09 março 2010

O último porto do rio
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Ou morro, eu sei, ou sou enlouquecido ou me ensurdeço assim como agora, retirando do mundo seus ruídos e os rumores encachoeirados de dentro de mim. Vejo tudo por uns momentos sem sentir, depois voltam as insossas agonias, mas na surdez imprevisível alevanto-me como folha seca em ares de ingenuidade e uma boba alegria, uma fria alegria de viver. Nessas horas a vontade que vem é a vontade de andar, andar, andar todas as estradas possíveis. O trágico é chegar, e chegar quando se quer andar, o acaso e o incontrolável, montanhas impassíveis sobrepondo-se às planícies que vivo. Chegamos à casa. Maria Júlia já fora informada da minha chegada e me esperava, bem vestida, cabelos arrumados e uma força de sorriso nos olhos brilhantes e abatidos. Talvez agora ela também apenas me enxergue naquela espécie de silêncio, surdez, mundo calado, a dor renegada e aceita. Nos falamos sem nos ouvir, falamos um para o outro coisas bem diferentes do que dizemos em voz alta, se falamos Estou bem e você?, falamos no duplo daquela frase, pelas costas das palavras, pela traíção delas, nos entendendo, Não estou bem e sei que você também não está. Se falamos, Nós vamos descer o rio logo logo, vamos juntos, como combinado, realizar o seu desejo, a força da dor que carregamos em nossos destinos diz O tempo passou como um rio, nossa barcaça está no cais incapaz de navegar. Ficamos a olhar um para o outro, capazes de conversas que ninguém ouvia, um condoendo-se do outro, até que nossos olhos mornos e tristes caem sobre uma pequena menina assustada, olhos arregalados, que também parecia participar da conversa silenciosa. Ela olha para Maria Júlia olhares de mil palavras, para mim olhares de mais mil, além das perguntas que lhe ocorrem sobre o estranho homem, eu, ao lado da cama da mãe. Na claridade suave do quarto seus inocentes e já marcados olhos me surpreendem e me machucam uma dor que não dói. Ela fica parada entre a sala e o quarto, o corpo torcido pela timidez mais para a sala, encostado no portal, o olhar totalmente esticado para o quarto, para Maria Júlia, aquele mesmo olhar de anzol, uns quatro anos. Os três falamos de amor, amor sem sentido, amor trágico, amor em linhas de uma mesma rede, peixes presos, amor que se debate ao ser puxado para fora do rio.

14 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Aqui a estranheza olhando comprido. A inquietude agita o pensamento e as pernas, a ansiedade as vezes emudece. Este capítulo foi um silêncio eloquente.
Dizer que é um roteiro, parece um eufemismo mas é tão pleno em imagens, fotografia que poderia ser um filme, uma novela, um livro interativo. Muito bom.
Interessante o encontro desencontrado faz parecer dois estrangeiros. Isto ocorre.

P.S.
Eu já te disse como me perco sem tempo admirando esta fotografia do Gabriel Lordêllo, né?
Vitória É linda!
um beijo

Maria Helena disse...

O AMOR LATENTE,DISFARÇADO POR INCERTEZAS,MEDOS E FANTASIAS JÁ ENTROU EM AOGNIA...PENA...
VOCÊ É GRANDE!TANTO EM VERSO COMO EM PROSA.SINTO FALTA QUANDO NÃO TEM NADA SEU(NOVO)PARA LER.GOSTO DA SUA POESIA.
ABRAÇO

Paula Barros disse...

Dauri,

"..amor que se debate ao ser puxado para fora do rio.."

Me fez lembrar que muitas vezes se fala de amor, se quer amar, mas quando o amor aparece nos debatemos nos medos, nas inseguranças, nas dores do passado.

Alguns textos dessa série me passam mais inquietação, esse foi um deles.

um beijo!

Messias Fernandes disse...

