26 janeiro 2013

Dias de Cafarnaum - 2


, seus olhos mesclavam carinho e horror, ambos os sentimentos se justificavam na vida que eu apresentava ali naquele lugar e hora, olhar de desorientado, roupas de um perdido, feridas de um assaltado, ela tinha uns 45 anos, ainda linda como se tivesse uns 20, Maria, disse aquela que se tinha curado da febre, deve ser dos nossos, dos que se levantam da desesperança, o que aconteceu, jovem?, Maria perguntou, aquele olhar era o mesmo, como podia!, espantei-me, o olhar dele estava nela, a mesma fisionomia em traços diferentes, ela bela apesar dos anos, ele rude, agreste, marcado de conhecimentos apesar de jovem, são iguais, pensei, são irmãos? me enxergam do mesmo modo, sabem o que não sei

, ela me olhou sem palavras, a principio, esboçou um sorrisso depois, e perguntou, como você se chama? não ouví nada senão minha própria voz, eu me ouvia dizendo, recobre a confiança inicial, retome a esperança de quando você o ouviu pela primeira vez, devo ter agido de modo estranho, aquela que se levantara da febre disse, Maria, o que podemos fazer por ele? o que seu filho pode fazer por ele? ah, sim, eram mãe e filho, concluí, por isso tinham o mesmo olhar, pensei que eram irmãos, Maria respondeu perguntando, o que podemos fazer? e virou-se para mim e era atenciosa, o que você quer? perguntou docemente, sem saber o que dizer fui falando, não se preocupe, não se preocupe, obrigado, obrigado, e fui saindo, não entendi porque corri dali, a mãe e o filho tinham me visto, e isso parecia bastar naquele momento, eles tinham me visto, eles tinham me visto, corri pelas ruas de Cafarnaum, varei na praia, me acalmei ali escorado em um barco, respirei

, ficar ali escorado naquele barco por um momento aliviava todas as preocupações, tudo parecia bem por uns instantes, mas logo o peso se faria sentir ainda mais lacerante, sabia, felicidade são pequenos descansos em jornada longa e exaustiva, diziam que ele oferecia alívio com suas palavras, ainda não sentira esse alívio, sentira o olhar, e não sabia o que fazer depois dele, o mar rugia ao seu lado como se anunciasse tempestade, talvez chegasse mais tarde, ou à noite, escorava-se naquele barco, que já não era senão madeira velha, vida vivida em muitas lutas, e depois? ficar ali como um barco que vai virando areia?, não entendia de barcos, de mar, entendia de montanhas, de vales, de pequenos veios de água, sentiu saudade de sua vila, veio para Cafarnaum por causa dele? o que esperava dele?, ficou confuso, começou a andar e sentiu, sentiu como num clarão de relâmpago, solidão era aquilo, aquela busca, sozinho nas perguntas, sozinho nas respostas, desejou voltar novamente à casa de Simão, às escondidas

6 comentários:

Anônimo disse...

Bom voltar aqui e provar dessa palavra.
Entrei no conto. Diz de forma velada, o que o torna mais envolvente. Fez-me bem este movimento bonito de inquietação e busca, que só se encontra nas almas maiores.
Sigo aprendendo contigo! Vou ler o próximo "com quem abre uma caixinha de música".
Fraterno abraço!
Charles

Anônimo disse...

Corrigindo: "como quem abre uma caixinha de música".
Charles

Maria Helena disse...


Interessantíssimo e estou adorando seu novo jeito de se misturar,entrar na história,fazer parte dela,de maneira muito pessoal entrando e saindo do texto ,aproximandodo-se do leitor e ,logo depois,fugindo.Eu não sei explicar porque poesia(eu sei)não tem explicação.Sente-se,vive-se.Compliquei tudo,né?Abç.

fjunior disse...

Cá estou a me perguntar se este personagem é um algum décimo-terceiro apóstolo. A estória de um anônimo. Ou história anônima de quem viu a História. Afinal de contas, entre o Gênesis e o Apocalipse estão milhares de outras histórias desconhecidas, por vezes menor do que as que foram registradas; outras talvez até mais belas, entretanto, de alguma forma estão lá representadas neste grande ensaio sobre a vida.

Na maioria das vezes, existe um certo receio de imaginar o que aconteceu nessas lacunas. Pensar outros pontos de vista é quase uma blasfêmia.

Luis Eustáquio Soares disse...

sempre uma nesga de lugar, um clarão utópico, nas perguntas do impossível. como sempre, um texto-fluxo.
a
l

Maria Helena disse...


Amigo,estou com saudades de Cafarnaum.Escreva,por favor.
Abçs.