24 outubro 2011

Proclamações do apocalipse do fim do dia

Ali, sentada, na tristeza da tarde, quase noite, quando não importam as lamparinas, apenas as estrelas importam, importam como uma espécie frágil de consolo, ou de companhia, ou nada disso, ali à porta da larga cozinha, sentada nos ladrilhos gastos do último degrau ela descansava das lutas do dia, de ter vivido de trabalho, ela descansava batendo na mesma tigela de tantos sabores uma meia dúzia de ovos com gemas vazantes de forte amarelo. Depois acrescentaria outras cores, verdes e sabores. Vinha-lhe a velha gata enrolar-se nas pernas, ela nem percebia. Ela, a gata, a cozinha, os cheiros, as chamas no fogão, o fim da tarde, a tristeza, a felicidade, tudo era uma coisa só. Olhava tudo, sem prestar atenção em nada, olhava porque olhava, porque tinha olhos, porque era costume ver aquelas paisagens, com amizade, com intimidade e indiferença ao mesmo tempo, olhava o pomar como uma longa faixa escura recortando as montanhas acima, olhava as montanhas e seus parentes que lá moravam mais altos, agora em suas casas abocanhadas pela escuridão, escuridão ainda maior pelos avisos dos pássaros em suas proclamações do apocalipse do fim do dia. Enchia-se o olhar no amarelo nublado pela noite nos ovos batidos, enchia-se daquela felicidade, daquela mornidão de viver, viver, viver. Haveria de levantar-se do chão com cuidado, a gata já acostumada com os empurrões iria por ali numa curta meia volta, e depois retornaria, amaciava-se ainda mais a gata em suas pernas, apesar dos empurrões, nunca teve nenhum arranhão das unhas do felino, depois se dobraria com cuidado para pegar a tigela, tinha a coluna ainda maravilhosamente flexível, naquele dia doia-lhe mais o joelho esquerdo.

15 outubro 2011

Era rouca, levemente áspera, mas nela havia uma maciez de voos

Uma voz no limite, um canto destes pássaros de alturas, um sussurro entre dormir e acordar, entre cantar e gritar, entre ficar quieto e entristecer-se. Vinha a voz lhe dizer qualquer coisa assim difícil de entender. Uma única vez ele me confidenciou isso nos longos anos de amizade. Era rouca, ele dizia, levemente áspera, mas nela havia, hoje entendo,  uma maciez de voos, de tempos vagos perdidos em algum lugar pedindo resgate. Era a voz um lençol de coisas, de sentimentos que não se delineiam em nenhum padrão, roupas num varal defronte ao azul de dias bonitos e tristes, voz que ele ouvia, que ouço e tu também, eu sei, se me permites. Um quê de não sei onde que vem e  diz, vai, pega a estrada. Ele olhou o perfil das montanhas recortadas nos olhares e se foi. Não foi, é claro, assim tão rápido, foi com demoras de tardes solitárias, de chuva miuda por dias, demoras de entremeios de domingos nublados e cartas por escrever. Rápida é a história, de muitos anos, na brevidade deste relato que fui encarregado de contar-te. Ele não tinha um destino, tinha vários, tantos que se perdia entre eles. Há deste tipo de pessoas por ai, talvez até conheces algumas. Sempre fora assim, desde a escola, quando por entre as lições que não deixava de ouvir, se desorientava entre o rio que corria impassível, tranqüilo, e o redemoinho que se levantava inesperado em folhas secas e espíritos. Recolheu a voz no peito, como se tivesse morrido, de certa forma tinha sim, e se alargou em passos por uma estrada que não sabia aonde ia dar. Nos passos dele aquele dia dei também os meus. Não te nego, contar-te este conto, que tão pacientemente ouves, é uma forma de reviver. Mas os tempos que pedem resgate nunca são resgatados, eles apenas se reescrevem nas novas páginas das estradas que vamos vivendo.

