar, suas despedidas a fazer, uma conversa com o bispo que buscaria ainda para aquele dia, o céu carregava-se de nuvens que anunciavam chuva para o fim do dia, Dias veio correndo, disse que o padre esperasse um minutinho, a dona do bar ali por perto olhava o padre como se não olhasse, dividindo-se, o rubor do seu rosto era ainda mais forte, resignação de um lado, sonhos de amor de outro, tudo amarrado num olhar manso e simpático, seu marido, o Barroso, controlava-se de um ódio que fazia brilhar seus olhos franzidos, media cada passo do Dias, logo veio a avó Luzia e abençoou o padre com um longo e apertado abraço, te conheço Marcos, desde pequeno, te conheço, e como se falasse a um menino bateu-lhe com carinho a mão no rosto e disse, vai com Deus, vai com Deus, vou, respondeu sorrindo, sim, tenho certeza, vou com Ele, despediam-se os dois do padre.

27 abril 2011

Inesperado sol

71

Ao fim da música percebeu Estelita que lhe chamava a voz, aquela que vinha se pronunciando com ares de sabedoria, a voz que ela supos fosse a de Deus, mas não era aquela exatamente a de agora que dizia, Estelita, chamando-a quase com exageros de intimidade, havia alguma coisa nela, contudo, igual à voz de Deus, e de familiar também, ao mesmo tempo, era e não era aquela voz, tentava entender, mas se era assim familiar não seria a de Deus, Deus não se mostraria tão simples como um de casa, disse para si mesma, ou pensou, não conseguia distinguir bem, não separava a fala do pensamento, a viagem vinha influindo em alguma coisa em sua cabeça, sentiu vontade de tomar aquele chá em que misturava manjericão com algumas folhinhas de alecrim para reavivar a mente, Deus não seria assim tão comum, ele se manteria a uma distância, pensava numa distância sagrada, uma separação, algo como aquela entre o altar e o primeiro banco da igreja, e olhou, olhou e ao olhar procurando onde se avolumava aquela voz, se deu conta que todas as poltronas estavam ocupadas, não conhecia ninguém, mas sentia como se fossem todos conhecidos de longa data, como se houvessem glândulas e suores semelhantes a definir proximidades e parentescos,  a voz tinha cessado, Estelita olhou o rio e provocou uma conversa com um jovem ao lado que viajava quieto, com um certo ar de brabeza, e querendo ser simpática, ou tomada de maneiras de professora, disse, como é lindo este rio!, ele olhou-a espantado como se dissesse essa mulher está maluca, que rio que nada, senhora, falou revelando sua origem rural, o que vemos são cavalos pastando sobre uns morros que precisam ser roçados, tão cheios de mato estão que os pobres animais tem que andar muito pra comer o suficiente, se vê que tem chovido pouco por estas bandas, Estelita olhou de novo pela janela e viu o rio, lindo, o trem passava bem ao seu lado, lá se ia o rio, ainda mais largo naquele trecho,  tocando uns singelos e verdes sítios lá do outro lado, não sei como esse menino está vendo cavalos, pensou, pobre menino, Estelita, de novo, Estelita, agora ouvia aquele chamado ainda mais próximo, e antes que procurasse de onde vinha seu nome uma mão se estendeu por cima da poltrona,  tocando seu ombro, Estelita virou-se lentamente, sem susto, e viu aquela mão como se fosse uma luva de maciez, uma mão de menino numa voz de homem sobre seu ombro esquerdo, viu com cheiros, cheiro de pele conhecida, tão perto estava do seu rosto, meu Deus, tremia-se toda, meu Deus, repetia, falava sem falar, mas todos ouviam sua expressão meu Deus, e voltavam-se para ela, a mão, a mão, aquela mão, meu Deus, era seu filho, e ficou parada no sobressalto esperando a palavra mãe, e então responderia com toda a alegria e felicidade, meu filho, meu filho, meu filho, mas já não seria necessário dizer palavra alguma, bastaria virar-se e olhar seu rosto.

24 abril 2011

Inesperado sol

70

Era fraca a voz do padre no hoje é o dia das rosas que enfeitam formosas, era baixa, titubeante, como se negasse o que a canção afirmava acerca do dia, era bonita a sua voz contudo, tornando-se mais firme no ah que tristeza viver sem amor, ah que incertezas de amor nessas mãos, seu pé direito ora levantava-se nos dedos ora no calcanhar cadênciando-se na marcha-rancho, e ouvindo o padre cantar foram se retirando do quarto os que ali estavam, davam-lhe privacidade para a administração dos últimos sacramentos, a avó Luzia pedia a todos que deixassem os dois sozinhos, recolhia a xícara da mão do padre, deixava-a livre para os gestos que a oração iria requerer, os toques, pele sobre pele intermediada pelo óleo, corpo e corpo e espírito entre eles escorregando-se na testa, nas palmas das mãos, o Senhor venha em teu auxílio, perdoe os teus pecados, alivie tuas dores e sofrimentos e te conduza, alguém esbarrou-se por ali, Augustou deixou cair as chaves, o molho tilintou-se pelo chão, tinha ligeireza nos pés, Estelita nem havia percebido como voltara aquela esperteza que sempre lhe fora característica, ultimamente andavam as pernas tão fracas, pisava agora leve e ligeiro, firme, sem perder a elegância, ia pelo corredor do vagão como se por entre as fileiras de carteiras em sala de aula, da mesa ao fundo da sala, do fundo à mesa, à lousa, tantos nomes encravados nas madeiras, manchas de vidas, azuis, tantos meninos e meninas que por ali passaram, destinos desconhecidos, longe, por onde andam seus alunos?, homens e mulheres que um dia por aquelas carteiras passaram, uma aflição no rosto, olhava um, olhava outro, procurava, voltava, já estava ao lado da sua poltrona, percorrera vários vagões procurando pelo filho e, nada, sentou-se, ouvia a voz do padre, por que lembrava-se do padre agora?, gostava de cantar quando o padre vinha passar umas horas com o povo da vila, que filho Estelita? ressoava em sua mente aquela pergunta como se o padre estivesse ali na poltrona ao lado, não estava, até seria bom tê-lo por perto, como o padre não sabia do seu filho?, como?, devia contar-lhe, o padre guardaria o segredo, não era pecado o que diria, mas ainda assim segredo, não, não queria mais guardar segredo, que proclamassem para todos, guardaria somente o amor, o filho, seu filho, tivera um filho, seria bom cantar com o padre dia das rosas, o padre canta tão bem, poderia ter sido cantor, hoje é dia das rosas que enfeitam formosas, parecia ouvi-lo, o olhar pela janela pesava de saudades e de uma certa felicidade em cada recorte que o rio fazia na paisagem, por que o berço da flor vem do encanto de nós, que nascemos de nós e vivemos de amor.

