18 março 2011

Inesperado sol

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Uma mancha formava um desenho do tamanho de um coração no vidro da janela, assim do tamanho de uma mão fechada, um mapa de um país insular, perdeu-se Estelita da paisagem que passava pelo trem, a mancha desenhava uma montanha e um riacho, uma coisa perdida no mundo, tantas coisas começou a ver ali, Estelita levantou com agilidade a mão, sem perder a suavidade do gesto, para tocar a mancha, a nódoa estava por fora onde soprava o vento e os cheiros das paisagens passavam, esfregaria uma flanela em movimentos de círculos concêntricos e logo a limpidez voltaria, isto não seria possível no entanto, logo me acostumo com a nódoa e ela será tão transparente quanto o vidro mais limpo, pensou, viajarei com a mancha, que a voz fala muito eu concordo, mas que não seja Deus, discordo, a voz é Deus, como pode não ser?, fui professora de crianças durante longos anos e sei, Deus me educa, por isso me fala, mestre que é, ele brinca de se esconder, ele tem desses mistérios, mas já treinei meus sentimentos e sei reconhecê-lo em seus mais ingênuos esconderijos, ao mesmo tempo que mestre, não deixa Deus de ser uma criança, não como uma criança, mas uma criança, me fazer morrer deve ser uma de suas brincadeiras, e quando a brincadeira acabar não terei morrido e o riso será de todos, olhou o vidro e disse para si mesmo, ah!, as paisagens!, estou perdendo as paisagens, logo chegará o rio, e entre o vidro, a mancha e a paisagem Estelita adormeceu, a respiração se acalmou, o coração espraiou-se como maré calma em areia leve, encostou de leve o barco no cais, sem balanços, todos se entreolharam, ela é forte, alguém disse, aguentará ainda sabe-se lá quanto tempo.

8 comentários:

Camila disse...

Gostei, mas me chamou mais atenção noblog foi isso:

escrever é um fluxo entre outros, sem nenhum privilégio em relação aos demais, e que entra em relação de corrente, contra-corrente, de redemoinho com outros fluxos, (Gilles Deleuze, 1990)

Ilaine disse...

Este capítulo é belo em toda sua plenitude. A manche na janela do tamanho de um coração, uma mão fechada, um mapa de um país insular... Quantos símbolos. E segue com as paisagens, as paisagens que tanto Estelita ama e o medo de perdê-las ao se ir. A mão ágil e a suavidade do gesto. Surge neste texto a sabedoria de Estelita, a alma professora, acostumada a lidar com os pequenos. E o trem que é sua vida- poderia ser. Ela viaja neste trem e as paisagens - vida- passam por ela, como se estivesse vendo o filme de sua própria existência... Dauri, e eu aqui viajo também. Assim senti o texto. Talvez minha interpretação esteja longe da tua... Mas isto é literatura: os caminhos que se abrem. Beijo e obrigada pelo carinho no ensaios.

Mari Amorim disse...

Dauri,
Cheguei,li,gostei e fiquei,
Boas energias,paz,saúde,e muito amor
um abraço poético,nesse dia do blogueiro!
Mari

Paula Barros disse...

Dauri,

Tenho acompanhado, obsevado as imagens, me emocionado, me controlado (para não ser tão visceral rsrs)

A gente perde e ganha paisagens ao longo da vida, por vários motivos.

Luis Eustáquio Soares disse...

salve, que sua escrita afetiva, nômade, de fluxos de existentes memórias, é isto: escrita viva, de memória-rizoma, de conexões heterogêneas entre o ontem e o hoje, pra escrever amanhãs, manhãs.

saudações,
de la mancha

Paula Barros disse...

O pássaro me fez sorrir..sei lá um carinha linda,expressiva, um jeito de gente, parece dançar..gostei.

A árvore estava linda, e o pássaro anterior também. Bem coloridos. Vida, energia.

MARIA HELENA disse...

Sou leitora por vocação.Leio tudo e de tudo e isto me dá muito prazer!Mas a sua agilidade e habilidade em transformar fatos corriqueiros em belos,em aflorar sentimentos jogando poetiamente,magistralmente com as palavras,faz-me ler o que você escreve com avidez e um prazer indescritível.Obrigada por isso,pelas horas que fogem enquanto viajo nos seus contos.Abç.

Loba disse...

acho que já disse isso, mas os paragrafos longos me dão a sensação de resistência... como o coração forte de estelita