06 março 2010

O último porto do rio
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Chegamos ao cais dos pretos e logo seguimos a pé por uns quatro quilômetros, caminhamos sem muita conversa, ou quase nehuma, a marcha acelerada, o ar carregando a densidade do sol forte sobre a terra molhada, as plantas respirando e exalando seus cheiros. O agreste e o doce de um pequeno canavial de um lado, de um cafesal do outro, me empurram para onde não sei, nenhuma imagem ou sentimento se abre em clareiras na memória, somente uma sensação, uma sensação de que um tempo bom que sustentou minha vida, um dia, muitos dias, resvala agora na minha pele, no veio do suor que escorre sob a camisa, mas não lhe dou crédito. Ao mesmo tempo em que o dia aberto me alivia, me torna leve, do mesmo modo, um segundo depois, me condensa um tijolo áspero que não se encaixa em nenhum dos meus vãos. Se contente vou, tão perto de me encontrar com Maria Júlia, e este é o contentamento que me faz feliz, ligeiramente feliz, vou também incerto do que farei depois, como serão os dias seguintes, que vida vou levar adiante. A estrada agora forma uma pequena reta de solo arenoso e branco, lavado, a areia brilha, a mata ao lado, um trecho curto de mata margeia o lado esquerdo, ali dentro da mata corre um córrego, um veio, águas limpinhas seguindo por baixo das raízes, muitas folhas apodrecendo em seu miúdo leito, desejo entrar nas mata para encontrar o arroio, abrir as folhas e enxergar um pequeno poço, olhar a água limpa, brilhante, correndo vagarosa. José Bento segue ao meu lado, nem imagina a intenção que tenho de entrar na mata, encontrar a água, molhar o rosto, batizar-me de vontades novas. O trecho de mata acaba, do lado direito me segue uma cerca de arame farpado enferrujado, estacas de braúna inclinadas, inconsolável pastagem tomada pelo mato, nenhum cavalo a pastar por ali, nenhuma vaca, uma vaca e um bezerro fariam ali a paisagem do paraíso, um consolo para os olhos, e o sol, o sol sorridente sobre as guachumbas força-as ao excremento do odor de cansaço, de fastio. Cheiro minhas mãos e os braços, não, não cheiro a guachumba não. Surge uma pequena casa abandonada, à direita, sobre pequena colina, olhando para a estrada. Quem ali viveu? Uma jaqueira no descampado, outra ali, um sonho de frutas abandonado, uma mangueira e algumas laranjeiras secas, estendem-se em silêncios, doces que não vingaram, brincadeiras e risos varridos, não sonhei com meus pais, nunca sonho com eles, a jaqueira à noite me aparece, apenas ela, e sua sombra da tarde. As janelas da casa desamparada são de uma banda só, abertas, caídas de uma de suas dobradiças, mas ainda penduradas, abertas, a esperar um olhar de dentro, dos seus cômodos vazios para o mundo, talvez há morcegos morando ali, mas sou eu que passo e olho, de fora, suas sombras de dor ali por dentro. As vozes dos pequenos pássaros se mostram nos arredores da casa, falam-me de seus nascimentos e suas mortes, como morre um passarinho?, conversam suas insanidades destituídas de dor e de amor e me dizem, morremos sem dor, morremos sem peso, morremos assim, como um passarinho, e riem, pássaros riem e choram, mas não sofrem. Tiro o chapéu, desliso a mão úmida da testa até à nuca, um meu Deus disfarçado, e recoloco o chapéu.

5 comentários:

Maria Helena disse...

Lendo você, abri um vâo no córrego da vida,afastei as folhas apodrecidas de lembranças ruins e vi nas águas cristalinas que surgiram um passarinho sorrindo;somente sorrindo.
Você lembra-me ALUIZIO de AZEVEDO:lirismo e poesia que nos levam a lugares há muito esquecidos.
Como sempre,PARABÉNS.
Abraço Leu meu e-mail?

MARTHA THORMAN VON MADERS disse...

Nossa, forte o que você escreve de uma maneira tão bela!
Uma boa semana para você.

mai disse...

Aqui você foi perfeccionista. Até na caminhada, a respiração (pontuação) demonstravam o cansaço de quem apenas navegava e, agora, em terra caminha e pensa e lembra e sente saudades.
Uma viagem, Dauri e te agradeço a carona.

Um beijo,

Mai

Ilaine disse...

"Uma jaqueira no descampado, outra ali, um sonho de frutas abandonado, uma mangueira e algumas laranjeiras secas, estendem-se em silêncios, doces que não vingaram, brincadeiras e risos varridos..."

A caminhada é pontilhada de imagens... em descrição meticulosa. Um belo texto, Dauri!

Vivian disse...

...Todas as Vidas

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé
do borralho,
olhando para o fogo.

Benze quebranto.
Bota feitiço
Ogum. Orixá.

Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo.

Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso
d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa,
pedra de anil.
Sua coroa verde
de São-caetano.
Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.

Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga
toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim
a mulher do povo
Bem proletária
Bem linguaruda,
desabusada,
sem preconceitos,
de casca-grossa,
de chinelinha,
e filharada.

Vive dentro de mim
a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos,
Seus vinte netos.

Vive dentro de mim
a mulher da vida.
Minha irmãzinha
tão desprezada,
tão murmurada
Fingindo ser alegre
seu triste fado.

Todas as vidas
dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera
das obscuras!

Cora Coralina

...eu me perco em seus escritos!

smackssssssssss