31 dezembro 2009

O último porto do rio

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Uma música que se ouve de longe, eu, longe, assim vou descendo o rio Santa Maria. Ouço nas margens do rio pássaros de três tipos, os que cantam me ignorando, os que cantam estranho canto debochando de mim, bem-feito, bem-feito, bem-feito, e os que cantam em consolo de Maria Júlia. O sol se alegra avançando pela manhã mais conforme o ânimo da senhora e dos barqueiros. Estes, dois na frente e dois atrás e mais o mestre, remam e conversam seus assuntos de todos os dias, seguem cada trecho do rio conhecido, cada curva mil vezes feita como se nada mais fosse a vida senão remar, remar. Uma cobra cai de uma árvore que se debruça sobre o rio e serpenteia, infeliz, pelas nossas águas e um dos barqueiros lhe mete o remo com força de raiva, uma, duas, várias vezes e lhe tira a vida. A senhora esposa do dono da companhia grita. O canoeiro traz a cobra para perto da barcaça levantando-a com o remo, era das grandes, ela pende para um lado e para o outro. A senhora patroa manda se desfazer imediatamente do réptil. Ele arremessa-a, e ela cai não muito longe sobre as árvores das margens, escorrega para o chão, onde ninguém vê. A água da cobra arremessada respinga sobre a barcaça, sobre todos uma aspersão. A senhora com sua sombrinha com certeza não recebe os respingos. A cobra fica para trás. Mais adiante inclino-me, molho a mão direita e levo-a ao rosto, repetindo algumas vezes o mesmo gesto. Ao final sinto um cheiro nas mãos, como se fosse o cheiro do reptil morto, logo já não é um cheiro, mas um gosto, engulo a saliva, arrependo-me, cuspo fora o que já não era a mesma saliva, o que engoli, engoli. Pergunto aos barqueiros sobre o que há para beber, alem de água, Tenho um amargo na boca. Deram-me uma garrafa de cachaça. Serve senhor? A senhora patroa olha-me com estranheza. Bochecho a cachaça e arremesso o líquido ardente para as águas do Santa Maria. Pigarreio forte e dou uma cusparada longe. Desculpa senhora, desculpa, digo. O senhor está branco, passa mal? ela pergunta-me, e sem esperar resposta ordena à empregada que me ofereça algo para comer. Não, não, obrigado. O gosto da cobra desce-me ao estômago, um gosto misto de água salobra, peixe cru, taioba cozida sem tempero. Ao dar por mim negando o que a senhora me oferecia vejo a mão da empregada me estendendo uma laranja já descascada. Avanço sobre a fruta como um faminto e chupo-a, ritual cítrico de salvação, sofregamente.

28 dezembro 2009

O último porto do rio

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A senhora esposa do dono da companhia de navegação fluvial em oposição ao que se passa comigo parece ainda mais feliz a cada curva do rio. Se bem que eu nem diria que a cada curva do rio minha infelicidade aumente. Feliz e infeliz não são parâmetros com os quais no momento faço cálculos em meus dias. Todavia, não posso negar uma dor. A descida agora sem nenhum propósito se vai constituindo como uma tentação de não voltar mais, de me arriscar em novas empreitadas, de fazer, refazer a vida no porto do mar. Tentação talvez não seja a palavra; quem sabe desejo, aspiração, subterfúgio, refúgio, salvação. No tempo de descer um rio sobe-se e afunda-se por muitos pensamentos, alguns ficariam melhor se não viessem à tona, mas vêm: recordo as cartas que escrevo, o destinatário desconhecido, o portador-barqueiro de cara não amigável e sinto certo desconforto. O que já disse de mim mesmo nessas cartas, verdades e invenções, fatos e fantasias me introduzem numa luz de ver, e vejo, a ausência de solidez, a vulnerabilidade, a fumaça da vida que vou queimando em fogo miúdo. Balanço a cabeça tentando negar o que penso, tiro e ponho o chapeu, olho para o sol, procuro o grande monte na paisagem, acerto a meia na perna do pé preto. Desenvolví uma habilidade tão grande de prestar atenção nos outros, nos que me mandam e nos que me obedecem, que transito facilmente entre os próprios pensamentos e os assuntos que se vão desenvolvendo ao meu redor. A senhora patroa não imagina, nem os canoeiros, que além do colóquio que se dá na barcaça há outro em que falo de Maria Júlia, em que me lamento do fracasso do plano de irmos juntos ao Porto do Mar.