.
.
o legal de vir aqui é que apesar de "o último porto do rio" ser um conto único,

cada post pode ser lido separadamente.

parabéns por "essas palavras"!

grande abraço Dauri.

Elcio Tuiribepi disse...

Olá Dauri...não tem jeito...mas uma parte de seu conto falou comigo...assim diretamente...olho no olho, alma na alma...rs
Foi esse pedaço...
"Se não leio em mim os mapas dos entendimentos das sinas, mapas encobertos pela neblina do frio destino que como sombra me acompanha, inimigo solidário, algo me concede, na ausência dos ruídos e das vozes, a percepção do rosto"
Posso usar se quiser com os devidos créditos?
Quanto as plaquinhas lá...elas apenas complementaram a sensação boa que senti na simplicidade do lugar...valeu pelas palavras ´lá no verseiro...
Um abraço na alma...bom fim de semana

J Araújo disse...

Grande contista vc. Parabéns!!

Abraço

lula eurico disse...

Inquietação: eis a palavra, tomada de empréstimo à Paulinha Barros. Eu sei a raiz dessa coisa, dessa sensação estranha, desse estranhamento... é a densidade do texto, o efeito poético concentrado em cada parágrafo. Como isso se chega a isso?
Não há fórmula. Mas a emoção tem de se contrair e passar pelo tubo estreito de um eu-poético, tem que ser espremida na moenda de um artista. É isso, emoção, arte e estranhamento. Essa é a causa da nossa inquietação diante do texto.
Ou uma das causas, né isso rsrsrs
Sei lá...

:.tossan® disse...

É verdade estes belos textos devem ser lidos separadamente, são módulos de emoções que se completam. Abraço

Dois Rios disse...

"amor sem sentido, amor trágico, amor em linhas de uma mesma rede, peixes presos..."

Isso me passou a idéia de um amor que sangra todos os dias dias mas sem o qual não se vive.

"Capítulo" conciso e ao mesmo templo amplo de significados.

Como você escreve bem, Dauri! Seus textos são verdadeiras imagens emolduradas.

Beijos de admiração,
Inês

Soraia Yumi disse...

É tão profundo!
Sentimento de alguém que pde temer a felicidade que o amor traz.

Estou de visita à alguns blogs e muito bacana encontrar o seu!

Abraços :)

[ rod ] ® disse...

Cara você é mestre para poucos. Cada vez que te leio tenho a certeza de que conseguir a proeza dos seus relatos é para mim uma difícil tarefa, mas saber que em algum momento sou clássico, aos seus olhos, é a certeza de que um pouco fiz para merecer e sinto-me lisonjeado.

Obrigado pelo comentário e tens razão.r..s.s preciso desapegar-me deste vulto chamado dogMas... e render-me ao novo!

Veja se já estou conseguindo. r.s..ss

Um grande abs meu caro amigo.




Hoje estou tanto no dogMas quanto na Confraria!

http://confrariadostrouxas.blogspot.com/2010/03/dama.html

mundo azul disse...

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Incrível! Vou lendo as suas frases, as suas palavras e me perco nesse redemoinho de emoções contraditórias, de sorrisos ocultos nos olhos tristes, de gritos morrendo na mudez do coração... Que não quer ser feliz?


Obrigada!


Beijos de luz e o meu especial carinho...

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Sueli Maia (Mai) disse...

Em muitos momentos conseguiste a proeza de içar-me do fundo de meus rios. Agora digo-te há dez dias espero...Pesquemos palavras, @migo, essas palavras que abundam em mar de emoções ou no fluir das águas.
Um beijo

esperemos...

Ilaine disse...

Bom dia, escritor. Enquanto aqui o dia já vai seguindo seu rumo, aí... onde estás, ainda está cedinho, cedinho. O meu dia está ilustrado com as imagens de teus textos, vou levá-los pelas horas que se seguem. Como são bons, minha nossa. Este, traz um encontro - de dois- de três- "entre mil olhares..."

Abraço