27 março 2010

O último porto do rio
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O que tens a dizer, ó florista, do amor? Podes dizer-me da vida, a vida, um balanço de árvore que se avista de uma janela de um segundo pavimento em tarde madorrenta. Escrevo-te ao amanhecer, mas parece-me tarde. As cortinas em leves movimentos de um resto de vento que traz o cheiro das folhas verdes fazem pelo tecido fino o laço entre um acontecimento e outro, a ruptura, o limite. Escrevo-te do Rio de Janeiro, pois minha passagem apressada de despedida pela tua oficina não me permitiu as palavras que eu te prometi sobre a ida até o Último Porto do Rio. Ainda tenho dificuldades de dizer o que escrevo, pois nem sei se importa dizer, se haverá em meus mares, ou nos seus, nas aves, andorinhas e gaivotas que me cercam, nos barcos que me atravessam, um novo movimento de rumo. Mas, sigamos. Por mais que a vida seja assim, assim vamos, vivendo-a, o adeus se dando na maior parte do tempo oculto na ilusão e no estranho prazer de viver, anseio de continuar a existir, apesar.
Lembro-me agora, enquanto me deixo ser o que são estas palavras que escrevo, tua singela e discreta presença no cais. Do vapor te avistei e o teu gesto, de mãos vazias de qualquer flor, acenava o mistério de um sonho, isto que une e separa os dias uns dos outros, o que separa o sol da montanha no momento que os dois se tocam, o que leva pelas palavras o poeta para longe dos mundos que ele alcançou. Doi-me agora mais o adeus, vejo a cidade pequena encostada no morro, um presépio que não se desmontou, em fevereiro, tudo se indo para o universo infinito, a claridade da manhã impedindo o disfarce das nuvens nos olhos, ciao, vidiamoci presto, queria dizer às pequenas coisas vividas ali naquela pequena capital de província, o penedo vistoso, ainda mais calado em sua posição de guardião da ilha, tu voltando para a oficina, para outras flores. Os imigrantes logo chegarão, viverão outros olhares sobre a mesma ilha, como primeiro passo de uma vida completamente nova, motivadora de todos os esforços, fonte de força para suportar os sacrifícios a que ela, a vida nova, se submete e sobre os quais se levanta. Fico a imaginar, disse para o marido, o que sentirão os imigrantes ao entrarem na baia em direção ao porto. Ele não responde, silencioso também, distante, somente abraça-me. Penso-me como um deles, um imigrante, tudo para trás, tudo pela frente. Mas não sou, invejo-os.
Começo a dizer-te. Levantei-me com o sol, mas grossas nuvens de chuva se avizinham cinzas da janela que abri. Começo a dizer-te, já com os olhos distantes de tuas habilidosas mãos, o que foi minha viagem pelo Santa Maria. Quisera agora ver as tuas mãos juntando amarelos em pétalas grandes de girassóis a modificar para melhor o que digo. Forço a memória para ver um girassol bem amarelo, luminoso, em tuas mãos, não me recordo. Fizeste girassóis? eu nunca presenciei a feitura de um. Surgem-me as hortências, aceito-as. O arranjo das palavras agora se vai pelo azul plácido e pela manhã que já se recolhe em respingos de chuva . Assim como as pelejas de tuas mãos a vida segue por aqui. Logo perderemos o contato, as cartas cessarão, talvez mesmo esta primeira seja a última. Agora relato a viagem pelo Santa Maria, desejo relatar. Ensaio o que vou dizer, usino-me por dentro em procuras de sentidos, faço alguns, incipientes.

Cuida de ti, ó florista, sinto vontade de dizer-te, cuida de ti nas flores que confeccionas, mas não digo, também não mudo de folha de papel, não rasuro o que se tornou letra. Mas, sigamos. Conto-te um capítulo, apenas um, e único. Do mais importa as habilidades que tens de transformar o vazio dos arames, tecidos e papéis em um sentido, bom quem sabe, frágil sempre, de seguir, todavia. As calêndulas, lembras as calêndulas?, pois bem, o capítulo que te relato é somente o capítulo das calêndulas.