21 abril 2011

Inesperado sol

69

O padre entrou no quarto, sentiu que ali o cheiro de ervas era mais forte, tudo estava no seu lugar, cada coisa no seu devido lugar, nunca tinha entrado naquele quarto, mas pelo que conhecia de dona Estelita e do restante da casa bem sabia que cada objeto, bem limpo, estaria onde deveria estar, e dentre as coisas limpas estava dona Estelita, ela mesma como uma peça daquele cenário, leve, elegante, fina, estirada sobre a cama, já como uma morta, meu Deus do céu, pensou o padre recriminando aquele pensamento de morte, mas seria melhor morrer mesmo do que ficar ali, um animalzinho embalsamado e seco como se desitratado pelas horas de meio-dia em dias de janeiro, o lençol de um azul macio levitava sobre a cama habitado somente por um manso sopro de vento, ondas brancas de calma e despedidas se aninhavam entre o colchão e o lençol em pequenos respiros, então ela respirou mais forte, tocada decerto pela voz firme e convicta do padre, queria que sua voz fosse afetuosa, calorosa, mas tinha saído mais firme do que calorosa, sua voz tornava-se bem marcada pelos sentimentos quando cantava, gostava de cantar, muitas vezes cantou com dona Estelita, formando com algumas pessoas à porta daquela casa um grupo de prosas e cantos, dona Estelita também cantava muito bem, ela gostava especialmente de Maysa, disse, oi Estelita, bem que eu estava com saudades, aqui estou, como você está?, e seguia pensando enquanto ia dizendo suas palavras introdutórias, enquanto vencia o constrangimento de não saber o que dizer, antes da administração do sacramento da unção, que pontes ó Deus, que pontes se estendiam por sobre os seus desfiladeiros e os dela de modo a tornar a conversa entre eles sempre tão agradável?, o cheiro lhe fazia bem, queria ir ao quintal num outro caminho, mas estava ali no quarto, e dona Estelita morria, a xícara também estava onde devia estar, gostava do cheiro de ervas, a xícara branca era ornada de finas e leves flores azuis e vermelhas, sobre ela o pires a impedir o chá de perder ainda mais rápido a quentura ideal, tomou a xícara e sentou-se ao lado da agonizante numa cadeira que alguém já havia providenciado, meu filho, padre, preciso falar do meu filho, disse sussurando dona Estelita, que filho Estelita, quer um pouquinho de chá?, oferecia carinho oferecendo o chá que ela não tomaria, você não tem filhos Estelita, meu filho, padre, preciso dizer, meu filho, vi suas mãos, não vi seu rosto, mas as mãos eu vi, Sim estelita, fale, eu escuto, meu filho, padre, meu filho está aqui no trem, que trem Estelita?, estamos aqui na sua casa, tentou dizer o padre, estamos viajando, respondeu Estelita, eu e o meu filho estamos no mesmo trem, padre, mas não encontro meu filho, acho que ele deve estar num outro vagão agora, sim Estelita, sim, disse o padre sem mais querer contrariá-la, descanse Estelita, descanse, agora vou ungi-la, obrigado pela unção, padre, mas cante, cante, vamos cantar... cantar?, perguntou admirado o padre, sim... cante... dia das rosas.

17 abril 2011

Inesperado sol

68


Por-se naqueles passos pela sala afora, pelo corredor no caminho do quarto onde estava dona Estelita esparramava pelo seu corpo a sensação de procurar com urgência um documento por entre papéis guardados e não encontrar, nâo encontrava o sentimento certo para aquele momento, procurava um que fosse norteador, muitos se aproximavam do coração, comprimiam-lhe as veias, a casa de dona Estelita cheirava a ervas, e a casa para onde mudaria?, tinha estado lá pra pensar, pequena casa na encosta do morro, cheirava a mofo, a poeira e a podres de madeira, cheiros que exalavam na solidão seus reclames, venha alguém, venha alguém, limparia tudo, queria aquela casa, não queria luxo, queria um lugar para viver sua solidão, onde pudesse se recolher depois da faina com peixes, tão pequena a casa, tão grande parecia na infância quando a vida sorria-lhe para além do que se vive, sorria-lhe no que a vida tem apenas naquele período, quando se vive sem se considerar a morte, vive-se a imortalidade, e agora, ao pensar na infância, tinha o sentimento religioso mais genuíno de imortalidade, nas brincadeiras, nas ingenuidades felizes de criança a vida não comporta fim, ela é, como Deus é, era alfazema? não pura, havia outro cheiro, manjericão talvez, ou alecrim, vinha aquela onda macia de cheiros da cozinha, ia pelo corredor, os retratos dependurados em parede branca recebiam-no com bons olhos, perdidos olhares de vozes sussurantes, distantes, e acima das portas, margeando o forro de madeira pintado de branco, um palmo ou mais abaixo, se ia como um caminho de fábulas uma faixa de tons bem claros de azul com uns arabescos em azul marinho e detalhes em tons róseos e verdes, sempre que visitava dona Estelita observava aquele requinte na casa envelhecida, sonhos de outros tempos, formosuras de vidas vividas em outras épocas, queria fazer outros caminhos, da sala pelo corredor para a cozinha, para a área dos fundos, para o quintal largo, fundo, fundo, quase uma chácara, queria andar por ali pelas sombras úmidas e agradáveis, onde o vento revirava-se em movimentos brandos conforme o bater de asas ou o canto de algum passarinho, era o que desejava, ouvir dona Estelita andando pelo quintal, e ao mesmo tempo procurar goiabas, pitangas, araçás, e falar, falar dos seus caminhos, da decisão tomada, da felicidade da nova vida que arriscaria viver, ouvir dela depois de longo silêncio, depois de um ou outro assunto desviante, de frutas oferecidas, toma padre, este araçá, vê, tão grande e cheiroso, quase do tamanho de uma goiaba, experimenta esta pinha, padre, vê aquele jambo branco que o senhor tanto gosta, e então, entre uma fruta e outra, como se ela fosse capaz de dizer coisas sem o uso das palavras, ouvir, ouvir dona Estelita dizer, teus passos serão abençoados em qualquer caminho, segue teu caminho, e o teu caminho, padre, é aquele para onde alumia a laterna que tens no coração, confia.

