17 abril 2010

Inesperado sol

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Olhou para o molho de chaves jogado sobre a poltrona no lado do carona. Elas pesavam-se imóveis de muitas portas, de voltas nas ferrugens escondidas, nos escuros internos de gavetas, nos seus segredos. Um aro de arame em umas partes expondo um brilho pela fricção suportava-as espalhadas ao redor como raios de um sol esquecido de seus eixos, parado. Olhou para as chaves. Não havia nenhum vínculo com elas, teria de descobri-las no uso, nas portas, nas importâncias. Apenas encontrava nelas densidades de coisas paradas, coisas que prendem sentimentos em impossíveis felicidades. Umas traziam marcas de usos, outras marcavam acúmulos e cores de esquecimentos.

Jogou a marcha para o ponto morto, tomou o molho na mão enquanto seus olhos se iam das chaves para outras paragens. O modo com que fez isso parecia traduzir uma intenção de salvação, assim, a dar às chaves a vida do movimento e do tilintar. Salvava-as pelo movimento, fazia-as respirar pelo tilintar, ligava-as em família no barulho. Ficou ali brincando com as chaves, todo o corpo parado, apenas a mão direita movimentava as chaves no molho, e os olhos, os olhos embaçavam-se escravos na bifurcação da estrada daquele parque industrial abandonado.
O tilintar depois de um tempo impreciso, um tilintar mais agudo ou mais melancólico, ou uma onda arrebentando-se mais volumosa por ali ao fundo despertou-o. Não queria acordar, não queria o tempo todo pensar aqueles pensamentos, o franzir da testa, o leve movimento de negação da cabeça quase imperceptivel delineavam a presença da contrariedade, a despeito da firmeza da postura ao volante. Impunha-se, todavia, a necessidade de voltar às escolhas, às decisões. Largou o molho sobre a poltrona, abriu rápido o porta-luvas e se acalmou. Ali estava a arma enrolada em macio, velho, manchado feltro esverdeado.

O carro roncava parado em ponto morto, precisava de algum dinheiro, aquelas chaves poderiam, por um jogo de sorte, de um modo ou de outro, facilitar a viagem, se bem que já estava bem longe e deveria se permitir uma noite tranquila de sono. Engrenou a primeira marcha, e os pés, na embreagem e no acelerador, mantinham a caminhonete entre voltar daquele engano e seguir para as velhas instalações. Seguiu na direção da siderúrgica.

5 comentários:

Mª Helena disse...

Você disse que brinca com as palavras.Se escrevesse, como seria?
Bem,você é um grande artífice da palavra tanto em verso como em prosa.
Abçs.

Sueli Maia (Mai) disse...

Eu estou adorando esta trama.
E imediatamente dialogo com o personagem:
Chaves quando não servem ao seu destino - abrir, fechar e novamente - de nada serve ao que segue sozinho.
Porque quando uma porta se fecha e é deixada para trás, uma outra fechadura pode estar lá, depois.
...

É que Ele parece perdido em suas inquietudes e dúvidas. Não é seguro viajar ou seguir assim, com tantos pensamentos a lhe tirar a atenção. Não devia estar 'on the road'. Mas, ao mesmo tempo, a estrada poderia lhe aliviar...Seguir, seguir...
Ele está muito aéreo e tomado de lembranças. Até o carro pediu marcha e o motor reclamou desatenção. Imagine ele na estrada...
Eu estou gostando, muita coisa.
beijo

Elcio Tuiribepi disse...

Oi Dauri, tomei a liberdade de postar seu comentário, pois notei que ele mesmo sem querer, se parece com um Haikai
Aguardo sua presença...

"Não queria acordar, não queria o tempo todo pensar aqueles pensamentos"...dificil as vees tirar um pensamneto da mente...eles vão e voltam...

Um abraço na alma...

Dauri Batisti disse...

Elcio,

muito bacana esta tua iniciativa. Legal mesmo. O haikai sendo uma bandeira de amizade entre nós. Quanto à minha participação fiz consciente sim,com a intenção de escrever algo com um formato de haikai.

Dizer o que digo, alecrim
nem sempre digo alecrim
escrevo alecrim e falo hortelã.

eder ribeiro disse...

O bom de se ler suas histórias é que nos achamos dentro dela como leitor. Abçs.