14 outubro 2008

As palavras podem pegar

Ando sofrendo de um sentimento de porto, sei lá,
preciso falar, danei a ver as pedras escuras do cais
brilhando, brilhando como se fossem estrelas.
Acho que são portais para a felicidade. Penso
muito nisto quando estou em alto mar.
Você acredita? Mas é segredo, por favor.
Falei para alguns, ninguém valoriza essas visões.
Você me entende? Não posso falar, mas só de pensar...
as palavras se levantam em alvoroço, doidas;
querem se organizar em versos sobre o porto
e falar das pedras que brilham no cais.

O fogo escasseia por dentro nas veias,
uma chuva de outubro mais fria do que se espera
se soma ao sal, ao cansaço, ao suor.
No desalento também sinto desejo de ser pedra,
Você já sentiu isto? Vez ou outra
quando descarrego os peixes do barco
um zombeteiro, bêbado, falando das horas que me sufocam,
do trabalho que me mata, e das pedras que brilham,
chama-me de aluado, doido, corno. Não respondo nada.
As palavras que quero dizer não posso,
para outras então é melhor calar. Você concorda?
Mas às vezes o que ele diz me dói. Caio em mim
e chego a ouvir o baque surdo da dor,
por dentro, sabe como? Peixes, peixes, dor, gelo
queimando os dedos, peso quebrando o orgulho,
você já sentiu essa queimação?

Até o mar quando tem manchas de óleo
bate e amordaça as pedras do cais
para que elas não falem o que sei, o que vejo.
Elas brilham, volto a dizer, não sei se confio em você
ou se necessito falar. Falo. Deus é verbo.
É febre o que tenho? Sinto dor no corpo. Você é doutor?
Isto vai passar? Voltarei a ver as pedras só como pedras?
Ver o cio das coisas, ver Janelas em pedras,
de que me adianta? Mas eu sei, acredito,
o que escapa até da música as palavras podem pegar.
Se você também acreditar falaremos juntos.

6 comentários:

Anônimo disse...

lendo isso fico saudosista. penso em floripa, minha cidade natal com suas lindas praias e reflexos de estrelas. ah... muito bom, cara.

Joice Worm disse...

...falar das pedras que brilham no cais... Que bonito Dauri!
Não acredito que quem ver este porto e este brilho, possa estar triste. Acho que depende da forma que se dá a mirada. Se o brilho é do reflexo de um chão molhado que reflete os raios do sol ou se são luzes da noite de uma lampada ou o da lua... São sim, qualquer forma de brilho: "portais para a felicidade".
Queria estar presente. Aqui não há cais, nem porto, nem barcos e os peixes chegam congelado. Quer mesmo falar de melancolia?

Dauri Batisti disse...

Joice,

Falar de melancolia? não... e sim.

Num primeiro nível apresento o personagem, um pescador, descarregando os peixes no cais.
Enquanto faz isso ele pensa, na vida dura, nos sonhos.

Num segundo nível falo da nossa - de quem gosta de escrever - mania de ver coisas para além das coisas. Falamos de poesia.

Num outro nivel falo que certos sentimentos e certas profundidades da alma só podem ser expressas pela palavra. O que escapa das outras artes, a palavra pega.

Por ai... Beijo.

Vivian disse...

...o poder de pensar, 'filosofar' enquanto despertos, é mágico.

e com ele podemos subir aos 'céus'
como tbm descer ao mais profundo
da terra.

a escolha é nossa...

e você descreve tão bem
estes limites...

adoro te ler...

bjus

Jacinta Dantas disse...

"As palavras podem pegar" - bonito isso - mais bonito ainda é saber que pela palavra também se cura as dores da alma.
Beijo

Anônimo disse...

Oi, Dauri. Tenho nostalgia de porto. Moro longe de ancoradouros e cais. Mas, lendo você, o porto me veio, inteiro, com as pedras do cais, trazidas pelas palavras, que aqui aportaram como um veículo alado e falante.
Você valoriza as palavras, por essa razão. Elas "criam" realidades. E transportam a sua "realidade" prá fora de você. E você nos presenteia com ela.
Somos cúmplices nessa criação: você que cria e doa e nós que recebemos.
Hoje estamos todos no porto, vendo as pedras, doidos como o pescador: tudo por causa do seu Verbo esparramado...
Beleza, Dauri!
Beijos.
Dora