08 abril 2011

Inesperado sol

67

O ar bom resvalado no superfície macia da baía vinha-lhe às narinas como uma confirmação dos caminhos que devia seguir, caminhos, hodós, 'odós, a mente povoava-se de traços cruzados, idéias de outros tempos, vinha-lhe à mente as aulas de grego no seminário, hodós, as letras gregas tão bonitas, gostava de desenhá-las em seus cadernos, inventava palavras simplesmente trocando do português as letras por correspondentes do alfabeto grego, 'odós, caminho, jornada, o caminho seria o do mar, deixar o sacerdócio, limite que se oferece, que se entrega, que se dá zombeteiro, como a loucura se avizinha do artista, como a morte se avizinha de quem vive, a cada um o limite se entrega de um jeito, sem escapatória, não, não, não seria o limite do sacerdócio o seu abandono, não, qual seria?, não sabia, rebatia-se a si mesmo, a decisão, decidira, vinha de um bom tempo de muitos pensamentos e agora ela chegava, deixar o sacerdócio, deixar e tomar o caminho do mar, ser pescador, velho sonho, velho desejo, quem sabe até comprar um barco de pesca, contratar uns homens, ganhar a vida com o próprio negócio, beira de praia, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai pro mar, cantava em pensamento, o olhar cadenciava-se aqui e ali pela estrada pelo tilintar das chaves nos silêncios, muitos olhares, de cada um ali, estavam lado a lado, mas emergiam do mar das vozes caladas em olhares, as vozes de cada um condensavam-se em olhares, o padre olhou o portão da velha siderúrgica e já se abandonava de pensar sua decisão, cansado de escrever as mesmas frases nos cadernos volumosos dos pensamentos, pronto, estava decidido, a guarita abandonada, a caixa d'água parecia ainda mais alta, a água mais abundante escorrendo, que desperdício!, mas que bonito!, o ar bom soprava um aroma azul de satisfação, de liberdade, de vida sem dor, sentiu-se leve, sentiu-se bem, como em viagem que se quer muito fazer, como dia de folga no verão, respirou fundo, queria parar ali e ir andando devagar, dono de si mesmo, nômade nos rumos, mas Dona Estelita o aguardava, sabia disso, sabia que ela o esperaria, conhecia de anos aquela boa mulher, exerceria com amor aquela visita, seria a sua despedida do ministério, era grato a Deus por isto, ressuscitaria com ela, se aqueles forem de fato seus últimos respiros ressuscitaria com ela, marcaria os sinais sagrados com a mão bem untada sobre sua fronte, em cada mão, nas conchas aveludadas de suas mãos, em gestos lentos, demorados de carinho, diria as palavras com carinho, ficaria possesso de ternura, ganhara isso da vida como padre, enternecia-se com os pobres, os doentes, as crianças, por esta santa unção o Senhor venha em seu auxílio, ficaria com ela no escuro até que fosse possível, acenderia a vela, seguraria a vela na sua mão, a vela brilharia para os dois, pavio miúdo para escuridão grande mas pavio acesso, não permitiria que se apagasse, apagaria a vela depois em silêncio, cruzaria aquelas mãos de mãe, mãe mesmo e apesar de não ter gerado filho, bondosas mãos em pouso de ave sobre o peito estático, sobre árvore despedida de folhas, sobre o coração pleno, parado, realizado, ungiria-se ao mesmo tempo do óleo do amor na decisão, teria a alma leve, os pés colocados nos passos de um tempo diferente, para o que der e vier, passos resgatados das inúmeras possibilidades deixadas para trás, por onde andaria agora se não tivesse tomado o caminho do seminário aquele dia?, passos como coisas guardadas que se redescobre novas, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai para o amor.

03 abril 2011

Inesperado sol

66

Ser apenas um pescador, voltar para um destino será possível?, pensou o padre olhando longe, será possível retomar passos não dados?, a vida seria ir para o mar, e voltar quantos dias depois com o barco bem suprido de peixes, entrar pela baía feliz por voltar do mar, tudo, qualquer coisa vista como valor de vida, bom de viver, uma caneca de café, uma conversa no cais, descarregar os peixes cantarolando, receber do patrão um dinheiro e ir para casa na encosta do morro e olhar um pedaço do mar, o mesmo que o pai avistou, a mãe, ele menino antes de ir para o seminário, fazer uma prece simples, olhar aqueles retratos na parede, o olhar do pai, austero, nobre, a mãe, tristonha, meiga, rezar ao fim do dia uma única ave-maria, na hora triste, e nada mais, nenhum outro pensamento de Deus, sobre Deus, senão aquele que passava pela saudação do anjo a uma menina, como se as palavras não se separassem e formassem uma única e longa palavra dita de uma vez e pronto, a reza estaria feita, o dever cumprido, e se entregar à vida, jogar-se num sofá para ouvir Elis Regina na vitrola, voltar a agulha para o mesmo ponto do vinil e ouvir, tá na hora e no tempo, vamos lá que esse vento traz recado de partir, meneou a cabeça para dispersar os pensamentos sem convicção de querer esquecer o que pensava, beira de praia, não faz mal que se deixe, se o caminho da gente vai pro mar, cantou baixinho, os dois sem saber o que ele cantava se entreolharam, continuou, tanta praia deixando sem saber até quando, as chaves tilintando, já tinha decidido, só faltava decidir o dia, talvez agora, talvez a visita à dona Estelita fosse uma antecipação, a madurez do fruto, a decisão, se antecipavam os eventos, não tem mar que me espante, não tem não, anda, vem comigo que é tempo, vem depressa, cantou em voz mais elevada, o que você canta padre? perguntou Augusto, uma canção triste, respondeu e continuou, mas ainda assim é bom cantar, você conhece essa música? começa assim, ê, ô, tá na hora e no tempo.

30 março 2011

Inesperado sol

65

Lá do outro lado da baía, em ar de sol totalmente desimpedido, sobre o monte verde, branco como um anjo a plainar distraído sobre a terra e o mar, o Convento da Penha, e o olhar do padre que se levantou para lá era um olhar de quem queria estrada de beira de mar, passos em areias macias, cheiros silvestres e maresias, Augusto sentiu vontade de perguntar alguma coisa, não sabia o quê, aqueles desejos eram seus, talvez, o padre vencido pelos sacolejos voltou-se para a paisagem ainda com o livro aberto nas mãos, Augusto tentou descobrir que livro era aquele, fino para ser um livro de orações, manuseado tantas vezes que as tintas da capa marron já há muito haviam se dissolvido de letras em verniz para não ser um livro de reza das horas, e olhando para o outro lado da baía, mas como se no livro encontrasse aquelas palavras, o padre disse, "Senhora, cujo altar fica no promontório, rogai por todos os que estão no navio, os cuja faina tem a ver com peixe" e fechou-o com o dedo indicador marcando a página sob o ar de estranheza do Augusto, a reza era esquisita. Dias ia quieto, calado, pensativo, como se já tivesse dobrado sobre si as conclusões das vivências do último dia mas ainda não soubesse quem ser, o que ser, o que fazer no dia seguinte, o padre que já desistira de ler, já ia ficando tonto, disse, olhou para o exagero de chaves que penduradas da que estava na ignição, exatamente no momento em que Augusto vencendo o silêncio perguntou, o que padre? o que o senhor disse? as chaves pareciam tilintar anúncios, leve e suavemente, campainha de anúncios, nada amigo, repito aqui umas palavras ao ver o Convento da Penha, respondeu o padre ainda olhando as chaves, que exagero amigo!, por que tantas chaves, e tão velhas? riu um riso simpático, discreto, você concorre com São Pedro assim, e se sai vencedor!

