27 abril 2011

Inesperado sol

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Ao fim da música percebeu Estelita que lhe chamava a voz, aquela que vinha se pronunciando com ares de sabedoria, a voz que ela supos fosse a de Deus, mas não era aquela exatamente a de agora que dizia, Estelita, chamando-a quase com exageros de intimidade, havia alguma coisa nela, contudo, igual à voz de Deus, e de familiar também, ao mesmo tempo, era e não era aquela voz, tentava entender, mas se era assim familiar não seria a de Deus, Deus não se mostraria tão simples como um de casa, disse para si mesma, ou pensou, não conseguia distinguir bem, não separava a fala do pensamento, a viagem vinha influindo em alguma coisa em sua cabeça, sentiu vontade de tomar aquele chá em que misturava manjericão com algumas folhinhas de alecrim para reavivar a mente, Deus não seria assim tão comum, ele se manteria a uma distância, pensava numa distância sagrada, uma separação, algo como aquela entre o altar e o primeiro banco da igreja, e olhou, olhou e ao olhar procurando onde se avolumava aquela voz, se deu conta que todas as poltronas estavam ocupadas, não conhecia ninguém, mas sentia como se fossem todos conhecidos de longa data, como se houvessem glândulas e suores semelhantes a definir proximidades e parentescos,  a voz tinha cessado, Estelita olhou o rio e provocou uma conversa com um jovem ao lado que viajava quieto, com um certo ar de brabeza, e querendo ser simpática, ou tomada de maneiras de professora, disse, como é lindo este rio!, ele olhou-a espantado como se dissesse essa mulher está maluca, que rio que nada, senhora, falou revelando sua origem rural, o que vemos são cavalos pastando sobre uns morros que precisam ser roçados, tão cheios de mato estão que os pobres animais tem que andar muito pra comer o suficiente, se vê que tem chovido pouco por estas bandas, Estelita olhou de novo pela janela e viu o rio, lindo, o trem passava bem ao seu lado, lá se ia o rio, ainda mais largo naquele trecho,  tocando uns singelos e verdes sítios lá do outro lado, não sei como esse menino está vendo cavalos, pensou, pobre menino, Estelita, de novo, Estelita, agora ouvia aquele chamado ainda mais próximo, e antes que procurasse de onde vinha seu nome uma mão se estendeu por cima da poltrona,  tocando seu ombro, Estelita virou-se lentamente, sem susto, e viu aquela mão como se fosse uma luva de maciez, uma mão de menino numa voz de homem sobre seu ombro esquerdo, viu com cheiros, cheiro de pele conhecida, tão perto estava do seu rosto, meu Deus, tremia-se toda, meu Deus, repetia, falava sem falar, mas todos ouviam sua expressão meu Deus, e voltavam-se para ela, a mão, a mão, aquela mão, meu Deus, era seu filho, e ficou parada no sobressalto esperando a palavra mãe, e então responderia com toda a alegria e felicidade, meu filho, meu filho, meu filho, mas já não seria necessário dizer palavra alguma, bastaria virar-se e olhar seu rosto.

7 comentários:

Samaryna disse...

Dauri, ler seus textos me remete a fluez como Saramago escrevia. Nesta parte do seu conto, eu sinto uma atmosfera espírita, não sei se estou correta, mas eu senti isso. Deixo o meu afeto.

Dauri Batisti disse...

Samaryna,

só escrevo, crio, sobre beiradas, as franjas da vida, a morte, sem nenhum compromisso com a doutrina espírita - mesmo que eu devote aos que seguem a doutrina espírita o meu respeito -, escrevo sobre a morte como um campo de ficção, onde, por onde, a ficção também pode estender sua palavra de delírio, de tentativas de aproximação desta força, deste mistério chamado VIDA.

Obrigado pelo comentário.

Dauri Batisti disse...

Olha Samaryna,
se fosse pra me agradar eu pediria que você apontasse a fluidez de Antonio lobo Antunes, dos autores lusitanos.

Não consigo ler Saramago se não for com esforço, já Lobo Antunes é um prazer.

Francisco José disse...

-Meu Caro-

Entrei aqui e acolá passando os olhos lá em cima discordo:
O Amor não pesa, a não ser para quem nunca o sentiu na carne, na pele, na alma,enfim,para quem nunca o viveu.
Quanto a Lobo Antunes é um escritor e psiquiatra talvez por isso o prefiras ,mas de escrita totalmente hermética.
Muitos leitores não entendem a escrita de Saramago,mas ele é soberbo!
Leia mais e um dia verás o quanto tenho razão!

Dauri Batisti disse...

Caro Francisco José,

obrigado pela visita.

O amor que pesa é o amor que faz pender, como uma rosa orvalhada, um girassol bem carregado de luz, amor que se consome, que se dobra, que inclui sacrifício até - se for o caso -, e é este mesmo amor que faz subir.

Quanto a Lobo Antunes, ele pode ser hermético para muitos leitores... não para todos. Na verdade ele não me pareceu nada hermético. Pra vc ter uma idéia o primeiro livro dele li num único dia, não conseguia desgrudar dele. Soberbo não sei se ele é.

Quanto a Saramago, esteja certo, não é uma questão de ler mais. E não me afeiçoar aos seus livros não significa não reconhecer que ele seja considerado soberbo por muitos.
Mas, não preciso seguir o cânone da maioria, não é verdade?, afinal, cada leitor tem o próprio.

Um abraço.

Francisco José disse...

Em 1998, Lobo Antunes e seus partidários receberam o mais duro dos golpes: o Nobel de Literatura concedido a Saramago - o primeiro e provavelmente durante muito tempo único entre escritores de língua portuguesa. Na ocasião, um jornalista do The New York Times ligou para Lobo Antunes atrás, naturalmente, de declarações ácidas. Informado do ocorrido, Lobo Antunes silenciou por alguns segundos do outro lado da linha. Depois, fez-se de desentendido e, dizendo que a ligação estava ruim e que mal podia ouvir, desligou.

Nessa época, Saramago já era bastante festejado no Brasil, com romances como Memorial do Convento (1982) sugiro que leias e Ensaio Sobre a Cegueira (1995). Lobo Antunes, ao contrário, era praticamente um desconhecido, com poucos e mal-vendidos livros, entre eles Os Cus de Judas (1979) e Manual dos Inquisidores (1996).

Palavras bonitas, floreadas sobre Amor é fácil de escrever,é o que mais vemos por aí neste mundo virtual e caiu na vala comum.
O amor não pesa de jeito algum, é leve, muito leve.
Uma rosa que pende com orvalho está murcha, morta e um girassol carregado de luz se pende ao sol,seca,morre.Ok, meu caro?

Abs!

Ilaine disse...

Dauri, amigo! Pois, veja! Lembra que outro dia comparei sua escrita com a de Saramago tambem, assim como Samaryna expressou em seu comentário?

Este capítulo é realmente emocionante. Estelita voltou a ver o rio - o rio que tantas vezes foi simbólico em seus escritos, Dauri. Teria ela encontrado o filho: "...mas já não seria necessário dizer palavra alguma, bastaria virar-se e olhar seu rosto."

Abraço, com carinho