30 março 2011

Inesperado sol

65

Lá do outro lado da baía, em ar de sol totalmente desimpedido, sobre o monte verde, branco como um anjo a plainar distraído sobre a terra e o mar, o Convento da Penha, e o olhar do padre que se levantou para lá era um olhar de quem queria estrada de beira de mar, passos em areias macias, cheiros silvestres e maresias, Augusto sentiu vontade de perguntar alguma coisa, não sabia o quê, aqueles desejos eram seus, talvez, o padre vencido pelos sacolejos voltou-se para a paisagem ainda com o livro aberto nas mãos, Augusto tentou descobrir que livro era aquele, fino para ser um livro de orações, manuseado tantas vezes que as tintas da capa marron já há muito haviam se dissolvido de letras em verniz para não ser um livro de reza das horas, e olhando para o outro lado da baía, mas como se no livro encontrasse aquelas palavras, o padre disse, "Senhora, cujo altar fica no promontório, rogai por todos os que estão no navio, os cuja faina tem a ver com peixe" e fechou-o com o dedo indicador marcando a página sob o ar de estranheza do Augusto, a reza era esquisita. Dias ia quieto, calado, pensativo, como se já tivesse dobrado sobre si as conclusões das vivências do último dia mas ainda não soubesse quem ser, o que ser, o que fazer no dia seguinte, o padre que já desistira de ler, já ia ficando tonto, disse, olhou para o exagero de chaves que penduradas da que estava na ignição, exatamente no momento em que Augusto vencendo o silêncio perguntou, o que padre? o que o senhor disse? as chaves pareciam tilintar anúncios, leve e suavemente, campainha de anúncios, nada amigo, repito aqui umas palavras ao ver o Convento da Penha, respondeu o padre ainda olhando as chaves, que exagero amigo!, por que tantas chaves, e tão velhas? riu um riso simpático, discreto, você concorre com São Pedro assim, e se sai vencedor!

9 comentários:

Dauri Batisti disse...

Sim Ilaine, obrigado pelas palavras no capítulo 64 expressando suas percepções sobre o meu "continho", inesperado sol. De fato quero dar ao conto o ar melancólico a que você se referiu. O cenário é um parque industrial abandonado, as vidas se cruzam, e este é o inesperado sol, a vida e os seus fluxos, as vidas e as pessoas se atravessando, nada mais além da vida, e isto decerto tem um ar melancólico. Valeu. legal que tenha percebido. Beijo

Paula Barros disse...

Dauri, vou acompanhando o seu conto, e o prazer é de quem ler também. Longo? Para quem segue vivenciando junto com os personagens, e se emocionando, e instigado pelo mistério, pelas tramas, não percebe ele longo.

abraço!

Samaryna disse...

Dauri, espero que as chaves no final possa dar as personagens uma perspectiva de uma vida melhor. Deixo o meu afeto.

lula eurico disse...

Fico pensando como é bom isso que nos permites... conversar com o texto e contigo. Uma coisa que só a alguns era dado pelos antigos autores, por carta, creio eu.
Esse é um diferencial de nosso tempo.

Abraço fraterno.

Dauri Batisti disse...

"Senhora, cujo altar fica no promontório, rogai por todos os que estão no navio, os cuja faina tem a ver com peixe" T S Eliot, The dry salvages IV, Number 3 of 'Four Quartets'."Lady, whose shrine stands on the promontory,
Pray for all those who are in ships, those
Whose business has to do with fish"

Elcio Tuiribepi disse...

Olá Dauri...pode parecer estranho, mas tenho mania de ler os comentários...e uma frase no seu comentário sobre o coments da Ilaine bateu dento de mim de uma maneira muito boa...

As vidas se cruzam, e este é o inesperado sol, a vida e os seus fluxos, as vidas e as pessoas se atravessando, nada mais além da vida

A vida e as pessoas se atravessando...bonito isso amigo...

Seu conto tem sim um ar de melancolia...uma melancolia bucólica...

Um abraço na alma

MARIA HELENA disse...

Acho incrível a quantidade de elementos que você acrescenta num capítulo de um único parágrafo e não deixo de me maravilhar com a beleza que se encontra em cada palavra e como você amarra seus pensamentos com a linha multicolorida da poesia e isso às vezes me confunde.
Muito lindo o quadro (todos os outros também)apresentado nesse capítulo.
Abçs

Ilaine disse...

Augusto e sua constante ansiedade em descobrir... Augusto, o observador. Dias a ocupar-se com sua existência. E sim, as vidas se cruzam em cada pensamento, Dauri. Os cenários são minuciosamente descritos e a poesia no texto é fabulosa. Beijo

:.tossan® disse...

Boa leititura Dauri e aproveito para aprimorar os sentidos e a cultura. Você me entende. Abraço