23 março 2011

Inesperado sol

64

Um vento frio entrava pelo carro, nenhum dos dois se dispunha a levantar o vidro da janela, calados, cada um do seu lado, necessitavam daquele estímulo sobre a pele, o vento constante fazia-a eriçada, o olhar atento na estrada traçava na mente de cada um pensamentos assustados e mesclados de ternura, terno sentimento que se adquire quando se assiste a um drama, comiseração proveniente da cena, a quase morte de dona Estelita, o carro atravessou o filete d'água que na areia branca da estrada escorria da velha e grande caixa, lembrou-se do pássaro vermelho, a água espirrou-se para os lados em som agrádavel, memórias de pequenas viagens por estradas de chão em tempos de felicidade, tempos sempre curtos, filete como se fosse um córrego, mas não era, era água vazada, escorrida, procurando ela mesma ser alguma coisa entre o escorrer pela gravidade e a busca do mar, regato que avistou quando de sua chegada, passou então pela guarita e não viu ninguém, perguntou sobre o segurança, Dias respondeu que ninguém ocupava aquele lugar a um bom tempo, Augusto disse que havia um homem ali que o tinha recebido, sim, disse Dias, correu um boato de um novo gerente que estaria por chegar e alguém pode ter se colocado ali para esperar o senhor, mas ninguém recebe salário pra trabalho nenhum aqui, nem ninguém desempenha funções específicas, e estas chaves? perguntou Augusto, foi o rapaz da guarita quem me entregou estas chaves, e fez isso como se cumprisse ordem, não sei, respondeu Dias, não sei. Na volta, o padre sentado entre os dois na boléia perguntava uma coisa ou outra, mas a maior parte do tempo mantinha-se calado, lendo, ou tentando ler seu livro, um livro decerto já velho, capa dura marron brilhosa, e ao falar, falava com a boca torta, disse se explicando que um dente doía-lhe muito e um amigo dentista paroquiano tinha se dado à caridade de atendê-lo mesmo no domingo e que a boca, por isso, ainda estava anestesiada em sua metade esquerda, rezara a missa das seis da manhã suando de dores ao pronunciar as palavras sagradas, este é o meu corpo, este é o meu sangue, e a das nove, que começou por volta das dez, com a boca torta e com a sensação de babar, mas rezou, fazer o quê, as crianças riam, mas era mesmo a missa delas, e com crianças o riso sempre ajuda, falava o padre pondo a mão com um lenço sobre a boca e a voz pastosa saía entre o estranho e o solene.

21 março 2011

Inesperado sol

63

Vamos deixá-la descansar, continuava alguém orientando as pessoas enquanto Augusto se retirava do quarto seguido por Dias, saía apertando as chaves na mão direita, como a sentir as gotas pegadiças daquele olhar preso nelas, sabia que ali estavam camadas sobrepostas de coisas depositadas por aquele olhar morimbundo, sentia vontade de perguntar se ela se sentia no desejo de dizer alguma coisa sobre as chaves, mas achou-se mesquinho em querer saber aquilo, sobre o que abririam, que portas abririam aquelas chaves, mas decidiu ir buscar o padre, uma corda de varal se rompeu nele e deixou arrastar no chão a roupa limpa, tudo teria que ser levado ao tanque novamente, em outro lugar, talvez, mas podia assumir aquela nova identidade, ser o tal o gerente e ali seguir até quando desse, podia arriscar, deveria ou não arriscar?, gostaria de ficar, não sabia afinal, agora o que importava era ir buscar o padre, vamos rapaz, vamos rápido, disse para Dias que o seguia, já na boleia da caminhonete Dias explicou que deveriam ir até o Suá, não muito distante daquele pequeno parque industrial abandonado, mas fora dos seus limites, e esta seria a primeira saída que Augusto faria naqueles dias daquele lugar, ali bem ou mal tinha se sentido protegido, como se sua fuga tivesse alcançado o ponto mais distante, mas a corda rompera-se, a corda do alívio, haveria de retomar os pensamentos e as decisões, matara a própria mulher, acidente ou não, matara-a. O dia se ia ainda naquelas horas bonitas que se estendem até três horas da tarde, mas nele o fumo cinza do entardecer ja tingia de leves tristezas seus olhos escuros, momentos de lembranças inesgotáveis, lembranças que nublariam todas as tardes que ainda viria a viver ao longo dos seus anos.

18 março 2011

Inesperado sol

62

Uma mancha formava um desenho do tamanho de um coração no vidro da janela, assim do tamanho de uma mão fechada, um mapa de um país insular, perdeu-se Estelita da paisagem que passava pelo trem, a mancha desenhava uma montanha e um riacho, uma coisa perdida no mundo, tantas coisas começou a ver ali, Estelita levantou com agilidade a mão, sem perder a suavidade do gesto, para tocar a mancha, a nódoa estava por fora onde soprava o vento e os cheiros das paisagens passavam, esfregaria uma flanela em movimentos de círculos concêntricos e logo a limpidez voltaria, isto não seria possível no entanto, logo me acostumo com a nódoa e ela será tão transparente quanto o vidro mais limpo, pensou, viajarei com a mancha, que a voz fala muito eu concordo, mas que não seja Deus, discordo, a voz é Deus, como pode não ser?, fui professora de crianças durante longos anos e sei, Deus me educa, por isso me fala, mestre que é, ele brinca de se esconder, ele tem desses mistérios, mas já treinei meus sentimentos e sei reconhecê-lo em seus mais ingênuos esconderijos, ao mesmo tempo que mestre, não deixa Deus de ser uma criança, não como uma criança, mas uma criança, me fazer morrer deve ser uma de suas brincadeiras, e quando a brincadeira acabar não terei morrido e o riso será de todos, olhou o vidro e disse para si mesmo, ah!, as paisagens!, estou perdendo as paisagens, logo chegará o rio, e entre o vidro, a mancha e a paisagem Estelita adormeceu, a respiração se acalmou, o coração espraiou-se como maré calma em areia leve, encostou de leve o barco no cais, sem balanços, todos se entreolharam, ela é forte, alguém disse, aguentará ainda sabe-se lá quanto tempo.