26 dezembro 2009

O último porto do rio
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A impossibilidade de ficarmos juntos se repetia em cruel suavidade na cena, uma barcaça descendo o rio e ela, no cais , parada, com sua sombrinha sem giros, um mundo sem sol. José Bento Caetano já me avisara, Maria Júlia já não é a mesma. Algo acontecia, nem ele sabia, seu amigo que era, apenas imaginava causas que preferia não me falar. A alegria nela, rio encachoeirado e borbulhante, era nos últimos tempos uma poça d'água sobre pedra quente. O pedido que desce comigo pelo Santa Maria, tão simples, tão inesperado, agora me dói ainda mais. Ela me disse Posso confiar em você João Francisco, posso? Tantas vezes ela confiara... Por que ela me apresentava assim o seu pedido, com este preâmbulo? Por que não entrava direto no assunto? Por que acrescentar aquele posso confiar em você João Francisco? Tão estranho quanto simples, o pedido bateu sobre mim, um jequetibá em tombo depois de muitas machadadas. Ela me convidou para sair do salão e eu, insensível, disse, Fala aqui mesmo, posso te ouvir. Ela me levou para um canto da sala de dança e me fez o pedido, Me leva ao Porto do Mar? O que você quer Maria Júlia, perguntei. Não perguntar O que você quer no Porto do Mar?, era como perguntar O que você quer de mim? Ela bem entendeu e disse, Nada, não quero nada. Levei-a para fora. Desejava lhe falar o que nunca fora capaz de dizer, mas apenas repeti a pergunta, agora mais específica, O que você quer fazer no Porto do Mar? Antes que ela me respondesse vi as palavras em redemoinho na minha mente, palavras suas por direito, palavras jamais ditas, sementes que perderam o dom de germinar; de nada adiantaria arremessá-las ao chão rasgado de dor pelo arado. Fiquei em silêncio. Então ela me disse o que queria no Porto do Mar.

21 dezembro 2009

O último porto do rio

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O destino desfavorável faz misteriosas parcerias com certas pessoas em certas ocasiões. Uma dessas estranhas sociedades se deu com a senhora esposa do dono da companhia. Se já me doía a tentativa de, pelos pensamentos, encontrar as palavras certas para dar à Maria Júlia as devidas explicações, ainda mais me dói um sufoco no peito e uma dor sem lugar certo no corpo quando ouço da senhora para os barqueiros a ordem de passar ao largo do cais dos pretos e apressar a descida. Maria Júlia, distraída pela felicidade, não me vê, mesmo me olhando, sem pensar me ver naquela barcaça, de fato não me vê; espera procurando as barcaças de café. Mas então me vê. A sombrinha que ela girava, um mundo feliz cujo eixo se apoiava no seu ombro e na sua mão, descontinua de rodar. Parada ela olha sem entender. Faço um leve aceno com o chapéu, ela imóvel. Peço aos barqueiros que parem no cais dos pretos. A senhora desordena-me. Digo que lembrei que tenho negócios do interesse da companhia a resolver ali, ela não me ouve e manda os barqueiros prosseguirem com a viagem. A curva do rio logo encobrirá o cais. Uma linha de anzol lança-se do seu olhar triste, último arremesso, talvez, meu Deus. Lembro-me do seu pedido que não serei capaz de atender. O que farei agora no Porto do Mar, pergunto-me. A linha estica-se, estica-se, a barcaça desce, desce, o anzol rasga a guelra do peixe.

19 dezembro 2009

O último porto do rio

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O cais da curva dos pretos entre se aproxima e se distancia. Se ajudam ao rio os barqueiros empurrando a barcaça para baixo, não precisariam. O rio se encaminha misterioso para o desenlace dos fatos para além do que as sempre tênues vontades determinam. Quanto mais perto do porto da curva mais distante eu do mundo ao redor, naufragado em fluxos contrários, correntes onde nadar agora é perder forças, e melhor é deixar se levar até quando se oferecer por sorte um galho, se se oferecer, ou um barranco mais firme, uma margem favorável. O dia seria lindo de azul, e assim parece ser nos comentários da senhora patroa do dono da companhia, mas em mim o céu de azul e as margens de verde não tem mais tais cores, senão uma acinzentada nuvem e uma leve e anestesiante tristeza a encobrir-me. E respondo e sorrio arriscando-me em ser cordial aos comentários da requintada senhora, requinte levemente diminuído pelo ainda perceptível modo alemão de falar o português. Ao nos aproximar do porto dos pretos, subo em recurvos da memória até à venda no casarão dos suíços, ponto de encontro dos tropeiros. Ali conheci Maria Júlia, quase uma menina, assustada, perdida dela mesma, trazida pelos tropeiros para servir na cozinha, dstante de todos na postura e no olhar, livre já, não obstante ainda escrava no destino de viver dias alongados na aflição. Para ela eu olhava, indo, na ilusão, por uma estrada só de ida. Mas me assustei quando percebi que era ela que vinha, com modos de enxergar muito mais acurados que os meus.

