31 janeiro 2008

Terra sem céu
(chuvas de janeiro)

Quando o tempo fecha,
soterra o céu
com sonhos de chão,
os meus, inclusive.

Ah, como é bom
a terra sem céu.
O mundo fica menor,
uma cozinha, de mãe.

Quer coisa melhor?
Contudo o que mais gosto
é ficar livre do desgosto
de me enxergar diante

desse meu pai desmedido,
expansivo, poderoso, explosivo
sempre de fogo, universo
sem fim, sem paz.

28 janeiro 2008

Eu me comprei de novo

Eu me comprei de novo
por uma poça de água
limpa e transparente
numa cavidade de pedra
no deserto.
Eu me tinha vendido
por uma gota de orvalho.

26 janeiro 2008

Ao largo! Ao largo!


Marujos e ratos sorriam.
Águas e estrelas sorriam.
Todos sorriam com ele.
Foi a pique na tormenta,
a bombordo do seu Poësis,
a imensa nau Absinthiu
que lhe vinha no encalço desde Macau.
Quando o vento soprou a luz do nascente,
soprou também a clareza nos pensamentos.
Era prisioneiro - o absinto no fundo da boca -
arrastado por correntes em terra seca.
Um ímpeto todavia dentro dele
exigia no grito a ousadia:
Marujos do Pöesis
examinem escotilhas,
cabos, mastros, velames.
Ao largo! Ao largo!

24 janeiro 2008

Do abismo

Isso não era para estar aqui
nem para ser lido.
Regurgito
do abismo
poesias das quais me alimentei
pra me manter vivo;
foram pegas no refluxo,
arrastadas na golfada
e transformadas
em poemas.

23 janeiro 2008

O que exponho e agrado, se agrado, é teu
Quando escrevo não me emociono, nem busco emoção para escrever. Falo de sentimentos, da vida, da condição humana, mas não me confesso, nem explicitamente falo de mim. Para cada poema crio um personagem que irá dizer o que digo. Ficção, portanto. Eu imagino o rosto, a roupa, a voz, o jeito, a idade, o cenário, a luz, a loucura, a doença, a sabedoria, etc. do personagem. Em meio a muitas brumas, lógico. Então ele diz o que publico aqui. O que ele diz, diz de modo desarrumado. Tento, então, arrumar o poema – e entro nele - mas ao modo de quem faz palavras cruzadas, passa-tempo, exercício mental. E, como diz o velho Horácio, quod spiro et placeo, si placeo, tuum est. (O que exponho e agrado, se agrado, é teu). Às vezes me agrada e me emociona... Às vezes. Bem, acho que é assim. Ser sempre coerente não é o que me importa aqui.
...

Falam os livros, rolam os fatos,
caem as chuvas, transbordam os rios,
sopram os ventos, dão contra aquela casa,
e ela desaba.
Revelo para todos: a casa era a minha.
Por um tempo fico sem teto, errante.
Então decido - leituras passadas, artes de hoje -
reconstruir o que novamente será derrubado
a qualquer dia por outra tempestade.
Procuro não me importar com isso,
quero aprender a amar esse oficio...

Pronto. Eita casa bonita sô!
As janelas dessa cor
assentaram direitinho.

18 janeiro 2008

Sim, hehehe...

Sim,
estranho,
vizinho,
amigo,
inimigo,
me dirija uma palavra, por favor.
Já que seguimos no mesmo século
teria você uma palavra?
Não, não quero a palavra,
quero a mão.
Não, não quero a mão,
quero o calor.
Não, não quero o calor,
quero a semelhança.
Não, não quero a semelhança,
quero a ilusão.
Não, não quero a ilusão,
quero a poesia.
Sim, hehehe, é claro que sinto medo.

13 janeiro 2008

Pardais, bem-te-vis, ...