17 março 2011

Inesperado sol

61

Tu que me falas, resolveu Estelita pronunciar-se, tu que me falas, começou, o timbre era limpo, claro, sem titubeios e pigarros, a tanto tempo não se ouvia assim na própria voz, tu que me falas, mostra-te, peço, eu suponho aqui nas minhas dignidades, nestas que tu me destes, que sejas Deus, és?, o que mais poderia ser Deus senão uma voz, um ar morno com tons de música, um nada feito tudo que se desfaz no exato momento, mas se desfazendo já é o que desejou ser, és Deus, dizes que morro, mas vivo nesse alongamento das horas, então és Deus, o Misericordioso, não te apresses, retornou a voz, de melhor proveito seria prestar atenção ao teu redor, não, respondeu Estelita, não, o que quero é levantar os olhos e contemplar o rosto deste que tem as mãos do meu filho, nem direi palavra alguma, pois que me bastará olhar, mas me proíbes agora de ter o que me dissestes ter, cala-te e olha disseste-me, não me tires o que me destes, se és Deus, e és, não me chega o entendimento do porquê me pesas assim os olhos com os teus destinos e desígneos e me tiras as forças de olhar mansamente para cima, me colas as pálpebras com visgos de paisagens, aprecio as paisagens, ah como as aprecio, não reclamo, acredita-me, mas rogo-te uma força, uma pequena força para erguer os olhos, lava-me a retina com transparências, desanuvia-me das saudades, permite-me, te enganas, disse a voz, te enganas, te desventuras, e além do mais, escuta, falo muito, Deus não.

14 março 2011

Inesperado sol

60

As mãos, enxergava-as bem, e as chaves também, brilhavam de pratas e ouros de muitas mãos, sim, eram elas, as do filho, a tez branca, tão branca de ver o azul do céu em linhas doces sobre as longas planícies como rios entre o punho e os dedos, linhas doces de saudade, quanta saudade!, meu filho, querido, que chaves são estas? e então foi capaz também de perguntar-se mais uma vez, como seria morrer?, duas coisas, o momento exato e o depois a encabulavam, pensava sem fim um pensamento em raízes espalhadas, este pensamento sempre se infiltrava em outros, em todos, mas tu já sabes, disse a voz, tu sabes agora, pois que passas, vais indo, o trem já partiu, sim, respondeu Estelita, e não é que é verdade, vejo a paisagem ligeira, não o rio ainda, alguns quilômetros me restam até o rio despontar à direita, por ora o verde me leva, o verde e o cinza escuro, um marron aqui e acolá de terras cultivadas, umas neblinas de amanhecimentos que logo se vão sem resistir aos primeiros toques do sol e ao passar do trem, não sabia como era nascer, tudo se esquece de então, os calores maternos, o frio do vento pelas narinas na primeira respirada, a vinda à luz e às agonias da luz, mas agora a voz alertava sobre saber o que é morrer, a voz, de quem seria aquela voz?, entre masculina e feminina, entre infantil e rouca de anos, exortara corretamente a instrutora voz, pensou Estelita, tinha que lhe ser grata, faria isso logo que ela surgisse novamente e com uma pequena e educada interrupção nas suas instruções lhe diria obrigado, morria e naqueles momentos de parca lucidez sabia, sabia que tudo, tudo se juntava como dálias e gérberas em arranjo num mesmo laço azul jogado ao acaso sobre uma mesa no centro da sala, e o tapete ali, macio, sob os pés, o tapete ali, nunca reparara naquele tapete, tão limpo, tão suave, era um convite irrecusável para estender-se naqueles arabescos ao perfume quase inexistente daquelas flores sobre a mesa no centro da sala, cheiros de leve perceptíveis, era preciso prestar-lhes atenção, um doce de várzeas encharcadas e cheias de brancas flores de brejo, um acre de laranjeiras envelhecidas e retorcidas e com poucas flores na pequena colina abandonada ao sol escaldante, sentia sim o perfume, distinguia-os, e dobrava-se já em seus joelhos, não te deites, forçou-se a voz num tom masculino, paternal, quase ríspido, não, ainda não.

10 março 2011

Inesperado sol

59

As mãos, aquelas mãos segurando as chaves, eram as do filho, não as chaves, mas as mãos, suas mãos, tinha certeza, que certeza?, questionou a voz, assim, ossudas, brancas, delgadas, transpiravam vacilos e medos, coitado, amava-o tanto, único filho, meu filho, por onde andas?, vieram tuas mãos, oh meu Deus, vieram, irei, ainda não, interpos-se a voz, não irás, ainda não, cala-te e olha, que é o que podes, olhar, o que te é permitido, enfeito-te por ora o que vês com umas neblinas doces, uma luz filtrada de vitral de cores mansas, e nada mais agora, depois talvez uma condescendência te seja oferecida, um tempo de uma rosa, ouviu atenta Estelida e se contentou, um passo entre a resignação e a falta de forças, o trem na estação preparava-se para a longa travessia do vale, silenciara o tinir do martelo nas engrenagens do trem, avistaria o rio por todo o percurso, iria numa poltrona do lado direito do vagão e avistaria o rio, se bem que, se bem que há lugares tão bonitos do lado esquerdo de quem vai, mais bonitos, mas não o rio, o rio ficaria à direita, queria o rio, trocaria tudo pela visão do rio, avistaria alguns barqueiros remando em águas barrentas e o outra margem, avistaria a outra margem, os sítios e as casinhas lá onde a vida vai seguindo de algum modo, entre cantos tristes enquanto se lida com o chão e o sol, enquanto se banha em suores de terra quente em trabalhos e lutas e filhos e brigas, e sexo à noite em cama mal acolchoada, uma desolação para quem passa, mas quem ali vive nem se apercebe de suas tristes vidas, são imersos todos na placidez da rotina e de suas dores, a outra margem nada mais é que um lado, mais um lado disso tudo que vês, disse a voz, disso tudo que vivo, pensou Estelita. Queria levantar a cabeça num pequeno ângulo do pescoço para alcançar o rosto, como custava olhar para cima!, o rosto não é dele, não te confudas, não te iludas, não te apavores, que te contentes com o ver as mãos, tece tuas roupas de despedidas com os fios de felicidade que vem destas mãos com as chaves que enxergas, dizia a voz sem rancor e sem amor, dizia a voz assim, etérea, um traço de vento misturado com o chilrear de pardais.

