29 novembro 2007

Caminho do pescador

Na reborda leve e borbulhante do arrastado traço
que o barco de pesca deixa sobre o inquieto mar
vai um anseio em respiros curtos definindo um caminho
que de longe, pensativo, avisto perdido em pensamentos.

Eu me posto com olhos bem amplos procurando,
quem sabe, na reborda do corte azul das águas de sal
uma inspiração alvissareira que me alcance o sabor,
vida intensa para abrir o peito e soltar todos os pássaros.

Se de todo não me dá a força de um sacramento
esse olhar que segue a linha azul do caminho do pescador,
pelo menos por ele me reconheço casa simples caiada nova,
barco reparado com nome novo deixando o estaleiro,
janela aberta pelo vento batendo forte.

O certo é que certas aflições que apertam o peito
descem com a maré lentamente e vazam
quando me apercebo seguindo aquele traço de espuma
até que o barco debandeie para depois do horizonte,
quando estranho, areado, ferido sem dor, retorno para casa.

26 novembro 2007

Pode ser que

Pode ser que se eu seguir por aí
pela avenida beira mar na direção do porto
eu me contente de um contentamento que se estenda
com um olhar solto
... e demorado
sobre um navio – é bonito – indo embora.
Pode ser que se eu juntar
o que vejo com o seu cheiro,
o cais e a maré,
o destino e o navio,
eu desaprenda quem sou
e me dê nova luz
em parto de prazer e calma
exatamente às três horas da tarde
para gostar mais e mais
dos passos que dou
do lugar onde estou
desse mesmo que sou

... e sentir paz.

21 novembro 2007

Tudo tramado pra me levar a elas.

Assim não vale,
não se faz isso com um menino.
Quando eu ia me divertir
tu vieste a gritar meu nome
- desconcentrando-me.
Agora digas, por favor,
onde foi dar o amor
que anunciaste-me?

E, pior ainda...
O pião que arremessei,
quando gritaste,
onde foi girar?
Sobrou-me nas mãos a fieira,
no corpo e nos olhos uma fogueira.

Esquece, esquece.
Não te acuso.
Fieira, fogueira, estrada...
Livros. As palavras.
Tudo tramado pra me levar a elas.
E elas?
Elas deram um fim na minha inocência.

É preciso rir...
Admito, agiste como mestre.
Conduziste-me por onde querias.
Onde me levas não sei.
Pudesse eu pelo menos encontrar
por onde me fazes andar
o velho pião que arremessei.

20 novembro 2007

Dizer a luz

Isso de fazer poesia tem a ver
com o caminho que faz a voz.
Esta, que não é a minha,
nem a de ninguém.

Ela passa pelas minhas cordas,
me amarra com a minha letra,
se arranja bem com os meus termos,
usa meu tom, meu timbre, meu ritmo,
me subtrai as palavras mais caras,
e me cala.

Mudo, mudo de dimensão.
Ao invés de fazer poesias
acabo por encontrá-las vazias
de toda e qualquer palavra
no silêncio do que não se escreve.
Mas a mudez não dura muito.

Isso de fazer poesia tem a ver
com o caminho que faz a teimosia,
a angústia, a ternura, a esperança de recompor a vida
e dizer a luz que aparece antes do nascer do sol
e o escuro que também se mostra ao meio dia.

15 novembro 2007

Eu tive um carrão

(se possível leia esse poema ouvindo Yann Tiersen)

Meninos com seus carrinhos...
Mas eu?
Eu tive um carrão.
Ele era lindo
apesar de abandonado,
parado, depois de muito rodar.

Deixei-o alojado para sempre
aqui dentro
nas proximidades do coração,
numa garagem qualquer
no limite com o pulmão.
Quando penso nele
minha respiração muda.

Ainda sinto agora aquele cheiro
de óleo queimado.
Olhar pelo vidro trincado,
mãos no volante emperrado,
motor roncando na garganta.
Estradas sem fim
em tempos de hojes tão grandes.
Viagens que eu nunca mais fiz.

