28 dezembro 2007

Olhar na mesma linha dos trilhos

Quando veio aquele trem
ele largou a foice e correu,
se jogou no chão e estabeleceu
seu olhar na mesma linha dos trilhos.
O tremor lhe atravessou até a língua,
suas mãos se tornaram garras no chão,
seus olhos, escancarada boca de forno
e riacho pequeno e espumoso
umedeceu o capim.
Depois que o trem passou
ele viu o lado de lá onde vivia,
ou só morava:
o mesmo terreiro seco e varrido,
o mesmo curral lamacento,
a mesma casa pequena,
pai, mãe, irmãos lá.
E o sol caindo, caindo,
tudo parado, tudo caindo
na mansa boca da noite.
O que ele esperava,
ou sonhava,
era tomar o trem e se ir
não sabia para onde,
como se houvesse um longe
onde fosse possível fugir
daquele trem da alma,
ou do corpo - quem sabia?
Tão certo quanto o trem
que passava todo dia
quem passava era ele
... que ficava
sem saber a que horas
aquele outro voltaria.

23 dezembro 2007

Poemas-náufragos

Dedico aos amigos dos blogs-naus.


Tenho todas as palavras no mar da alma
sem desfrutar da fartura dessa possessão
pois as que pronuncio são acometidas
de disritmia, escorbutos, solavancos e baques.
Não há homem de bordo capaz de distinguir
o que diz essa minha rouquidão que se levanta
para proclamar o grito que salvaria o mundo,
meu pequeno mundo, cais (caos?) de vivências cotidianas.

As palavras me olham desafiantes, tensas,
lobos do mar da espécie ferrugem-ventania
com olhos de água fervente
e pêlos suaves de veludo ao luar.
Conclamo-as e poucas se fraseiam, por piedade,
como soldados de prontidão ao meu lado
e são essas, ó nobres navegantes
que, em gentilezas , ledes agora.

As outras se limitam a me queimar com seus olhos
ignorando meu esforço e desdenhando
da minha precária nau e sua tripulação
e das degredadas palavras enviadas
para colônias distantes e de porvir incerto,
em poemas-náufragos nesse web mar,
e que por sorte foram resgatados por vossos olhares,
ó gentis e amáveis navegadores!

21 dezembro 2007

Maças e percevejos

(Nos comentários a respeito do "Esse truque" a Jacinta fez referência
a esse outro poema. Decidi então publicá-lo novamente aqui)

Me dobrei de dor,
de não saber,
de querer saber.
Nessa luta que não acaba,
poder que perdi.
Ganho que tive foi ser
sei lá, quem se vê.
Me vi sozinho aqui
e não tive outro sonho
senão o que me acordou
enquanto me perguntava
quem eu era,
ora essa!
Quem era esse
Eu.
Me dobrei mais que pude.
(Sentir a dor
me é dado poder).
Me dobrei por dentro
e apareci por fora
e descobri na hora
replicada em tantos instantes
que sou um feixe
desarranjado de linhas,
emaranhado de desejos,
maçãs e percevejos.

20 dezembro 2007

Esse truque

Perder tem um som de poder,
pura ilusão de pensar
que o que está perto,
o que se é,
não se vai perder.
Perder se explica com saber perder.
Que nada!
Conversa fiada.
Perder tem a ver com rir.
Pra não chorar?
Coisa nenhuma!
Se chora do mesmo jeito.
Para que então?
Só para se ter na cara
o riso – debochado? – que diz:
perdi, não me submeti.

(para Deus também quero dar esse riso
quando eu perder minha vida,
já que foi Ele que, em segredo,
me ensinou esse truque).

Truque?
Claro.
Perder sempre dói.
Hehehe!

18 dezembro 2007

E por aí vai...

A palavra dos outros me leva,
a minha no começo me pesa.
Cada letra do que escrevo carrega,
além de tudo que não sei, um grito preso,
um grito de angustiAção (o que é isto?)
É como se fosse outro coração a pulsar.
Esse grito no peito bombeia o sangue, o desejo,
o destempero de querer impedir de passar
o que foi feito de sopro. E por ai vai...
Janela sem tramela que bate, bate, bate
em casa abandonada, no domínio desse grito
eu escrevo correndo, fugindo de um sortilégio.
Na sofreguidão me esqueço das demarcações
e me descubro nu, leve e distante. Depois volto
com vontade de montar o presépio em agosto
visitar cemitério em janeiro
soltar um grito-de-carnaval a cada dia
e, apesar do sufoco,
por incrível que pareça,
dar o braço a torcer
e...
acreditar no amor.