08 março 2011

Inesperado sol

58

Ouvia um bater de martelo em ferro, Estelita ouvia um tinir que se associava a viagem, uma pétala arranhada, um pouco amassada, deslocada do conjunto da rosa, ia sendo retirada por uma mão leve e decidida, via nitidamente, a outra pétala, sua próxima, era deixada, via por um olhar que se esconde por detrás do olhar, por detrás da retina, por detrás do corpo onde corriam filões de ternura resistente, ternura por todos os que estavam ali e pelos outros, sentia vontade de dizer obrigado pela presença dos amigos, estava numa estação, o trem ia partir, da estação se leva uma alegria e várias tristezas, ouvia uma voz, mas logo as tristezas serão preenchidas por paisagens ligeiras, passando, passando, ficará a alegria manchada de tristeza até o tempo apagar as duas, era o repique como de um sino, não tão límpido como de um sino, mas bonito pelo compasso, alguém que ia com um martelo batendo nas rodas do trem antes da partida, um teste, um carinho repetido muitas vezes por um funcionário da ferrovia sabedor de suas responsabilidades, o aroma de plantas amanhecidas de um suave frio invadia suas narinas, Estelita respirou um pouquinho mais profundamente, todos se entreolharam naqueles silêncios mesclados de melodiosos rumores que vinham lá de fora, uma voz e outra, aqui e acolá, um passarinho também, qual seria?, passarinhos de meio de ano, ainda não, ainda abril, nascera em setembro, não gostava de abril, ainda media o tempo, mesmo que usando uma linha frouxa, mas media, sabia que era abril, seria em abril o seu dia, outro dia, aquele que se contrapõe ao primeiro, queria segurar-se até maio, neblinas frágeis chegavam, dizia a voz, mas logo haveriam de se dispersar com a luz do sol.

07 março 2011

Inesperado sol

57

Dias foi entrando pela casa adentro seguido por Augusto, logo encontraram a avó a perguntar por que ainda não tinham ido buscar o padre, o gerente se intrometendo como a saber de urgências mais que os outros foi dizendo que seria melhor levá-la a um hospital, nisto chegavam ao quarto, os olhos se deram uns com os outros em silêncio repentino, os olhos da mulher, ponte sob neblina, deitou-se como um sol no poente sobre o gerente, e ele compreendeu o apelo de urgência para que trouxessem o padre, as chaves na mão silenciosa tremiam de leves movimentos. Pousavam asas dos olhos da mulher sobre os que estavam ali, Dias observava em silêncio, bandos de mansidões, pássaros benfazejos que demarcavam campos onde um vento inesperado ondulava em danças o arrozal maduro de muitas espigas. Dias encolheu-se num canto e viu, imaginou, sentiu que se fixavam os olhos da mulher depois de uma revoada sobre todos como foco de lanterna caída ao chão sobre um único ponto, o molho de chaves que tilintava nas mãos ansiosas do gerente, não que ela assim o quisesse, a lanterna caída e imóvel jogava o foco ali, nada mais.

05 março 2011

Inesperado sol

56

Foram apressados na direção dos escritórios gerais onde estava a caminhonete, Dias se concentrava no pedido da avó, o andar quase correndo do gerente dava-lhe um sentimento de que ia conseguindo o que almejava, antes que supunha, aquela amizade, uma intimidade de parceiros, seguia-o, queria manter-se nos passos ao seu lado, mas não conseguia, não por não ter pernas para isso, mas porque algo, um pensamento se infriltava por entre seus respiros para dizer em voz baixa que ele deveria adotar um rítmo de alguns passos de atraso em relação aos dele, era melhor, sentia uma excitação, uma alegria e um desepero, tinha o que um momento pode dar mas também a sensação de que logo fosse tudo perder, como se a solidão rompida por uma longa rachadura instantaneamente se refizesse, peça única e inteiriça, ainda mais pesada, olhava o andar daquele homem, seu corpo, achava-o ainda mais bonito em movimento, almejava semelhanças, haveria umas semelhanças, haveria de descobrir e ficariam ainda mais próximos um do outro, mas voltava o pedido da avó a bater-lhe na mente, condenava-se por não se libertar daquela idéia estúpida e romântica, mais romântica do que estúpita, acertou seus pensamentos, devia esconder-se ainda mais, deixava rastros no entanto, sempre, fazer o quê? Enquanto deu a volta para entrar na boléia pelo outro lado o gerente já tinha dado a partida no carro que roncava forte, era como se fossem fugir, a cena comum, mas sempre bonita, capaz de despertar nos olhos de quem assiste um sentimento terno, o carro indo pela estrada afora, levantando poeira, e eles embriagados de alegria, rindo, rindo, rindo, juntos deixando tudo para trás, cheios dos desejos de vida, de aventura, a cena se desfez, ao ronco em ondas do motor se somou a pergunta do gerente sobre onde a tal mulher morava e Dias respondeu que tinham que ir logo até a Igreja de São Pedro buscar o padre como lhes fora pedido. Que padre que nada, respondeu Augusto, vamos até a casa dessa senhora, é melhor levá-la ao médico.

19 fevereiro 2011

Inesperado sol

55

Tinha esperança, mesmo na negação do que desejava tinha esperança de um momento na ilha, e esta idéia nem lhe passara pela cabeça até que o gerente apontasse para lá com curiosidade, o que desejaria ele naquele passeio?, podia ser a curiosidade insípida de quem não tem o que fazer num domingo, ou não, um momento naquela ilha com o gerente, não queria aliar uma história com outra, a que vivia agora e aquela com o estivador, insuportáveis lembranças, mas gostava da ilha, misturava, dividia-se em vacilos, chamá-lo de Augusto, forçar nas palavras o primeiro passo da intimidade, ou senhor Augusto ou senhor gerente, mas os meninos traziam-lhe um alívio, um recado, uma contrariedade, os sentimentos se adensavam em junções, de través, os sentimentos sempre são travessas sobre as quais se colocam telheiros, sonhos de abrigo. Fala menino, o que houve, por que este desespero? Sua avó pediu pra você ir buscar o padre lá na igreja de São Pedro, dona Estelita está morrendo, disse pra você pedir ao gerente o favor de ir  de carro, rápido, podemos ir também? falava o capitão já sem tanta ofegação, interessavam-se pelo passeio, ainda não se davam conta dos extremos da linha, tão vivamente seus novelos de vida estavam trançados, aglomerados de voltas e extensão, que não se davam conta das extremidades, do começo lá onde não sabiam, e fim, fim inalcansável e inexistente ainda, a roda gira, gira, as engrenagens não param, nem Santa Catarina consegue. Dias olhou para o gerente, este tinha os olhos naufragados, barco afundando em águas paradas não de calmaria, de placidez, mas da quietude de dias fortemente nublados quando as sombras das nuvens iludem de paz o embate, olhava para os meninos sem ouvir, sem se interessar pela agonia de morte daquela pessoa, mas logo, de salto, pos-se de pé e tomou a chaves, junto as quais tinha agregado a da ignição do carro e, vamos!, disse decidido, foi andando.