Lançam-se em janeiro os atribulados pardais
que chegaram de um longo sumiço
perseguidos pelos bem-te-vis
– quem diria – predadores,
e se arremessam em agressiva mansidão,
chilreando, insanos, sobre migalhas de pão.
Lanço-me – os pés estão sobre as pontas,
com meus acanhamentos ásperos
e meus desesperos encobertos –
sobre os dias, sobre o sol, sobre cada fêmea de raio;
macho sob o império das glândulas,
não suportando os segundos no farol vermelho,
desejando a vigésima quinta hora do dia,
afoito, precipitado, predador,
a querer viver cada minuto,
como quem toma a branca hóstia
– onde se condensam todos os fulgores –
para jogar por dentro a claridade
em paragens e grotas onde a displicência,
no tempo dos mediterrâneos óleos de abastança,
impediu que pelas ruas se pendurassem lâmpadas.
É janeiro, e as cinzas chegam cedo.

09 janeiro 2008

O que não cabe entorna e se mostra, olhe

Há que se escrever não sei.
Há que se escrever não sei para quê.
Há que se escrever para se poder viver.
Há que se escrever o verbo haver.
Tenho aqui uma poesia
que acabei de ler e no peito
uma vontade de dizer,
mas nem sei. Escrever é... me por na estrada.
Talvez seja melhor ficar sentado,
dispor um bom discurso,
lindo e trapaceiro,
e falar baixinho
para que eu não escute a mim mesmo.
Ou falar palavrões bem alto,
dar nomes diversos aos órgãos do sexo,
e angariar uma simpatia fácil.
Eu não concordarei, contudo
com a falsa devoção e a conversa
que assim direi. Mas na verdade
eu sinto que ao escrever me falo certo.
Cada palavra é uma máscara que reconheço,
uma por uma. Vou montando a exposição
dos meus embustes, meus personagens
minhas pessoas várias, meus eus
em paredes com muitos pregos.
Hei de me ver. Não é tão certo,
já que para cada máscara reconhecida,
outras são criadas. Haja estrada!
Você também há de se ver, em parte.
O que não cabe, entorna
e se mostra, olhe.
O verbo haver sempre retorna,
com o poder, e a maciez
que não há no verbo ter.

07 janeiro 2008

Os mesmos dias

Chamem,
chamem os magos do oriente
para que abençoem
com a benção das risadas,
dos luzeiros
e dos bons ventos essa tarde
que ameaça escurecer minha alma
e me fazer chorar de saudade
por quem já atravessou a noite
e amanheceu
em um dia que não mais coincide
com o meu.

(Essa falta de sincronia
entre os mesmos dias
dos dois mistérios do mundo
me deixa p. da vida).

04 janeiro 2008

Escolha a alternativa correta

Debato-me procurando
a alternativa correta.
Sei que busco um entendimento besta
mas, fazer o quê, sofro
dessa mania de entender.
De um ponto qualquer,
de um lugar sem nome
eu enxergava o mundo
de um modo estranho,
as coisas de baixo lá no alto
e as do alto bem no chão.
1. Subir significa descer,
descer significa subir;
2. Esteve o mundo definitivamente
de cabeça para baixo;
3. Foi envesgado o olho
por um vento maligno;
4. foi a consciência atingida
por uma luz divina;
5. O olho, ele mesmo, naquele momento,
foi feliz.

02 janeiro 2008

Vinho

No princípio,
bem no princípio,
era um pássaro,
livre e inocente.

Foi ele, porém, aprisionado,
“in duritiam cordis”,
entre o mais baixo dos céus
e o mais alto dos infernos.
“Et obscuratus est sol”
e reinou a dor.

A dor estava na escuridão
e doía muito em cada mundo
que existia e acabava
no silêncio do abismo.

Houve um dia, no entanto,
que a ave presa se debateu tanto
que de suas asas amarradas por cordas de sangue
saíram faíscas, fagulhas, chamas,
consumindo-a inteiramente.

“Et lux in tenebris lucet”,
e a dor doeu na claridade.
Ah, como dói a dor
nessa claridade que faz ver
a dor dos outros também.
Fica ainda mais difícil,
como percebeu a mãe,
quando “vinum non habent”.


“Et deficiente vino”, rapaz,
não há outro jeito,
senão encarar a vida, e seguir
o conselho do velho pai:
“Fili, vade operare in vinea".
Um bom vinho sempre ajuda.