11 outubro 2011

Múltiplas mãos dançam suas sombras em cada letra que deixo nestes papiros

Estou rodando o caleidoscópio que é a vida e olhando. Olhando e vendo tempos em meus escritos... e resistências. É como se eu dissesse, não sou consumidor de palavras, sou vivo o bastante para não ser apenas consumidor, leitor; sou marcado por tantos tempos que não posso ser apenas consumidor, sou criador. Há em nós um impulso intempestivo, um desejo produtivo, um anseio de poesia. Mas bem sei, o que criamos, criamos em parcerias com o tempo, em parcerias entre nós – algumas bem disfarçadas - e em outras mil parcerias. Múltiplas mãos dançam suas sombras em cada letra que deixo nestes papiros luminosos à minha frente. Sou, somos, a mestiçagem de tempos, de dores e poesias, de vivos e mortos. Somos uma mistura ainda não muito bem mexida entre os sulcos na terra rasgada pelo arado e as avenidas barulhentas, entre a carroça e o satélite, entre tinteiros e  bytes. Estamos na interseção. Bem... não sei. Estou apenas rodando o caleidoscópio.

08 outubro 2011

Tempos que se avizinham das minhas mãos nos seus menores tremores


Escrevo assim como vocês também escrevem, escrevo marcado pelo que vou sendo, pelos modos atuais de produção de subjetividade que nos constituem, e que inclui esta máquina humana pela qual nos afetamos de suavidades e intensidades. Nossos cadernos maravilhosamente tiveram suas páginas misturadas. No mesmo folhear o olho em seus doces e amargos enxerga traços, digitais reveladoras de anseios, sonhos e desejos, cicatrizes e belezas, as nossas. Nossas poesias e buscas que se adensam e criam asas aqui por detrás dos dígitos, das fontes, nesses nossos computadores, telas, tecidos e pergaminhos pelos quais jorram em fabulações nossas almas e corpos.

Sei, vazam, escorrem no meu texto uns tempos que marcam meus dizeres como seus domínios, e plantam suas bandeiras em cada pequena colina de palavras deste pequeno escrevedor. Uns tempos, maiores do que eu, é claro, bem maiores, imensos, mas que me incluem, pequeno nome em compêndio de larguíssimas páginas. O século XIX, o XX, e o XXI. Tempos que se avizinham das minhas mãos nos seus menores tremores, que me habitam nos sonhos mais escondidos; tempos anjos ou fantasmas, espíritos, vozes, todavia, e que falam nessas titubeantes grafias. Tempos que me temperam, espero.

Quero em gratidão e delicadezas dar nos meus textos, quaisquer que sejam, umas linhas, uma cor, uma nuvem, um parágrafo, um espaço, um riacho, ou uma vírgula que seja para o século XIX. Tantas histórias bonitas ouvi sobre aqueles meus que eram daquele século! Aquelas vozes ainda me embalam, me embarcam, me despacham em viagens, como numa tela de cinema em sala com poucas pessoas em plena tarde de um dia qualquer da semana. Tantas vezes ouvi como foi atravessar o mar e se aventurar pelas matas do Brasil, que esta para mim é “a história”. Deixar a própria terra e em navio abarrotado, lançar-se para outro mundo. Antes de qualquer outra história, da bíblia, infantil, da televisão, da literatura, esta é a história, a história que sempre me conta e se reconta nas esquinas dos meus textos. É a primeira. História contada recontada, ou seja, contada por alguém que já nascera aqui, mas que fazia questão de torná-la marca de vida naquelas crianças, contada por alguém que queria marcar a memória como atualização de aventuras e sonhos, coragem e determinação. História sem letra e papel, apenas voz e coração, contada, cantada num português muito precariamente assimilado, na voz de avôs, no lusco fusco de noites em que sentir o bom de viver incluía lembrar, em carinhos e reverências, os que morreram.

Tempos, meus tempos, eu tempo, em tempo...