17 fevereiro 2011

Inesperado sol

54

Além do pedido do gerente veio o silêncio, o silêncio, a sombra, o sol escaldante, o olhar preso em insignificantes coisas, coisas passadas e presentes povoavam a mente de ambos, sem consistência, como nuvens brancas e fluidas de leveza que ora formam um animal ora formam outro, logo formam um bicho estranho e assim sucessivavemte sem ajuste definitivo. Depois daquele intervalo, grande ou pequeno não sabia, não ouvia a pergunta que o Augusto lhe fazia, outra pergunta, sobre a ilha, em parte ouvia, Dias teve o coração contraído por uma onda, Augusto perguntava algo sobre aquela ilhota ali em frente, uma onda lhe contraía o coração ao modo de onda de temporal, forte, tirando-lhe a atenção, ou dividindo-a desigualmente, a maior parte para o próprio peito e a outra pelos ouvidos ao que se dava ali, o gerente, a onda trazia um buquê de ternura, mas ao mesmo tempo arrepio de medos indistintos. O que o senhor perguntou mesmo sobre a ilha?, refazia-se do arrepio e da sensação estranha tentando voltar à conversa. O gerente respondeu, esquece, era só uma pergunta boba sobre aquela ilha, apontou. Sim, seguiu dias, é uma ilha que ninguém sabe ao certo a quem pertence, deve ser do governo, o que houve ali ninguém sabe, há uma ruína, já fui lá várias vezes, arrependeu-se de ter dito isto, talvez tivesse tido de propósito, e a onda já se tinha ido e Dias se perguntava se a avó saberia explicar o que ele sentira, uns dizem que foi casa de um barão muito rico, inventava um roteiro para um filme, que ali segregou a mulher da qual tinha muitos indícios de infidelidade, outros dizem, e já era verdade, que foi casa onde ficavam os imigrantes logo que chegavam da Europa até que lhes destinassem um rumo para as colônias. Tremia Dias com a possibilidade de ir até a ilhota num barco a remo com o gerente, ficar sozinho com ele lá, não, não queria que ele lhe fizesse esse convite, lembrava das vezes ainda bem novo quando o Barroso o levava para lá, não, no início detestava, depois deu o nome de amor a aquilo, duvidava hoje, balançou levemente a cabeça na negativa, apavorava-se do desejo que voltava sem domínios, carecendo de rédeas. Eu gostaria de ir até lá, disse Augusto, tem como ver qual destes barcos eu posso usar, você vem comigo?, sabe remar? Ouviu-se um grito ao longe, Dias, Dias, eram os meninos, à frente o capitão sem pipa sem nada, seguido pelos outros três, Dias, Dias, acenavam de longe, Dias, Dias, dizia esbaforido o chefe deles já chegando e descendo pelas escadas indo até a praia e deitando-se na areia fresca na sombra da castanheira, enquanto os outros se assentavam por ali nos barcos na areia, o menor tendo ido brincar na água parecia livre da obrigação do recado.

14 fevereiro 2011

Inesperado sol

53

Enquanto conversava com o gerente, um lençol caindo sobre a cama quando a mão macia de vento faz o pouso suave e aberto do pano, Dias foi caindo outra vez na idéia de que o que acontecia era mais uma cena de filme, dessas cenas sem história de começo meio e fim, apenas quadros que depois juntaria, as cenas eram importantes não o que elas contavam, a história apareceria depois, quando dos cortes, queria estudar cinema, onde se estuda cinema? Em Nova Iorque, mas Nova Iorque fazia parte das cenas cortadas, cenas com o Barroso, talvez no Rio de Janeiro, olhou para o rapaz ao seu lado e desejou fechar a câmera, aproximar-se daquelas expressões, aproximar-se de cada vinco, de cada fio de barba, dos lábios finos e apertados, do movimento da camisa sobre o peito, ir com a câmera até ser possível sentir os odores daquele corpo, mas às rápidas, como se o diretor estivesse embriagado, o foco foi se desviando para os seus próprios pés, que balançavam ao jeito de um menino posto sentado num banco mais alto que as pernas e ficasse esperando a mãe, balançavam, balançavam num prenúncio de que alguém se atiraria na água, de que o calor insuportável da situação terminaria com uma queda n'água, desejos dominados, desejos em luta, embates árduos..., e amor?, amor se domina ou o tal domínio se exerce somente sobre os desejos?, quem sabe de amor? quem sabe o amor tenha um caminho que não aceite o domínio da vontade, o desejo é cavalo passível de adestramento, amor não, não precisa disso, ele já é certo, mestre de si mesmo, vem e vai quando bem entende, não sabia exatamente o que sentia por aquele homem, pensava Dias, mas, o que queria a avó ao entregar tais números ao gerente? poderia não ser amor, de uma hora para outra, o que poderia ser aquilo que crescera dentro dele? Tenho este molho de chaves e estes números, de nada me servem, estas chaves abrem portas sem importância, e gavetas vazias, disse o gerente, preciso entender melhor umas coisas, penso que sua avó poderá me ajudar, avise-a que preciso ter uma conversa com ela, por favor.

10 fevereiro 2011

Inesperado sol

52

Ficaram a observar o mar, os barcos e o balanço dos barcos, as aves indo e vindo, olhavam as mesmas coisas, enquanto um olhava os pássaros em volteios no céu o outro se prendia no balanço miudo de um barco ao sabor da maré, enquanto um olhava para o mangue lá do outro lado e as montanhas longe o outro olhava para a corda que segurava o barco no ancoradouro, mas estavam à sombra de uma castanheira, podiam ficar quietos e deixar o silêncio vagarosamente ir perdendo aquele peso que se deitava entre eles, a velha castanheira estendia seus galhos para bem longe do tronco e pendiam sobre a pequena praia e a mureta, tão majestosa se dobrava que era como se José de Anchieta caminhasse por ali e recebesse suas reverências. A sombra grossa dava ao lugar naquele horário, quase meio dia, um ar de desejos saciados, calmaria depois do estertor, mas uma neblina encobria tudo entre eles, uma neblina que umedecia as mentes com devoções ao silêncio como um voto, a neblina se estendeu, se estendeu, se fragmentou e se foi esvaindo. Quem é sua avó?, perguntou o gerente rompendo a nevoenta e aparente placidez entre eles. Por que o senhor me pergunta isso? respondeu Dias. Uma senhora veio me visitar bem cedo outro dia e me trouxe um papel com uns números, não entendi que números são estes, bem que procurou cofres naqueles escritórios, imaginou que fosse o segredo do cofre, preciso falar de novo com aquela senhora, disse o gerente. Com as informações que trocaram chegaram a conclusão, Dias se surpreendeu com mais aquela história protagonizada pela avó, de que a tal senhora era mesmo a avó Luzia.

