17 maio 2010

Inesperado sol
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O ardor do trabalho lhe devolveu por um tempo um sossego, um leve e bom sossego que se confundia com o cansaço. Subira e descera várias vezes aquela escada com o balde d'água, arranjara vassoura. A sala agora estava limpa, bem limpa, havia ainda coisas a fazer, mas estava limpa. Os vidros da janela ainda esperariam com suas nuvens de poeira. Ajeitou uma cadeira adiante da mesa e outra atrás, quis sentar, titubeou entre um lado e outro, escolheu sentar adiante, como se fosse um cliente. Sentado, através da poeira nos vidros da janela, viu um pedaço de mundo que não lhe dizia nada, que lhe era muito semelhante para dizer algo que ele já não o soubesse, o lado de fora, velhos barcos, um ancoradouro vazio, pássaros voando sobre eles, nuvens se sobrepondo ao brilho do céu que se abrira pela manhã. O que ele sabia era o que ele tinha feito, soterrado estava. Levantou-se e foi para janela, abriu-a, voltou para a mesma cadeira, procurou a posição que ocupava antes de abrir a janela, inquietou-se pelo desconforto de não ter mais exatamente o mesmo ângulo de visão.

Olhou a mesa limpa, os objetos dispostos sobre a superfície marcada por pequenos vincos e manchas, palavras sobre palavras, números sobre números, somas incompletas, rabiscos e tensões, nada viu. Recolocou-os em posições diferentes, nada viu. Incomodava-o, de repente, a hora do dia, agoniava-se com o leve vento com cheiro de mar, o frio daquela espaçosa sala, queria que fosse nove horas da manhã, não era, olhou o relógio e passou as duas mãos sincronizadas sobre o cabelo, indo da testa para a nuca, entrelaçando-as ali, abriu os cotovelos ao modo de formar pequenas asas, a cabeça se jogou para trás e os olhos caíram no teto. Os fatos retornaram, as imagens se precipitaram de enxurrada naquela sala, apertou os olhos contraindo todo o rosto em expressão de angustia mais que dor, dor mais que medo, medo mais que idéias do que fazer.

6 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Apertar os olhos para ver algo que não está ali...Detalhes de um momento que se tem sozinho, limpeza que se faz sozinho na casa quando se está sozinho.
Há um cansaço que não é da lida.
Um beijo.Tô viciada no 'inesperado sol', inesperada luz, inesperada Vida!
Um beijo

Jacinta Dantas disse...

Tornar o espaço limpo, arejar os pensamentos e desejar voar por novos lugares, desconhecidos lugares: Uma vontade de recomeço...de nova Vida.

Beijo

Luis Eustáquio Soares disse...

Sisífica narrativa, dauri, em busca do perdido tempo a-vir, num passado-futuro tal que o presente constitui o embate dos bons combates, sob o inesperado sol.
Muito bom, bonito, retornar aqui.
saudações,
luis de la mancha

Euza disse...

Vim lá de baixo. Lá de onde o rio dá lugar ao sol. Fiquei me lembrando das caminhadas que fiz nos seus versos e agora descubro que a tessitura do seu prosear é tão ou mais bela que lá! Vai ser bom te acompanhar!
Beijo

eder ribeiro disse...

O que me fascina nos teus textos é a quantidade de imagem contida no texto. Abçs.

Ilaine disse...

Lindo! Eu ainda estou nesta sala, acompanhando os passos do personagem. A sala limpa, bem limpa... As palavras me inspiram e eu imagino tudo. E isto é muito fácil em seus textos, Dauri.

Beijo