(Quem quiser ver um carro bem parecido vá ao essajanela)

12 novembro 2007

Escada de cada dia

Escada cada um tem a sua
conforme o dia.
Essa amarela é linda.
Queria que fosse a minha.
Toda iluminada sem ser enfeitada.
Dourada a não ser de sol e mais nada.
Também será ela perfumada
de incensos os mais delicados?
Será deste dia a minha?
Quem quer me seguir,
- ouço sua voz entusiasmada -
tem que achar sua escada
de cada dia
e subir.
Cá de cima a vista é linda.

09 novembro 2007

Somos estranhos uns para os outros

Notícia do dia 08/11/07
Mãe, me ajuda, que está saindo alguma coisa de mim. Esta foi a frase que uma jovem disse para a mãe ao dar a luz em um avião sem saber que estava grávida.



Mãe,
dizia a mocinha,
minha querida mãe,
mãezinha que não me alertou
mãezinha que me deixou
na inocência de não saber
o que há tanto eu deveria:
somos estranhos uns para os outros.

Mãe
me ajuda,
Que pedaço é esse? um eu
que vai se tornando alheio,
se partindo e se libertando.
Há uma dor e um alívio,
um prejuízo e um lucro.
Me ajuda que está saindo
alguma coisa de mim.

Mãe,
mãezinha,
minha querida mãe,
eu te entendo. Fica triste não.
Este que saiu de mim é filho.
Um filho...
e eu não sei quem ele é.
Eu também te sou estranha,
...não é?

07 novembro 2007

No entanto

Eu sei,
infelizmente sei,
que o único jeito de voar
com as próprias asas
é fazendo poesia.

Um dia a ciência vai provar
que a única e absoluta utilidade da poesia
é fazer brotar nas costas do sujeito que escreve
- ou que lê -
um par de asas.

É claro que o tamanho,
a penugem,
a força,
a beleza da asa
vai depender de fatores que não sei explicar.

Meus vôos são sempre rasteiros,
mas ainda assim me lanço
e me rasgo em brutos esbarros com o chão
em pontas, pregos e pedras.
A pequena altura que alcanço
vai mais alto, no entanto,
que qualquer avião.

06 novembro 2007

É pelas mãos que se faz

Um querer veio torto
pelas tripas em muitas voltas
pelo estômago como uma aflição
e pela boca saiu um
ahhhhhhh,
vou escrever um poema!
Quis seguir o conselho do Drumonnd
e deixar amadurecer
o que era cedo pra dizer.
Me afastei do teclado,
me reclinei na cadeira
e me soltei em um delicioso vaguear.
No ahhhhhhh relaxei e esqueci
o que o ahhhhhhh iria dizer.
Morreu verde a intenção.
Parece que devaneio
não amadurece poema.
O meu, que sempre guarda um amargo,
é pelas mãos que se faz.
Muitos rascunhos,
não-sentimento profundo,
e prazeroso trabalho.

04 novembro 2007

Rei dourado

O rosto do faraó Tutancâmon foi mostrado hoje (04/11/07) pela primeira vez na história, depois de sua múmia ter sido transferida de seu sarcófago para uma urna transparente no interior de sua tumba no Vale dos Reis, em Luxor, no sul do Egito.



Vi o rosto de Tutancâmon.

Tu-tão-cansado
como qualquer um
que morreu.

Tu-tão-cândido
como um menino
sol dourado que se pôs.

Tu-tão-comum
como gentes e desertos
e sofrimento sem fim.

Tu-tão-compungido
como escravo a cumprir
o que o dono dos destinos mandou.

Tu-tão-começo
como jovem que não findou,
antes de acordar, um sonho bom.

Tu-tan-câmon
Tudo tão confuso nesse mundo que já foi o seu.
Mas bem sei que seu sonho bom também é meu: querer viver.

Eternidade é outra história...



Ps.: Este poema poderá ser modificado.