14 dezembro 2009

O último porto do rio

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Escolho um paletó cinza de finas riscas sobre camisa branca, conto um dinheiro suficiente e enfio no bolso. Olho no espelho, acerto os bigodes e vejo a dúvida ainda a me provocar, ali, no revés da luz do lampião sobre o meu rosto, mas reafirmo, olhando em desafio os meus próprios olhos, a decisão tomada. Aquele pedido da Maria Júlia não poderia ser negado. Puxo pela corrente o relógio, ele vem de sobre o peito de onde vem também a lembrança do seu olhar, como se me mirasse agora com a mesma tristeza que me banhou ao me fazer o pedido num canto do salão de baile. Se a alegria adensa o corpo de fibras e forças, a tristeza faz líquida a alma, cheia, a vazar nos olhos, várzeas de inundação. Apresso-me, recoloco o relógio no bolso, tomo o chapéu e sigo pelas ruas escuras na direção do cais. Tive a permissão de ir ao porto do mar sustentada por argumentos não tão verdadeiros, mas bem sinceros na intenção. Desceria numa das barcaças do amanhecer de sexta-feira e no fim da manhã de segunda-feira já estaria de volta, em nada prejudicando o trabalho. O meu jovem auxiliar cuidaria de por em prática pequenas orientações. Maria Júlia espera a barcaça no porto da curva dos negros. Assusto-me quando vejo que também desce os degraus do cais, no suave escuro da madrugada, a senhora esposa, jovem esposa, linda, do dono da companhia. Manifesta-se ela admirada da minha viagem, elogia minha distinção, dizendo quase não me reconhecer, o que me deixa sem saber o que falar, o que os homens do cais percebem, e me convida para tomar um lugar na sua barcaça. Quero dizer que viajarei muito bem acomodado numa das barcaças de café, mas ela insiste, enfática no convite, espontânea no modo de falar, e, inesperadamente preso, assanhaço em alçapão, não me sobra outro jeito senão aceitar. A senhora e jovem esposa do dono da companhia me diz que decidira de véspera fazer a viagem. Teria lhe contado o marido sobre o minha ida ao porto do mar, é um relâmpago de pensamento que tenho. Sinto-me alterado nos batimentos do coração pensando em como resolver a situação no porto da curva dos negros, onde Maria Júlia me aguarda.

12 dezembro 2009

O último porto do rio

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As horas me batem, ventos endoidecidos que batem portas desprevenidas, e fico sentido por um tempo, depois pensativo, sem grandes proveitos do pensar. A hora de agora, três horas, por volta, é de sol tão forte e ar tão quente e parado que algo no mundo parece ter acontecido para que outro rumo seja dito, ou visto. O rio de viver a vida devia ser, nesse momento, de águas bem lentas, quase paradas, para que eu pudesse ter como contar e organizar os rumos, assim do jeito que conto as sacas de café que chegam ao armazém, e as que descem o rio, sem nada deixar passar. Mas elas me imprimem na pele, nos olhos, na alma o cansaço de cada canto do armazém, a poeira e o cheiro adocicado enjoativo do café pilado. Nestas horas, entre outros e diversos pensamentos, invejo os caixeiros viajantes que se colocam numa sombra de árvore boa à beira da estrada e deixam a vida passar. Olho da janela, os homens sobem e descem a rampa do cais, molhados de suor, cantando, sem pensar a vida que vivem, preparando as barcaças que partem para o Porto do Mar logo nas primeiras luzes da madrugada. Dobro-me sobre meus papéis, livre de escrever cartas, por enquanto. Foi-se a última, em branco, e por agora resguardo-me das preocupações do que escrevo e para quem. Voltam em círculos as lembranças do baile, Maria Júlia, o pedido que ela me fez. Meu Deus, eu não esperava tal pedido. Reparo no rapaz que me auxilia no escritório, ali tão sujeito aos meus mandos, e ao mesmo tempo tão livre de mim, tão próprio em seus caminhos. Parece feliz, decidido. Talvez seja a felicidade natural da juventude, quando se é feliz mesmo não sendo consciente dela. Ele ergue os olhos percebendo uma ordem no meu modo de levantar da mesa e já pergunta, Sim senhor, o senhor precisa de mim? Invento um trabalho e o chamo para que me siga, fugindo de pensar o pedido da Maria Júlia. Tenho por ele, num instante, um leve pensamento e um estranho carinho de pai, apesar de que pai não sou, mas suponho o sentimento. Senhor, ele me diz, O senhor ficou sabendo?, estão contratando homens para subir para as matas das terras frias nas montanhas com uns engenheiros que vão demarcar terras para os novos imigrantes que, dizem, estão chegando. O Porto do Rio vai se movimentar com os imigrantes. Que imigrantes? pergunto, e afirmo, Já vieram suíços, pomeranos, luxemburguenses, alemães. Dizem que chegarão muitos, responde, agora chegarão os italianos. Senti no tom de sua voz o ímpeto para a vida e o desejo de um novo trabalho, de fazer a vida, e pensei que talvez também fosse bom subir em tal empreitada, me embrenhar pelas matas.

