02 abril 2010

O último porto do rio
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Antes de chegarmos ao Último Porto do Rio ancoramos num pequeno cais conhecido como Cais da Curva dos Pretos. Era um pequeno ancoradouro, um muro de pedras construído na margem esquerda de quem sobe. De frente para o cais um largo que ia dar num sobrado com três portas no andar de baixo onde funcionava um comércio, ao lado e na mesma linha mais duas casas e um armazém já bem velho. Do lado direito de quem olha do cais, numa elevação, uma capela. As paredes, brancas num dia distante, se tingiam de estranhas figuras cinzas que escorriam pelas suas faces de mulher abandonada de amores.

Da capela, enquanto nossa barcaça encostava no ancoradouro, saiu um enterro composto de um pequeno número de pessoas. Uma tristeza só, não somente pelo luto daqueles que seguiam com o caixão, mas pela composição da capela, do vilarejo, do sol escaldante com o enterro. Meu marido queria fazer ali uma parada rápida, esticar as pernas, ir à venda, estas coisas. Eu decidí uma demora maior. Logo quis ir à capela, agora vazia e triste. Subi as escadas de pedra e do alto, antes de entrar, voltei meu olhar para o cais. Ó florista, o olhar é pássaro faminto, de azas disformes, pássaro que busca incessante o alimento de ver, mas ao ver o que sacia, de maior fome se faz outro revoo.

Do alto olhei o rio e a curva, o pequeno cais, as barcaças, o enterro que se ia do outro lado subindo o morro do cemitério, e aquele lugar me iluminou os olhos de uma luz fria, extinguidora de consolos. Tu sabes como é isto? Explico, é quando todos os teus sentidos de viver, os que construíste de pedaços dos teus dias, se desmoranam todos, e tudo fica vazio. Estremeceu-me por dentro um relâmpago de entendimento do que dizia aquele sujeito nas cartas que me chegavam às mãos. Sim, a desolação daquela cena, o que era externo e próximo, o fora que casava com meus interiores, o sol escaldante calando a todos e a tudo esvaziava-me do que me criava sentidos de viver, e ainda, enquanto escrevo, me recupero deste esvaziamento. O lugarejo tornou-se uma ilha de silêncios e os rumores que se ouviam eram sons que vinham de fora, um fora longe, um grito distante de uma mãe chamando um filho, um canto de pássaro quase inaudível, um mugido de vaca, um latido de cão. Fiquei ali à porta da igreja olhando aquele mundo. A demora foi tanta que o marido veio ao meu encontro. Com ele entrei na capela.

10 comentários:

eder ribeiro disse...

Dauri te ler é remeter neste mundo cheio de riqueza que vc tão bem escrever, é muito rico este teu mundo imaginário. Abçs.

Branca disse...

Dauri,
QUE NESTA PÁSCOA NOSSA FÉ SEJA REVIGORADA PELA CERTEZA DE QUE CRISTO RESSUSCITOU E ESTÁ ENTRE NÓS!

Bjo e desejo de uma Feliz e harmoniosa Páscoa junto aos seus!

Márcio Ahimsa disse...

essa coisa do olhar ser pássaro, amigo, é poesia pura, como diz tu, quando se sacia do voo que buscas de imagens, alça voo para outras paisagens...

Abraços, os contos são de uma paisagen única.

Paula Barros disse...

Sinto como se entedesse esse "olhar é pássaro faminto"...e sempre querer mais...

Dauri, gosto dos seus textos, porque sempre ao ler e reler encontro passagens que me dizem algo, e se passam dias quando releio já sinto diferente.

beijo

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, poeta-escritor-visinário, dauri, que nessa roça-mundo, ou nesse mundo-roça, cordeiros de deus que tirais os pecados do mundo,
sejamos igualmente livres, visionários
sem pecados
ingênuos
prontos pra pecar
coletivamente
meuabraço,
luis de la mancha.

lula eurico disse...

Movem-se, os olhos que descrevem a cena, como numa película em slow motion... o narrador, guia-quase-oculto, nos conduz pela página branca. Ouviremos os rumores e sentiremos o silêncio-ilha. Cães ladram, vacas mugem, pássaros cantam baixinho... dentro de nós o grito da mãe arquetípica, que nos chama. Enfim, chegamos à entrada da capela...

Estamos num rizoma invisível, estamos n'EssaPalavra, teia sedutora e volátil. Aqui, se "alargam os limites do visível" como diria Osman Lins. Aqui não cabemos em nós, nos nós, diria Deleuze...rsrsrs

Abraço de irmão. Boa Páscoa!

Unknown disse...

prosa-mundo, de afirmação da vida no mundo, dauri, a sua, motivo pelo qual te convido a ler um deleuzeano poema.
meuabraço,
luisdelamancha

Unknown disse...

prosa-mundo, de afirmação da vida no mundo, dauri, a sua, motivo pelo qual te convido a ler um deleuzeano poema.
meuabraço,
luisdelamancha

Luciana Horta disse...

Deixe o que não mais te serve para trás
Abra espaço no seu coração e na sua alma
Enterre seus sentimentos menos nobres e mais pobres
E, mesmo que não existam julgamentos e condenações alheios
Morra!

Renasça em harmonia e paz
(Re)começe
Fertilizando alegria e luz
Semeando a renovação e a libertação
Viva!

E, sempre que for necessário
Mude, transforme
Não com a pretensão de a todos agradar
Mas com a intenção de amar a você mesmo

Feliz Páscoa!

Ilaine disse...

Dauri, é um romance. E eu estou presa por aqui...

Abraço