17 abril 2011

Inesperado sol

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Por-se naqueles passos pela sala afora, pelo corredor no caminho do quarto onde estava dona Estelita esparramava pelo seu corpo a sensação de procurar com urgência um documento por entre papéis guardados e não encontrar, nâo encontrava o sentimento certo para aquele momento, procurava um que fosse norteador, muitos se aproximavam do coração, comprimiam-lhe as veias, a casa de dona Estelita cheirava a ervas, e a casa para onde mudaria?, tinha estado lá pra pensar, pequena casa na encosta do morro, cheirava a mofo, a poeira e a podres de madeira, cheiros que exalavam na solidão seus reclames, venha alguém, venha alguém, limparia tudo, queria aquela casa, não queria luxo, queria um lugar para viver sua solidão, onde pudesse se recolher depois da faina com peixes, tão pequena a casa, tão grande parecia na infância quando a vida sorria-lhe para além do que se vive, sorria-lhe no que a vida tem apenas naquele período, quando se vive sem se considerar a morte, vive-se a imortalidade, e agora, ao pensar na infância, tinha o sentimento religioso mais genuíno de imortalidade, nas brincadeiras, nas ingenuidades felizes de criança a vida não comporta fim, ela é, como Deus é, era alfazema? não pura, havia outro cheiro, manjericão talvez, ou alecrim, vinha aquela onda macia de cheiros da cozinha, ia pelo corredor, os retratos dependurados em parede branca recebiam-no com bons olhos, perdidos olhares de vozes sussurantes, distantes, e acima das portas, margeando o forro de madeira pintado de branco, um palmo ou mais abaixo, se ia como um caminho de fábulas uma faixa de tons bem claros de azul com uns arabescos em azul marinho e detalhes em tons róseos e verdes, sempre que visitava dona Estelita observava aquele requinte na casa envelhecida, sonhos de outros tempos, formosuras de vidas vividas em outras épocas, queria fazer outros caminhos, da sala pelo corredor para a cozinha, para a área dos fundos, para o quintal largo, fundo, fundo, quase uma chácara, queria andar por ali pelas sombras úmidas e agradáveis, onde o vento revirava-se em movimentos brandos conforme o bater de asas ou o canto de algum passarinho, era o que desejava, ouvir dona Estelita andando pelo quintal, e ao mesmo tempo procurar goiabas, pitangas, araçás, e falar, falar dos seus caminhos, da decisão tomada, da felicidade da nova vida que arriscaria viver, ouvir dela depois de longo silêncio, depois de um ou outro assunto desviante, de frutas oferecidas, toma padre, este araçá, vê, tão grande e cheiroso, quase do tamanho de uma goiaba, experimenta esta pinha, padre, vê aquele jambo branco que o senhor tanto gosta, e então, entre uma fruta e outra, como se ela fosse capaz de dizer coisas sem o uso das palavras, ouvir, ouvir dona Estelita dizer, teus passos serão abençoados em qualquer caminho, segue teu caminho, e o teu caminho, padre, é aquele para onde alumia a laterna que tens no coração, confia.

7 comentários:

Samaryna disse...

Dauri, lendo o teu texto deu para sentir os aromas e os gostos permeando o ar devido a maneira como você escreve. Deixo o meu afeto.

Márcio Ahimsa disse...

conto com cheiro de saudade, alguns modos antigos e o requinte por conta do sabor de frutas da minha infância, o jambo, a goiaba e as palavras quase intactas tratadas com zelo e esmero.

Abraço.

Dauri Batisti disse...

Sim Marcio, o conto se passa em 1967. Obrigado pela visita.

ZEZÉ da música disse...

Olá!
Achei tão interessante, quando ao chegar da igreja e abrir o seu blog deparei-me com estas suas falas que por coincidência falam de uma situação que experimentei ontem, em uma casa também parecendo um pomar com bananeira, mangueira, cajueiro, abacateiro amoreira, goiabeira etc. Para mim foi muito doloroso fazer a mudança da dona desta casa sem ela (minha irmã) mas, gostei muito das recordações da minha infãncia, apesar de não ter vivido numa casa assim. Lembrei-me, e até senti o aroma da alfazema pois, quando minha mãe ganhava nenêm, as parteiras colocavam no quarto um cêsto grande por cima de alguma coisa que não me lembro, talvez uma tigela de barro, queimando a alfazema. Por cima do cêsto colocava as roupinhas do bebê,e aquele cheirinho inundava toda a casa. E não foram poucas vezes! Também gostava de comer o que sobrava do pirão de galinha caipira, delicioso. Muito tocante a entrada deste padre no conto. Parabéns! Gosto muito de ti. Um respeitoso beijo de: Zezé

ZEZÉ da música disse...

Gente, ficou grande demais a minha fala. Quase que também conto um conto. Desculpe Bjs!Zezé

Carla Diacov disse...

eu confio!
ah, que eu confio, viu!!!



beijo!

Maria Helena disse...

Sabor de infância,eis o que senti nesse capítulo, acompanhado da cadência das palavra que se entrelaçam em som harmonioso.
Abç.