10 dezembro 2009

O último porto do rio

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Assim, mais branco por dentro que a folha de papel, não branco de puro, mas de vazio, apesar de que talvez o vazio seja escuro, sem conseguir escrever, mesmo que abarrotado de pensamentos, é que dobro a folha de papel sem nenhuma palavra e coloco-a no envelope. Não me furto de pensar, ainda que em rapidez, que a folha vazia seja o que mais eu poderia falar, o ponto mais distante neste caminho de entendimentos do destino. Recolho a folha ao envelope, como já disse, prenhe de pensamentos, mangueira que não segura frutos em terras frias, besunto com abundância as bordas da carta e pressiono uma parte sobre a outra selando de vez, sem recuos, a brancura e o vazio em seu interior. Nem sei a razão, mas o gesto de dobrar a folha em branco, selar o envelope e enviar para alguém que não sei quem, me arrepia por dentro, as veias apertam o sangue e um frio mina na pele. Nego a palavra a quem me pede, ou digo tudo no branco da carta vazia. Surge um pensamento amarrotado de sentimentos, de que fosse minha mãe, uma mãe desconhecida, uma mãe que ainda me quisesse, apesar de ter me dado aos outros, de ter me abandonado, e que purgando suas culpas, admitisse não poder mudar o feito, mas, ainda ligada ao filho, quisesse dele pelo menos as palavras. Sigo com a carta na mão. Palavras no papel são coisas que ficam por um tempo a mais. Um tempo a mais. Lá fora o insano grita mais exigente. Duvido da atitude que tomo, titubeio mas não desisto. Desço apressado ao cais e entrego a carta ao sujeito. Miro seus olhos com firmesa, um jeito de recusar, ou admitir, o perigo que ele representa.

09 dezembro 2009

O último porto do rio

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Dizer o que digo me foi difícil, não é mais, sem ser fácil. Sou movido, ou levado, por uma força fria, dessas que se adquire quando decisões importantes já foram tomadas, ainda que não de todo assimiladas, e descem da mente para os dias na forma de um vamos ver no que vai dar. E digo me perguntando que sinal é este, ou inicio de doença, ou moléstia de velhice antecipada a se manifestar no meu pé, este alheio pé preto, que além de ser o que já é, apresenta tremores. A tremura vai do momento em que recebo do José Bento Caetano o convite para o baile até a hora em que piso no salão. Maria Júlia. Maria Júlia me faz esquecer tudo. Mas o amparo oferecido por ela é um abrigo que não me sustenta por não mais que poucas horas, e logo vem um desalento de viver a vida que vivo, subir o rio, voltar ao cais do último porto. Maria Júlia já não é mulher senão para estas coisas de baile e noites de festa no porto da curva. Do mais é história passada e futuro perdido. Durante todo o dia preciso tomar cuidado em manter meu pé alheio bem firme no chão a impedir assim o seu tremor, tremor que sobe e estanca no joelho, onde o suporto, apesar de mudar o meu andar, o que não percebo. Dizem que em certos dias ando com ar mais decidido, livre. Não imaginam o que se passa comigo. Quando em tais dias me distraio e cruzo as pernas a vibração da tremura fica visível no sapato e o presidente da companhia das barcaças do Santa Maria & Vitória já me inquiriu a respeito, tendo por suposto alguma coisa errada que eu tivesse praticado. Difícil, de fato, é entender tremores em situações tão corriqueiras, funcionário que sou, e sempre fui, da sua confiança, apesar de que, confiança de quem tem muitos negócios, sempre é uma confiança incompleta.