Continuo depois com os outros séculos.

07 outubro 2011

Uns passarinhos assustados voaram



Estava ali para dizer, mas o que queria mesmo era ver, e não dizia nada, apenas rodava o botão da camisa sobre a meada de linha que lhe dava sustentação no tecido como se desse a um mundo uma ajuda no seu movimento de rotação sobre os próprios eixos. Abaixara a cabeça sem saber o que dizer, à porta, nem dentro nem fora da casa, o que desejava mesmo era entrar, ver. Seria muito bom ver, outra vez. Não se cansaria de olhar. Tinha esquecido o recado. Só sabia que deveria ir ali levá-lo. Mas qual recado? Guardara o destino, esquecera a palavra, juntava demais destino e desejo. Tenho que voltar, disse ainda de cabeça baixa, vou buscar o recado. Ao levantar a cabeça esgueirou o olhar gotejante para dentro da casa, para as suas sombras, para os seus segredos e intimidades para tentar ver o que tanto desejava... e não viu. Só ouviu a doçura da voz perguntando, quem é, meu bem? Saiu em disparada. Haveria de voltar repetindo as palavras do recado, não esqueceria, e, quem sabe, ao postar-se à porta de novo ser-lhe ia dada a sorte. O homem voltou-se para dentro da casa, o sol se intensificou sobre a estrada, uns passarinhos assustados voaram.

04 outubro 2011

Gave me the gift old song


Se lhe falo talvez você venha a me entender. Talvez. Como a tarde se avizinha de palavras sussurradas é bem provável que você se avizinhe dos meus pensamentos. São tantos, me perco e talvez você se perca também. Personagens fugazes confundem o leitor. Perdoe-me. Olhe, se possível, olhe o que corre na voz de Nina Simone, ali estão algumas caligrafias, muitas palavras que aquele personagem queria dizer, e não disse. Ele só cantava uma canção, uma canção que se lhe tinha sido dada. O nome dele era Epifânico, e trabalhava com lavouras, umas cabeças de gado e fazia arte com couros, selas e arreios. Sua voz era densa, corria as montanhas em lombo de cavalos marrons e lá do alto gritava o grito do mundo, ou outro grito, não sem o mundo. Ali ele espreitava o mar, quem sabe veria um pedacinho do mar, se dizia que se avistaria o mar da montanha certa, dalí, pelo olhar ele fazia soltos seus anseios de ir-se até o mar, de subir o Convento da Penha e rezar, agradecendo a canção que lhe vinha à mente sempre que voltava pra casa e encontrava os filhos, todos pequenos e barulhentos em torno da esposa, sob a luz parca de uma única lâmpada pendurada em fio bem do centro da cumeeira. Mas ele queria dizer isso que agora lhe entrego como missão. Por favor. Diga você. Ele se foi, não entrou em nenhuma história, ainda não, talvez ele mude de profissão, talvez seja aviador ou preparador de mudas de cerejeiras. Mas, de mais, o que se pode contar? Para que se avizinhe você do que peço, digo que restaram as montanhas, tantas possíveis poesias e a voz. As montanhas doces do Espírito Santo, um pequeno rio que deságua talvez no solene e alargado rio doce, possíveis poesias e outras histórias que você inventará, como esta, assim, como esta, de marca e cicatriz de chuvas e tardes que parecem tímidas crianças em primeiro dia de escola. Você sabe reconhecer essas tardes, eu pressinto. Tudo o que o amigo, a amiga precisa para dizer as palavras do Epifânico está ali na voz. Se bem que me exagero no que pesa nessas chuvas na janela; algumas caligrafias estão ali na voz, outras estão no que pousa como pássaro sobre suas próprias mãos. Seja abundante na recolha das palavras, naquelas que diria o Epifânico, e que venturosa e suavemente agora dirá você. Ali, veja, ali, bem ali, na voz de Nina Simone que canta Compensation.