26 dezembro 2012

Os habitantes - 5

, sofrer este ou aquele acontecimento, um esbarrão aqui ou lá é uma coisa, mas seguir a vida semeando desejos e sonhos, e na colheita ter apenas esmirrados frutos, nem sempre doces, na maioria das vezes não, exige uma espécie de paciência, aquela que talvez seja parelha à dos monges, uma paciência que se amasia com o divertimento que se dá a partir de abundantes pequenas coisas, um riso farto e uma sensação de felicidade por uma trivialidade qualquer, ria de si mesma, sentia sede e não tomava água, Romana olhou a clarabóia empoeirada lá no alto marcada por camadas de poeira por cima e de olhares por baixo, os dela pelo menos, olhares como de prisioneiros, sede de prisioneiro, e levantou-se rápido, abaixando-se sem dobrar os joelhos como era seu costume, mantendo uma feliz capacidade de flexionar a coluna sem os incômodos da dor, para tomar a chaleira de alumínio no armário, nas portas de baixo de um velho armário de madeira, ferver a água e passar um café novo, logo teria que servi-los, colocou sobre a pia a vasilha e abriu a geladeira, encheu um longo copo de água, tomou-o e lembrou-se de novo do esquadrão, seu marido morto, ninguém sabe quem o matou, todos comentam do esquadrão, arrepiou-se em pensar que a campainha cujos sinetes retiniram em alguma igreja pra o serviço da missa se prestasse agora a chamá-la, logo, logo, para servir o café ao governador e aos seus homens engravatados

25 dezembro 2012

Os habitantes - 4

, seguiu Romana para a cozinha por aquelas ruas labirínticas por entre móveis, utensílios de um tempo de gente morta há muito tempo, coisas e mais coisas, altas e baixas, mas sobrepostas umas sobre as outras, se menores, se possível, formando aquelas paredes todas, ela seguia e a dor já passara do ponto do nervosismo, já era possível suportá-la, a dor diminui ou acostuma-se?, as do coração, as da alma não diminuem, habitua-se com elas, elas passam a morar no mesmo prédio, inquilinas do mesmo corpo, chegou à cozinha, escura mas fresca, um quadrado de vidro no alto dava-lhe luz, queria um dia subir lá em cima para lavar aquele vidro de séculos empoeirado, o ar vinha, vinha fresco das muitas sombras do galpão, o ar chegava macio das muitas voltas dadas pra chegar ali, como era agradável aquela cozinha, e sentou-se sem vontade de tomar o gelo e por na perna, na coxa mais especificamente, arriou-se de seus pesos, sentou-se em lembranças de tempos bons, esparramou-se mal ajeitada na cadeira e as mãos levemente apoiadas na mesa, dois dedos da mão direita, quatro da esquerda, medidas e contas que via nas mãos, por que pensava em contas da vida agora?, dois e quatro, o dois dizia da vida os anos bons, e o quatro os anos dos sofrimentos, vinte anos bons porque cheios de esperanças, os primeiros vinte da vida, e quarenta de muitas lutas e sofrimentos, ah, veio-lhe a mente o balde que usava, aquele grande de latão com o qual recolhia no riacho a água para o pote, limpa e brilhante de expectativas, sonhos que nunca ganharam o corrimão na escada das realizações, queria agora um copo d’água, era só levantar e abrir a geladeira, seria bom ter um filho por perto, filho por perto? ai meu Deus!, mas o corpo dizia, aguente a sede e deixe as pernas descansarem, aguente a sede

23 dezembro 2012

Os habitantes - 3

, nisso dona Romana se aproximou, de romana ela não tinha senão talvez um jeito de matrona, brasileira é que sim, italiana já da terceira geração no Brasil, e veio meio que espavorida dizendo, o senhor governador, o senhor governador, e de repente ela mudou de assunto e começou a fazer reclamações como se eu é que fosse o governador, e a sugerir, reivindicar com autoridade, o senhor devia fazer uma avenida central por este galpão de tralhas, estão aqui há tanto tempo e ninguém comprou, e esse vai e vem de ruas que mais parece um labirinto, calma dona Romana, eu dizia, calma, acabei me machucando, ela reclamou, nessas quinas velhas, e esses ferros velhos podem infectar alguém se a gente se espetar numa dessas coisas que sabe Deus de onde vem, o senhor faça o favor de fazer uma rua central aqui ou senão faço eu, e o governador? perguntei,  está lá na frente, ele e mais uns homens de paletó preto, parece que vem de enterro, meu Deus!, o que houve? lembrei do esquadrão, respondeu e continuou, ele está lá olhando umas poltronas, aquelas que o senhor quer vender por um preço bem alto e que até hoje ainda não vendeu, calma Dona romana, calma, sim, sim, vou pra cozinha, o senhor tem razão, vou me acalmar, vou colocar um gelo nesse roxo na perna, se precisar o senhor toca a campainha da igreja, mas me dá um tempo, por favor, se bem que eu acho que o senhor não devia tocar pra chamar alguém uma campainha que se tocava na missa pra chamar os anjos para o altar
Os habitantes - 2

