31 março 2008

Um fruto doce possível

Haveria um modo de fazer das minhas palavras
de frutas texturas finas, aromas e sabores para ti,
sem a ansiedade que me escorre na água
entre os seixos molhados da fonte na montanha,
- minha intenção - e o encontro com as raízes
persistentes no pomar procurando o córrego - meu coração?
Levanto a pergunta como estandarte de entrega
e me disponho a perder minhas razões para o encontro
onde nossos braços serão laços de calor e afeição
mesmo que, a princípio formalmente estendidos
num aperto de mão, nos mantenham à distância.
Sei que estamos afetados pelos rancores, desencontros
e dores que nos infligimos nos últimos tempos.
Agora, chega a flor que se abre atrasada, eu sei,
mas ainda assim anuncia um fruto doce possível.
Vejo esta mesma florada no pomar dos teus olhos.
Não desisti. Acredita-me! Trago-te, trago-me.

28 março 2008

Fragmentos apócrifos - doc. de Paris

Dias do alto da tarde me aconselham a ir a Cafarnaum
procurar no lugar do encontro
o segundo atalho para a casa das palavras.

Dias do alto da tarde me ensinam a recorrer ao acervo
da casa que propõe uns poucos princípios esclarecedores
dos presentes, dos que vêm e dos outros dias.

Dias do alto da tarde me convidam a reverenciar
os estranhos que estiverem de saída na porta da casa
quando eu estiver passando por eles.

Dias do alto da tarde me estimulam a procurar
os vigias noturnos da casa e com eles distinguir
as variações de escuro na barra da madrugada.

Dias do alto da tarde me dobram para ver debaixo da pedra, da tinta
das letras o mesmo que em fogo me percorre todo o corpo do mundo
bomba arcano que me explode e não me mata.

Dias do bem longe da tarde me acordam e me ordenam
a deixar Cafarnaum antes que os pássaros voem das árvores
e retornar feliz para as minhas vidas de terra estradas comuns.

27 março 2008

Uma certa manhã

Quis abrir uma janela na tarde fechada,
espessa parede de não sei que casa
que me abrigava a escuridão.
Trabalhei, insistente e em tristeza,
por um longo tempo de estranho cálice
do qual o líquor e beleza eu não quis tomar.
Só me dei conta que morria quando
o amargor dos olhos me escurecia também
os pés, o fígado, os rins, o coração.
Morria e lutava contra a vida que me vivia daquele jeito,
o único que podia, naquela tarde fechada.
Já era tempo de ser noite e eu louco
queria o absurdo com marretadas e sangue
abrir a janela de dentro pra fora
quando o sol o fará de lá pra cá,
suavemente, numa certa manhã.
Sim, volte outro dia

Diferente tudo volta,
a saudade volta como amor,
o amor volta como saudade
de um único dia que passou.
Algo explodiu,
formou uma estrela,
captou poeira,
formou planetas que giram,
roda que não pára
até outra explosão,
poeira, novas estrelas,
outros planetas, outros dias.
Sim, volte outro dia,
passa por aqui,
vamos tomar um café.
Outro dia volta
... você também.

Esse terno retorno
é maravilhoso.

25 março 2008

Palavras para espantar capeta

Ocupei-me. Desocupei-me. Preocupei-me.
O sono desabou nos olhos. Aridez, barulho.
Nem teclados, nem rascunhos e canetas,
o sonho de um novo poema se apagou inteiro.
Sementes desperdiçadas. Palavras sem liga.
Pássaros ruins querendo minhas árvores lindas
para os seus ninhos imundos. Caí cansado.

Um universo inteiro – um inferno? -
ficou zunindo debaixo do travesseiro.
Mas ouvi sei lá de quem, de ninguém, de mim mesmo:
ame as palavras que brotam tortas e espante o capeta.
(sem saber as palavras certas para espantar capeta,
disse sem pensar, fazendo o sinal da cruz,
vá capeta e descubra quanto pesa o fogo).

Olhei para o rasgo e vi como as sementes quentes ganhavam raízes,
carregavam minhas dores, aumentavam meus espasmos de festa,
revigoravam meus prazeres e sonhavam meus poemas em flores.
Ufa! Por pouco não perdi esta bendita inspiração.
(Se bem que não acredito nela, nem no capeta).

22 março 2008

Pássaros-cachorros

Deram-me palavras às colheradas e me mantive mudo.
Enfiaram-nas goela abaixo e me conservei em silêncio.
Palavras e água da primeira chuva de janeiro e não falei.
Elas subiam e se constituíam em bandos e voavam,
voavam lindamente em minha mente azul-ingenuidade
e eu me satisfazia em contemplá-las em revoadas.
Eram pássaros, e se falados - temia – eu sofreria.
Bem mais tarde falei, e vi que eles não morriam,
ganhavam, às vezes, um tom agressivo ou um ar embusteiro.
E falei, falei. Falei até amor sem ternura e gemidos sem dor.
Hoje vazam como sialorréia em cada canto de um sorriso
sem perfume, mas ainda com uns brilhos de azul.
Uma coisa esquisita. Pássaros-cachorros doidos silenciosos
perseguindo em caça um sonho: demudarem-se em poesia.

