20 janeiro 2013

Dias de Cafarnaum - 1 ( um conto em fragmentos para o facebook)

, desaparecer a febre, para desaparecer a dor é preciso estender a mão, ou espichar o olhar, e o ouvido de escutar, pois que também há o ouvido-orelha-apenas, falaram da mulher doente, e ele foi lá, ir lá onde está o doente, se fazer proximidade, solidariedade, vencer a própria assustação de adoecer, de morrer, ele foi e favoreceu a vida, estendeu a mão, ergueu a festa, ela serviu coisas muito boas, pão quentinho, uma taça de vinho, uma bela romã, foi no dia de Cafarnaum, quase ao pôr do sol, outras coisas boas acontecem nesse dia

, depois do pôr do sol, talvez, talvez sentar à porta de casa e olhar o movimentos das coisas, o mar lá fora, talvez andar na praia entre uma luz e outra, entre uma saudade e outra e voltar, mas vieram tantos, eu também, cada qual com uma dor, cada dor uma história, ele os tratou, a noite fez-se mais bonita em Cafarnaum, fiquei por ali, entre escondido e admirado, mas ele me viu, não imaginei que ele fosse me ver, mas me viu, me chamou sem palavras, me disse coisas silenciosas, algumas esqueci, forço o coração pra lembrar

, em Cafarnaum, não sei o que eu buscava, não sei se cura, não sei se palavra, talvez coragem, ou poesia, ou nada, mas ele me viu, um qualquer, em Cafarnaum eu era um qualquer, também em outros lugares, tantos quaisquer estavam ali, e ele perguntava a cada um, o que você quer?, pensei no meu querer quando ele me viu à distância, me vi aprendiz, um daqueles, um outro qualquer falou, se queres tens o poder, e a resposta foi, eu quero, dois quereres se fortaleceram, eu vi, me vi aprendiz, os quaisquer também tem poder, o do querer, o que você quer?, mas o poder do querer se atualiza no plural, na junção, no encontro, foi em Cafarnaum, a noite me cobria de fome e cansaços, me vi amparado por pequena lanterna

, pensei em procurar um abrigo, mas naquela hora, o que eu queria era ficar encoberto pela noite, pesou-me a insegurança de estar em terra estranha, um vento muito frio me atingia, e vinha a laterna na mão de alguém, vinha, talvez viesse da casa de Pedro, passaria por mim sem me ver se eu ficasse bem quieto, mas a lanterna balançava cada vez mais próxima e parou alumiando meu rosto, ofuscando meus olhos, era um senhor de uns 70 anos, na hora perdi um medo e ganhei outro, o que queria de mim? o que eu procurava em Cafarnaum? e ele falou entre professoral e austero, entre firme e sabedor das coisas, ele disse, se ouvires sua voz, não endureças o coração, mas o meu coração, pensei, já se vai em durezas e escassez, amanhã bem cedo vou-me embora de Cafarnaum

, se eu não sabia exatamente o que procurava em Cafarnaum, ir embora de Cafarnaum me colocava outro problema, o que fazer da vida, então? levantei-me pra procurar outro canto pra passar a noite mais protegido do frio, as estrelas e qualquer outro brilho de rumo me tinham deixado, o velho somente me avisara pra não endurecer o coração ao ouvir aquela voz, foi quando senti por um instante uma dor de fim de mundo na cabeça, girei e caí, lá na casa de Simão e André a senhora erguida da febre deixou cair o que tinha nas mãos e disse em susto, mestre!, ele saiu, foi até a porta e olhou, olhou, perguntaram-se por olhares o que tinha acontecido, e o silêncio e o soprar frio do vento respondeu-lhes com assovíos, mas eu estava fora do alcance da vista deles, em outra parte da cidade, suportei até onde podia a dor, o sangue escorria por detrás da orelha direita e encharcava-me a roupa, tudo ganhava paz, o frio desapareceu, foi-se o medo, todos os pensamentos cessaram, acabou-se o não-saber-o-que-fazer-da-vida

, acordei com uns meninos me futucando com varas, como se eu fosse um bicho morto, em dúvida se morto de todo, percebi que ficara desacordado, doía-me a cabeça, o sangue me untava em pagajosa liga entre o tecido e a pele, um gosto férreo revelava-me que a boca também fora alvo de pancadas ou simplesmente acolhera o sangue escorrido, oxalá pudesse ouvir sua voz, nada ouvia senão gargalhadas, Cafarnaum, Cafarnaum, pensei, encontro mais dores aqui, para onde irei agora? os meninos riam e riam me futucando com suas varas, talvez eu necessitasse me mover mais, para que eles parassem, mas me encolhia, mas ele, ele me viu, me amparava nisso, comecei a sentir nas costelas a extremidade pontiaguda de suas varas, o sol já se erguera um bom ângulo no céu, o que me tornei? era já passada a hora de buscar outro rumo, o coração nem rígido nem fechado, apenas machucado

, eu desejava ir-me embora de Cafarnaum, levaram-me minhas poucas coisas, fiquei a perambular pelas ruas, desejar não era a plavra, eu precisava ir embora, mas não ia, desci à praia e fiquei observando os pescadores, os que consertavam as redes, outros se tinham ido pro mar, lavei-me o que pude ali, pensei então em ir para a praça em que se contratam trabalhadores, fui, e enquanto ia sem certezas de ir deparei-me com aquela que se tinha erguido da febre por aquele homem, venha cá, ela disse, venha cá, carregava em seus cestos legumes e peixe, você era um dos que estavam à porta de casa, disse enquanto repetia-se em sua mente o pensamento que viera depois da febre, animai-vos uns aos outros, o que lhe aconteceu? ela perguntou, havia um quê de mãe em sua voz, então outra mulher se aproximou, não sei dizer o que senti em seu olhar


7 comentários:

Carla Diacov disse...

gostoso de ler! tão gostoso de ler!

Dauri Batisti disse...

Obrigado Carla. Legal essa sua avaliação. Bom saber que a leitura é "gostosa".

Paula Barros disse...

É bom encontrar os fragmentos do conto aqui, juntos.
Uma escrita boa de ler, que nos leva a reflexões, que nos leva a nós mesmos,e que deixa sempre a vontade de que continue.

fjunior disse...

Sempre que te leio fico pensativo. Cabeça vai longe. Pontos se conectam aqui acolá quase como navegar pela internet. Começa numa ponta aqui e depois já estamos do outro lado do mundo.

Anônimo disse...

Recentemente, deparei com seu blog e tenho lido junto. Eu pensei que eu iria deixar meu primeiro comentário. Eu não sei o que dizer, exceto que eu gostava de ler. Nice blog.

Dauri Batisti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dauri Batisti disse...

Ei anônimo, não precisa se disfarçar de anônimo.