16 dezembro 2007

Vida estranha olaria

... É que pensei em construir uma casa,
acolhedora, cheia de lindas vistas
e com muitos quartos.
Já pisei o barro e fiz os tijolos,
aguardo o sopro de silêncio
com a revoada de vocábulos,
esses pássaros solares.
Aguardo o sol
nessa vida estranha olaria. Há lenha,
fogo embora não há.
Já tenho o desenho, no entanto
o lápis ainda espera o correr da mão.
Aguardo, e de aguardar me enfureço:
Oh céus! Que caia um raio
e me queime os tijolos,
preciso urgentemente dessas palavras em brasa.
... É que pensei em escrever um poema de amor.

14 dezembro 2007

Talvez algo como amoras

Preciso ir dormir mais cedo.
Há algo novo que eu quero plantar
nos canteiros da noite lavoura
onde espero depois da demora
colher frutos, talvez algo como amoras
ou vagalumes-filhas da escuridão, as palavras,
minhas palavras vistas por outro lado.
Esperarei no sonho sem agitação
embora com o coração na boca
igual menino que armou arapuca
e espera o passarinho cair.
Tenho uma vontade danada
de ver minhas palavras de lá para cá,
já que sempre, a vida toda,
é só daqui pra lá
que as escrevo.

11 dezembro 2007

Eu vi a torre

Eu vi a torre,
juro que vi.
Lá onde as palavras se formaram,
dos ventos que sopravam cantando
por todas as janelas.
Cada uma com seu som,
cada tribo com seu ar.
Foi a maior confusão,
eu estava lá.
Quando pensei que não,
“não” já não era negar,
era um gemido de dor,
bem conhecido de todos
que vinha do fundo,
bem do fundo
de dobras de tortuosas entranhas.
Estranhas escadas têm essa torre.
Desci e não encontrei o ar,
era outro o que saía,
estrangeiro do que eu queria falar.
Foi quando eu quis dizer
como “bom” e futuro cristão
o que na escuridão me poderia guiar,
a doce palavra amar.
Então ouvi minha mãe cantando
uma carinhosa e suave canção
na minha boca
o bico da letra “a”

09 dezembro 2007

Enfim, como direi?

Fugiram com os últimos raios de sol os nomes
que identificam certos mundos interiores.
Observo alguns deles cujas órbitas
tocam nesse momento a elipse da minha alma
com a esperança de saber a palavra
que define o que experimento.
Mas é uma cena, e não palavra,
que me vem lá desses mundos como resposta,
fotos antigas jogadas umas sobre as outras
tão rapidamente que só a última posta é a que se vê:
uma fortuna informe e escondida, mas que reluz
para além do ar carregado de escuridão e chuva
sobre o capitão no convés do resistente vapor
que com a terceira taça de vinho
brinda ao mar as milhas navegadas
e as outras tantas a navegar.
É tristeza isso que sinto? Não.
É saudade? Não.
Enfim, como direi?
... acho que cheguei atrasado,
o que vejo é uma festa – mais um dia – no seu fim.
Mas amanha bem cedo, gritarei diante do sol:
Esta festa, por nada, eu perderei.

07 dezembro 2007

Lindo pássaro, uma orquídea branca

O mundo todo estava ali no limite do lago
a impor-me um franzir de olhos
para enxergar melhor sob um sol estonteante
um pássaro de pernas aéreas.
Tinha penas brancas, tão brancas,
lindo pássaro, uma orquídea branca
numa haste longa a tornar mais branca
e ainda mais linda a brancura que balançava
devagar, bem devagar...
Ali estava o mundo num único instante,
sem pretérito e sem missão,
em que tudo - em paz - podia acabar.
Na floricultura fiquei parado certo tempo,
segundos talvez,
até que exauriu-se aquele olhar para a orquídea.
Então comprei violetas.

04 dezembro 2007

Ferro queimado

Ei,
aqui,
escute:
não espere um alento.
Ao contrário de versos
vou soldando umas palavras
sem muito jeito,
no que será uma estátua de aço
feita com sucata – talvez
um arauto medieval desengonçado.
Frases sem dobradiças,
sem gonzos, que poderiam ser,
quem sabe, até, poesia.
Contudo, o que busco
nem é a obra acabada
mas um cheiro,
o cheiro de ferro queimado
que sai das palavras
enquanto uso o fole,
a bigorna, a pancada.
Tu sentes o cheiro,
ou tudo já é frio?

02 dezembro 2007

Contentamento suficiente

Que escuridão repentina aquela que veio
descontinuando a outra que se aproximava!
Era uma densa e larga sombra na boca da noite,
enchendo-a de diversa beleza no momento do ângelus
como fumaça escura de incenso sobre o altar
na penumbra da catedral.
Desfez-se logo em aguaceiro forte sobre a cidade,
um sinal que apressado enxerguei,
promessa de torrencial felicidade para o futuro.
Todavia a chuva, ou o céu de onde ela vinha,
ou um anjo imenso e travesso com asas cinzentas,
exigia o que não imaginei:
deixar-me lavar daquele avelhantado ganancioso eu
que me impedia de ouvir
o “dai-nos hoje” de rosários por séculos,
e ser novo e recolher o contentamento suficiente
... de cada dia.