20 março 2008

Fragmentos apócrifos

Volto para Cafarnaum sem o consolo da devoção,
o incenso que queimei em Jerusalém subiu sem oração.
Não me foi expiatório o bode que ofereci.
Me queimam os olhos estas paisagens áridas
e os desertos rugem em leões viscerais
que me sobressaltam nas madrugadas.

Vejo o que eu não via. Sei e dói saber. Saber por mim mesmo.
Tu queres que eu saiba. Está bem! Olho como ensinaste
- pura lógica com ternura de um olhar em demora – e vejo;
e este olhar até me confere certo ar de vidente
que, por vezes, me corroe o sonho pela vaidade.

O outro ensinamento eu até tento, não sei observar:
permanecer feliz a despeito do que me fizeste enxergar.

17 março 2008

Eu, ele, o outro


Acredite, tive que dizer que eu sou eu,
mentindo, fazendo-me ateu de mim mesmo.
Disse assim frio, sem querer convencer sabendo que convencia.
Mas eu tive que dizer, por mim mesmo.

Na verdade hoje eu escolho quando vou afundar em mim,
para me navegar por dentro e buscar o ouro, o outro,
o outro que vale ouro, o tesouro que me querem roubar.
Preferi que ele pensasse que eu sou eu, um desses tantos.

Já tive vontade de vomitar diante do escárnio e deboche;
a raiva me enfraquecia eu outro. Agora não mais. Aprendi.
Guardei minha força para a hora que chegou.
Enquanto ele pensa que eu sou eu, eu já sou outro;
enquanto ele ainda está no esboço do sorriso medíocre,
o outro já lhe encostei o punhal no pescoço.

16 março 2008

Sensível, lilás

Tarde da noite ouvi um grunhido.
Um bicho em agonia, nem na rua, nem no quintal,
mas na minha pele, grunhia pelos poros,
no sal do suor se mostrava e se escondia,
no limite da vida entre a chance e o desperdício.
Não, prestando mais atenção percebi
não era de um bicho, nem um grunhido,
era a melodia de um espírito,
passageiro, fugaz, que morria.
Sensível, lilás, belo espírito de um dia.

13 março 2008

O sabor que é na lingua

Folhas desverdeadas
folhas embranquecidas
secas lisas mortas-vivas
presas como cachos
uvas as mesmas diferentes
para cada um
guardam o que foi
o sabor que é na lingua
fluidas palavras
asas úmidas de crisálidas
que umedecem minhas vistas
e me impõem ao modo de súdito
o olhar dobrado
diante dele
o livro

12 março 2008

Vaziez

A dor faz surgir universos,
tantos e estranhos,
inclusive os que agora me atravessam,
mundos não planetas,
espadas de dois gumes,
luas frias e cortantes
afrontando a minha carne
- de que vale a minha vontade? -
como se eu fosse tão somente
o espaço da vaziez por onde giram.

Este poema é atravessado, aberto. Poderá ser refeito. Ou deletado.

07 março 2008

Gosto mesmo é de desenhar

Detesto poesia.
Seus versos, suas linhas,
suas medidas e algemas,
falando sempre dos mesmos temas,
diluindo significados, embotando expressões,
desprezando a exatidão do silêncio.

Detesto poesia.
Gosto mesmo é de desenhar.
O que agora lês em pressas
são riscos que escaparam da minha mão
desenhos mutantes que nasceram
do desejo de retratar o teu olhar.

O que lês agora também podem ser tremores
(da hora em que inventei um novo jeito de dizer te amo)
que traçaram linhas impensadas,
frutas maduras bem do alto que caíram,
- produzindo um som - virando palavras.

Ah, meu amor, o que desenho é o mundo,
vários mistérios, outro mundo.
Bem maior que qualquer verso,
mais ainda que seu reverso.
É um mundo inconquistável. Compreendas.
Poesia? Detesto!
Meu interesse mesmo é te amar.

04 março 2008

Os meios do coração do beija-flor

As penas foram arrancadas com anseios das asas do pequeno beija-flor leveza; as verdes, as azuis e do coração, os meios. Tudo justificado pelo amor à riqueza.

Fez-se das penas parafusos para o trem de ferro que em nostalgia nesta estação, e embaraços, com um frio no peito, parado, espero para seguir viagem para onde-não-sei-o-que-faço.

Os meios do coração, disseram, foram jogados, onde ninguém anda, onde o sonho tanto faz. Desconfio que o terreno onde foram deixados seja o meu alado-azul-esverdeado coração sem paz.

02 março 2008

Flores de erva-arame

O dia termina, observo o errado que irrompe
inesperadamente na minha sagrada plantação;
erva-arame de muitas amarras
em minhas anêmicas rosas desperfumadas.
Decido avançar de peito aberto e tomá-las à mão e arrancá-las
num único impulso, no sangue, na vanglória.
Inesperadamente o errado se levanta em muitos botões
e me ameaça desabrochar em variadas flores pela noite adentro,
que de tão lindas, de tão lindas haverão de me matar
de madrugada, antes da lua ovular para o sol
as primeiras sementes do novo dia. Recuo.

Vejo como são anêmicas minhas rosas
desperfumadas pedras que tão facilmente eu atiro.