08 dezembro 2009

O último porto do rio

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Ele tem por mim uma amizade, água limpa e transparente em pedra de cachoeira, que não tenho por ele. Não me nego ao seu bem-querer, mas em certos momentos me incomodam aqueles seus sentimentos que são assemelhados aos de parente, coisas de primo, irmão, uma ligação que não se explica. José Bento Caetano é o seu nome, pomposo demais, luva maior que a mão. Talvez o nome Bento fosse, da tríade, o que mais lhe conviesse, mas ele faz questão de ser chamado pelos três, e assim é conhecido em toda redondeza. Coisa admirável, não vou negar. Alguns acrescentam o negro. Tentativa, parece, de diminuir a nobreza que o nome lhe confere. O negro José Bento Caetano já suado de muitas sacas de café corretamente dispostas nas barcaças, ao me ver, acelera os passos na minha direção, e, respeitoso para quem visse de longe, e íntimo no pequeno sorriso e no brilho e piscar do olho canhoto, vai rapidamente me passando a notícia, dando tudo já por certo e combinado, Hoje tem baile dos pretos no porto da curva dos pretos. Retira-se então da minha presença assoviando como se nada tivesse falado, já vivendo a felicidade e as forças readquiridas no baile daquela noite que lhe duram por dias como disposição para a vida, ou para o trabalho pelo menos. Com certeza ele sabe das minhas esquisitices, e faz-se meu cúmplice no segredo que nem mais segredo é, de ir ao baile dos negros no porto da curva dos pretos, e no Último Porto do Rio, tendo-me por importante, sem ser, freqüentar apenas o baile dos brancos no clube da cachoeira. Dou-me contra estes pensamentos, pedra de topada e de desorientação momentânea, surdo a todos os ruídos do cais, e logo ouço, passado o tempo do confronto comigo mesmo, apenas tendo entrado no escritório, o insano barqueiro gritando meu nome precedido do usual senhor, mais alto do que seria necessário, acrescentando o pedido, a ordem, de que não demorasse com a carta, pois que já ele ia descer o rio.

01 dezembro 2009

O último porto do rio

6

Estranhamente ganho ânimo, uma mescla de tristezas e alegrias, quando alcanço a rua e atravesso os movimentos característicos do dia que amanhece. Tento entender, não entendo, sinto, talvez. Se latem os cachorros nos quintais, os rumores interiores forjam um assovio sem graça, de melodia repetitiva em meus lábios. Quem me vê passar até pode pressupor ali um homem pacífico e reconciliado com seus rumos. Se nas portas as crianças pequenas choram, se águas são arremessadas das janelas das cozinhas, se um cheiro de café e esgoto se levanta forte no ar aquecido pelo primeiro sol, acelero os passos sem perceber, quase correndo, como a levar uma boa e inesperada notícia para os barqueiros. Se dálias brancas brotam de terreno lodoso e dobram-se sobre cercas de madeira, a vida, a minha, se vai resvalando do destino que devia ser. Ser feliz. Bem vestido, altivo, sigo para o armazém no porto do rio. Sapatos bem engraxados, meias limpas resguardam-me de ver aquele alheio pé preto. Esqueço-me dele e me encorajo para o trabalho. A gritaria dos barqueiros acertando suas cargas, e que logo, sem demora, vão pelo rio abaixo, redescobre dos meus ouvidos uma voz, a própria, mansa, insistente que diz quase com entusiasmo juvenil, junta-te aos barqueiros, abandona este porto decadente, desce para o porto do mar, procura a mulher que te pede as cartas, viva a vida que se abre à tua frente. Esconderei dela o pé negro, depois, se um dia ela descobrir terei um argumento bem pensado. Ela com certeza se faz de pele branca, faces rosadas e cheira a água de colônia parisiense. Mas quem me pede as cartas eu não sei. Bem que acho que me engano, mas é insistente nas voltas da mente a esperança de que seja tal mulher. Há outro engano aqui, não sou eu este que me construo nas ilusões das cartas escritas, com olhos melancólicos, nos intervalos entre o rio que vai e o branco da folha de papel.