6 comentários:

lula eurico disse...

Este capítulo evoca em mim, palavras de outro poeta, o recifense Carlos Pena Filho, em seu poema A Palavra:

(...)"Aí, reúno a argúcia dos meus dedos
E a precisão astuta dos meus olhos
E fabrico estas rosas de alumínio
Que, por serem metal, negam-se flores
Mas, por não serem rosas, são mais belas
Por conta do artifício que as inventa."(...)

Posto que o escritor, tal qual a florista, inventa, com os artifícios da língua, as imagens do texto... as emoções do texto, as idéias do texto.
É dos vazios entre os arames da língua que ele, o florista,´"busca dar sentido", em prosa ou poesia, tanto faz, ao não-dito.
Leio-te, nessa hora matinal, do domingo, chamado de Ramos, reinventando, (posto que o leitor reinventa), os sentidos poéticos, aos quais, com "as habilidades que tens de transformar o vazio dos arames", nos conduzes nessa belíssima novela.
Isso só nos faz bem! A arte nos indica, aos sentidos, um sentido para a existência...

Abraço fraterno e cheio de sincera admiração...

Paula Barros disse...

Dauri, todo dia leio, no outro dia releio...em algum momento lembro de trechos...hoje por algum motivo meus olhos marejaram...

Me emociona ler que sempre temos palavras a dizer, e não dizemos...me emociona pensar que muitas vezes podemos confeccionar momentos de vida...

beijo

Elcio Tuiribepi disse...

OLá Dauri...leio seu texto em pedaços e os transporto para o meu cotidiano...
"Escrevo-te ao amanhecer, mas parece-me tarde. As cortinas em leves movimentos de um resto de vento que traz o cheiro das folhas verdes fazem pelo tecido fino o laço entre um acontecimento e outro, a ruptura, o limite"
este pedaço parece uma despedida chegando...uma nova velha vida voltando...aff...

"O arranjo das palavras agora se vai pelo azul plácido e pela manhã que já se recolhe em respingos de chuva . Assim como as pelejas de tuas mãos a vida segue por aqui. Logo perderemos o contato, as cartas cessarão, talvez mesmo esta primeira seja a última"
Pronto, aqui se concretiza o que senti...
Um abraço na alma...
Inventei uma blogagem coletiva, uma brincadeira, mas sei que no Porto do Rio as palavras continuam atracando...
Se quiser participar...será um prazer, mas fique a vontade...
Um abraço na alma...

Paula Barros disse...

Dauri,

Voltei a rotina. Agora a viagem é pelas palavras que emocionam, palavras que tem cheiro, cores e formas.

Estou no aguardo dos próximos capítulos, para continuar viajando.

um abraço!

Elcio Tuiribepi disse...

Olá Dauri...que tua viagem continue, gostei da sua vida adubada com humor, pois é exatamente assim que penso...
Um abraço na alma...
A Páscoa é a ressurreição das nossas almas. É abandonar tudo o que é velho e antigo e olhar pra frente com coragem; é nos dedicarmos à vida como quem sorve o sumo de um fruto saboroso. Domingo é dia de renascer.

Feliz Páscoa pra você e toda a sua família!

Ilaine disse...

"Quisera agora ver as tuas mãos juntando amarelos em pétalas grandes de girassóis a modificar para melhor o que digo. Forço a memória para ver um girassol bem amarelo, luminoso, em tuas mãos, não me recordo. Fizeste girassóis?"

Dauri, tudo o que falei dos outros capítulos, de certa forma, se repete também aqui. O teu texto é muito bom, costurado com a beleza dos pequenos detalhes que cuidas de forma imensa. Ah, e o sentimento... As palavras sugerem tantas imagens, e eu vou seguindo este mundo.

Beijo