30 janeiro 2011

Inesperado sol

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O que faria, foi pensando, se o gerente ao modo de ver de uma supervisora de escola com muitos olhos em cada corredor a saber da menor fumacinha de cigarro que se pensou diluída já nas altas atmosferas, se lhe percebesse o que em curvas suaves e leves de nuvens em paisagens de verão se articulava em seus mundos de sonhos e desejos? O que fazer se ele percebesse?, certo é que até seria bom se ele enxergasse, não perceberia, era homem ao que deixava transparecer muito preocupado e dado a vastos pensamentos a deixá-lo assim por detrás de uma cortina diáfana que o protegia e o cegava ao mesmo tempo da lucidez de ver exato as coisas, as que se dão no viés dos dias.  Mas se o gerente percebesse esse inesperado sentimento que agora se expandia pelos vários cômodos da sua vida recém saída da adolescência, inesperado sentimento que se alargava pelo corpo e pelas fontes de onde surgem os pensamentos, as alegrias, os sonhos, talvez lhe oferecesse um sorriso compreensivo, ou, mais provável, lhe mandasse pra puta que o pariu sem meias nem peias. Mataram aquele negro nos Estados Unidos estes dias, lembrou; por quais cargas d'água lembrou exatamente agora esta morte triste e distante da qual sentia ainda um estranho luto e que fora notícia na tevê?, articulou-se em fundos de si mesmo procurando outra resposta, talvez porque lera na biblioteca numa revista uma reportagem sobre a sua trajetória, seus anseios, a morte, ficara impressionado com a força das palavras daquele negro, I still have a dream, um mesmo sonho talvez fosse o ponto, o nó dos encontros, do que se enlaça no coração das pessoas, a despeito do tamanho e da nobreza daquele e da fragilidade e incipiência do seu, ganhar a vida, ser respeitado, amar sem se esconder, I have a dream, sentiu um aperto na garganta, largou a caneca de esmalte onde tomara o café sobre a pia. Sabia que não podia se apiedar de si mesmo, o que apenas lhe acrescentaria ao precário patrimônio lamentações e lamentações, nunca o fizera, nem no tempo de criança quando com a cabeça recostada ao colo da avó  recebia dela seu cafuné e amolecia-se todo, como se naquelas mãos cálidas houvesse um segundo propósito, desaguar-lhe as enxurradas de lamentos para que então pudessem ser com mais eficácia portadoras da unção de carinhos terapêuticos. Quando percebia o efeito daquela indução amolecendo cimentos e barras de ferro, levantava-se de imediato e se ia.

7 comentários:

Dauri Batisti disse...

Para quem me acompanha, a ano dos acontecimentos do conto aparece, 1968. Havia já um pequeno indicativo da época onde a história se desenvolve quando apresentei no primeiro capítulo o ano da caminhonete do fugitivo, 1962.

Não sei se deixei escapar no processo de escrever coisas que não existiam, as vezes as coisas escapam. Tenho que fazer uma revisão do conto por inteiro.

Benvindos, sempre.

Jacinta Dantas disse...

Eita que a história flui, flui, escorre de suas mãos. No capítulo anterior, fiquei um tanto "boquiaberta" com tantos elementos conjugados: a atenção com a não economia de água, naquele momento; a carne rósea, a vontade de se fazer bem apresentável...
Agora, o medo de não ser aceito e a vontade de revelar o que precisa ser revelado.

Bj

Paula Barros disse...

Dauri, sobre o "as vezes as coisas escapam", estava a pensar nisso, e sobre minha dúvida um dia desses. Mas pensei, neste acompanhar, que talvez nem seja momento de revisar, é deixar que a história venha, surja, cresça com a força que ela vem vindo. Ás vezes penso, e alguns autores já me disserram, que os personagens vão criando vidas, e ditando a história.

Se eu pudesse lhe dizer algo, é, não revise agora, siga, siga...é/está/e será maravilhoso.

abraço

Maria Helena disse...

Seus detalhes sui generis são coisas de quem tem intimidade não só com as palavras mas principalmente com a vida;e essa
riqueza apenas alguns poucos conseguem.Mais uma vez parabéns.
Abç

Paula Barros disse...

Este capítulo me traz tantos elementos, a luta para ser...ser reconhecido, ser pessoa, ser amado, poder realizar os sonhos, a inquietude, os anseios, os desejos, os medos que se vive, o medo de viver, de amar, de ser...essa inquietude do ser, de ser que parece nos acompanhar pela vida toda.

E nessa inquietude, o bom de tudo, de estar sempre em movimento, sempre com sonhos que nos permitam nos mover de alguma forma, mesmo quando não concretizados algum sonho...ou não concretizado a possibilidade integral de ser.



Dauri, eu nem ia comentar, não estava conseguindo, e de repente saiu assim. E ao autor, que leia os comentários, os meus comentários, apenas como o "enlace do coração".

beijo

Paula Barros disse...

As imagens, as de ontem - sombrinhas, as de hoje, a suavidade das cores...quanta beleza.

Apreciando.

beijo

:.tossan® disse...

Aos poucos vou pondo a leitura em dia por aqui e entendendo melhor.
Estou gostando muito. Abraço