, trabalho com coisas velhas, nem digo antigas, qualquer uma que se possa comprar e se possa vender, e para que você me encontre tem que atravessar este galpão penumbroso de tantas coisas, seguir por pequenas ruas entre elas e chegar aqui onde agora estou, se antes você não se encantar com uma  qualquer, elas nos pegam, as pessoas são pegas pelas coisas, não apenas as novas das lojas apelativas, mas também por estas sem valor, nem são antiguidades, mas comercializo, ganho a vida ou perco tempo, beleza é que não têm, charme é que sim, charme que do uso ganharam, das assombradas marcas que trazem, eis que aqui estou, sou dado a muitas leituras, fregueses são esparsados, romances que ninguém lê, que compro em sebos, que nada me ensinam, me ensinam apenas um certo domínio da língua, lábia que uso pra vender algo de pouco valor como se muito tivesse, mas tenho que viver, comércio não se faz sem se agregar histórias ao que se vende, o que ela diria, retomo a pergunta, não há como resposta nenhum barulho, nenhum sinal, ela retirou-se para uma outra conversa, com São Rafael talvez, pedindo por alguém uma ajuda, se sua vida foi assim, como não ser sua morte, como não ser sua morte essa ponte constante de atravessar entre quem precisa e quem pode ajudar

22 dezembro 2012

Os habitantes - 1

, talvez seja melhor dizer uns fragmentos, ou em fragmentos, ele pensou, do que nada falar, ela escutaria, calma, tranqüila, sempre presente, tão discretamente presente, totalmente ausente, mas presente, porque senão o calor me evapora, as palavras em vento, como vento das montanhas traria uma aragem de sossego, estava desassossegado, o sossego o que seria?, perguntava-se, teria tido sossego algum dia?, sim? quando?, mais sentia-se assim, acostumara-se assim, o sossego era só um momento, o passar de um passarinho, foi abrindo a mesa sem cuidado, nada era tão importante quanto tomar aqueles pensamentos e fazer deles umas frases, elas seriam salvadoras, abriu a mesa com as duas mãos, empurrando tudo para os lados, como um general que abre um mapa sobre o brilho da mesa bem polida, a sua não, a sua carregava-se de manchas, marcas, manchas ou marcas?, marcas, preferia marcas, eram marcas, mas até que queria apagá-las, viver sem marcas, sempre fora marcado, como um boi, balançou a cabeça como se os pensamentos fossem moscas, melhor seria mandar aquela mesa para um canto qualquer do galpão, e procurar outra, mesas haviam muitas pelo galpão afora, mas, da mesa vieram lembranças, o que ela pensaria, o que diria, sim, talvez, se pudesse, ela tomaria a caneta, ela não sabia usar teclados, mas na caneta ela desenhava letras, cada uma com um sentimento, o seu a era um balãozinho branco no céu, o seu m era uma cadeia de suaves e lindas montanhas de uma terra distante, agora eu entendo, ele pensou, agora eu entendo a distância daquelas montanhas do seu m, mas ela estava ali, e avistava tudo, e o que ela escreveria?, ele se perguntou

09 dezembro 2012

, mas poderia ser insistência demais, insistir com Deus, com o tempo, para que voltassem os passos que não dei e o tempo me desse a chance de seguir por outros caminhos, guardar o que aconteceu em laços tão fortes, tão fortes como barras de uma cadeia, não, não darei mais esses passos, não voltarei mais pela memória aquele dia, a noite nem fora assim tão maravilhosa, fora sim, uma noite inesquecível, mais do que qualquer coisa ali, havia outra, outra coisa, mais que coisa, menos que, uma luz que diz que aquele é o momento, talvez de um nascimento, de uma morte, nada comum, tão comum, solene é melhor dizer, sublime, ou tudo criei, tudo inventei, me amparei tantas vezes nas lembranças daquele encontro, um porto pequeno perdido, um posto de beira de estrada sem movimento, esperei que por milagre nos encontrássemos de novo, o mundo deu voltas, é hora de, o avião já está aterrissando, outra hora retomo a leitura

08 dezembro 2012


, você distingue os fios, surgem veios de luz na sua mão, solidifica-se ali ao lado a cera derretida de uma noite bonita, há algo mais pra dizer, não, você não me diz, quem sabe quando o sol nascer, nasce e o “bom dia” fica no lugar da palavra, casa que se constrói onde se pode, falta uma colina e um riacho, há algo mais a dizer, não, você não diz, me olha, fala umas poucas coisas na fresta de um instante, vou-me longe, e enquanto recordo aquela dia, aquela noite, chove-me um entardecer de possíveis e fáceis outras noites, mas sem você, os anos descarrilharam, rolaram mais rápidos do que se podia imaginar, não encontrei a escuta daquelas palavras, aquelas que só você podia dizer, é, sim, estas palavras que outros encontram e lêem agora diz outra coisa, ela diz uma história, de uma noite, de vidas, mas é outra coisa o que ela quer dizer, nem sei, nem você, apenas aquele que lê é que pode saber