08 fevereiro 2011

Inesperado sol

51

Que tudo se desfaça, os pensamentos, os planos de palavras transformadas em voz de declaração, que se desfaçam como ondas mansas nos muros, nas pedras, nas estacas, no cálcio das conchas grudadas no pier estas confissões de amor, de ilusões, esteios de sustentação, ia num ritmo só, mas não tão rápido, chegando ao cais, o ar tremia de alegria na luz como se o verão ainda se estendesse até abril. O gerente estava sentado sobre um resto de mureta, as pernas jogadas para a água sem tocá-la, talvez quando a maré subisse bem alta tocasse, talvez nem assim, olhava, olhava os pássaros indo e vindo, pássaros de mar, pensava o quê? Dias aproximou-se e sentou-se do mesmo jeito com as pernas penduras, em silêncio, espuma de águas batentes nas pedras sob os seus pés, em planos desfeitos, ondas que bordam rendas e retornam água, sem forma sem nada, conversaria qualquer coisa, mentiria e diria trivialidades. O que houve rapaz?, o gerente perguntou desconfiado, com gestos que indicavam incômodo com aquela presença ao seu lado, susto. Desculpa senhor, não quero incomodá-lo, fui ver minha avó, mas ela teve que ir às pressas ajudar alguém, saí então andando para me distrair, e aqui estou. A explicação aos seus próprios ouvidos não pareceu boa, mas que importava agora, melhor não falar mais nada, ficar quieto, suportaria o silêncio que viesse entre os dois, estranhos, eram estranhos ainda mais assim lado a lado olhando, ambos, os barcos, o mar, a paisagem emoldurada de velhas coisas dos homens, o silêncio veio, veio e se estendeu por uma planície despovoada em poucos segundos, constrangedor. Mas um vento doce soprava do mar, alivante.

05 fevereiro 2011

Inesperado sol

50

Dias desceu na mesma direção que os meninos tomaram com a pipa, numa leve e mansa inclinação do terreno coberto de capim mas logo retomou a estrada que ia para o cais que ficava a um quilômetro mais ou menos distante, talvez nem isso e seguiu. À esquerda de quem seguia para o cais, no lado oposto ao que os meninos estavam, umas vacas pastavam numa larga faixa de gramíneas que margeava um restante de mata de restinga, ali por dentro existem pitangueiras, muitos pés, colhia pitangas quando menino para a avó, enchia um embornal, outros meninos agora se encarregam disso, mas talvez não saibam colher com o cuidado que as pitangas maduras exigem, ele e a avó adoram pitangas, a avó gostava a cada colheita, de encher um litro bem branquinho, totalmente transparente, com as mais vermelhinhas, encher bem, até no gargalo, e depois, com aquele funil que ainda hoje fica pendurado com as canecas sobre a pia, pequeno funil de aluminio todo amarrotado, ia derramando cachaça até que as pitangas ficassem todas cobertas, o litro ficava bonito bonito, e a cozinha em todos os seus cantos se preenchia daquele cheiro de pitanga e de cachaça evaporada. As vacas pastavam como se o mundo girasse sobre engrenagens que recebiam do céu um fio fino, reto, constante de azeite. Uma das vacas, talvez a mais velha, magra e esmirrada, mas ainda capaz de sustentar seu bezerro, virou-se com um quase imperceptível mugido olhando na sua direção mastigando calmamente aquele mesmo capim que depois ainda mais calmamente seria regurgitado e ruminado, a vaca olhou para ele e o viu, mas não o viu, atravessou-o com o olhar, enxergou tudo de vez e ele, ele era apenas uma parte encaixada no mundo todo dos seus olhos, e como aqueles olhos abarcavam em paz todas as coisas, Dias se lembrou da avó que também magrinha, esmirrada se tinha ido às pressas ajudar alguém que se despedia da vida, a vaca se parecia com a avó, ou o contrário, participavam, ambas, de uma dança incompreensível, e talvez por isso, porque as vacas veem outros mundos, sejam sagradas na India, pensou.

04 fevereiro 2011

Inesperado sol

49

Ia caminhando não tão decidido, um vacilo se imiscuia em seus passos, mas ia, fazer a volta e retornar exigiria muito, não poderia ceder, o sol cantava alegre ao jeito de manhãs em que se vai para a praia com amigos, melhor mesmo era seguir, há um bom tempo que não ia ao velho cais, gostava de pescar por ali quando criança, mas o trabalho naquela lanchonete na cidade lhe tirava a vontade de pescar ou de fazer qualquer outra coisa no domingo senão descançar, ir à casa da avó Luzia, sentar para fumar por alí sobre uma carcaça qualquer de carro abandonado naquele fim de mundo enferrujado e ver o tempo passar, talvez no esforço conseguisse, sempre conseguia, estudar um pouco para as aulas que frequentava à noite no colégio estadual. Andar faz bem, dizia-se esta frase boba olhando o velho cais ao fundo, mas era bom mesmo andar naquela manhã, o mar sempre enfeita qualquer paisagem, mesmo quando a tristeza do abandono venha a tingir de marrons avermelhados e cinsas o brilho dos olhos, andar faz bem, sentia isso no peito, no corpo, movia-se num composto gasoso de alegria, entusiasmo e ingenuidade, gostava daquele lugar na verdade, ali ninguém era dono, mas também ninguém pagava aluguel, ele era um dos poucos a morar ali sem ter sido de algum modo funcionário ou dependente de funcionário daquele parque industrial, dizem que o dono, um italiano muito rico voltou para a Itália e tudo largou, dizem que nos últimos tempos tornou-se um homem triste, comentam outros que ele faliu e voltou para os seus negócios na Itália onde ainda é bem rico, ninguém sabe ao certo, mas também ninguém sabe de onde surgiu aquele boato de que um novo gerente chegaria, mas todos se alegraram, tudo está na justiça, são muitos processos, contendas, dívidas e mais dívidas, tudo parado a muitos anos, parecia-lhe improvável que de repente viesse assim um tal para administrar aquilo. Dias, Dias, gritavam os meninos interrompendo seus pensamentos, Dias, Dias, chamavam já bem próximos e ofegantes. O que foi agora?, perguntou Dias, o que há com a arraia? Ouvimos, respondeu um deles com aquele ar de amigo que tudo conta só pela amizade, o Justino Barroso conversando com uns homens lá na porta do bar, o bar está fechado, mas eles estão lá na porta comendo tira-gosto e bebendo. E o que tenho eu a ver com Isto? perguntou Dias. É que eles estavam falando de você, é, o Justino Barroso. O que falavam? Bem, não sei, respondeu o que tinha uns doze anos, o Barroso falou o seu nome, ele estava xingando... mas Dias?, continuou o menino, o que quer dizer esquadrão da morte? Esquadrão da morte?, indagou Dias franzindo os olhos sem saber do que se tratava. É, esquadrão, disse o menino, esquadrão da morte.