01 março 2010

O último porto do rio
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As águas chuvosas e amareladas do Santa Maria contrastam com o dia amanhecido, com a limpidez de incertezas no ar e com o azul desesperador no céu. As águas, o ar, o azul testemunham, indiferentes, o descer de uma pequena canoa a nos levar enfim rio abaixo na direção do cais da curva dos pretos. Nem sei mais ao certo o que me move, desço porque desço, assim parece, Maria Júlia como as horas, os dias, as pessoas, escapa. O que segue, se segue, se há um caminho, é uma estrada de fuga, um desencontro irremediável. Uma dança breve, viver, talvez. Relembro. O prazer inebriante da perda dos pesos nos sobrevoos da dança me sugere uma nova e pequena ilusão. Solte-se João Francisco, solte-se, dizia Maria Júlia. A lembrança me dá a sensação do ar, mas me pesa agora por dentro da cabeça o mesmo desconforto dos passos que não voavam de início com os de Maria Júlia, mesmo que eu já tivesse dançado, e muito, com muitas outras mulheres. Tremia-me o pé direito e eu contrariava a música. Mas o alecrim, a sálvia, o funcho do seus olhos, o hibisco na pele de suas mãos logo nos fizeram o mais leve casal do salão. José Bento, entre um assovio e outro nunca completando umas das suas toadas, interrompe e recomeça a melodia amorosa e triste, fazendo nos intervalos pequenos comentários sobre o vento. Como não lhe dou importância ele repete, Este vento bom de sol é um vento de aviso, Que aviso?, pergunto afinal, pois que era isso mesmo que ele queria ouvir para me dar a resposta planejada. Um aviso bom, o dia será bom. Todo aquele rodeio com assovios e comentários sobre um bom presságio era na verdade uma tentativa de me animar, ele não pressentia nada no vento assim como eu também não, nem no sol, nem no bando de cambuciras que chilreavam pelos galhos. O que tínhamos pela frente era mais um dia, igual a tantos, um dia que se fazia bonito no ar e no céu, mas se ia feio no rio com as margens cheias de entulhos, galhos secos agarrados nas margens, bananeiras tombadas, águas lamacentas, redemoinhos misteriosos de todos os afogados do Santa Maria. Aviso, nenhum aviso, nada de bom se antecipa, nada digo, deixo que ele determine a rapidez da descida da canoa, remo no seu compasso, o rio vai, um rio lamacento. Penso, um animal morto boiando inchado e agarrado nos entulhos na margem do rio, um porco, um cachorro, vejo, penso nas cartas que escrevi, mas agora sinto que nenhuma pena riscaria uma palavra pela minha mão, uma única que fosse.

8 comentários:

Elcio Tuiribepi disse...

Isso é parte do nosso cotidiano

O que segue, se segue, se há um caminho, é uma estrada de fuga, um desencontro irremediável. Ou uma dança, a existência, talvez. Relembro. O prazer embriagante da perda dos pesos dos passos nos sobrevoos da dança me sugere uma nova e pequena ilusão.

Isso é o que faz o texto estar sempre sozinho sem precisar do anterior...

Um abraço na alma...boa semana

Paula Barros disse...

Essa dança que parece a dança dos dias, da vida, o embalo dos pensamentos.

Esse descer o rio é ainda a mesma vida, ou quando você fala do subir o rio, me traz essa analogia.

beijo

Maria Helena disse...

Como pensa o João Francisco!E seus pensamentos melancólicos dão vida,estrura e ritmo à subida e descida do Santa Maria.
Abraço
Maria Helena

Paula Barros disse...

Dauri, suas palavras que trazem os seus pensamentos sempre me fazem pensar.

Hoje o seu comentário me deixou assim, tentando "ouvir" um pouco mais, tentando acompanhar o seu pensamento.

beijo, boa noite!

Camilla Tebet disse...

Você fala do inevitável de maneira tão poética, mesmo que de vez em quanto seja uma poética triste, como essa. O barco desce mesmo e não há nada que o segure. O dia é o mesmo de sempre, sem coisas boas previstas.
O jeito é continuar assoviando, não é?

Paula Barros disse...

Dauri,

Mais uma vez obrigada pelas palavras.

A minha dúvida ao postar, ao escrever, principalmente a série andarilha, é porque tem emoção, mas tem muita imaginação.

Ou até mais imaginação. É complicado explicar. E/ou nem devo mesmo explicar.

É algo como a imaginação criando a emoção, ou a emoção criando a imaginação, ou os dois juntos.

Mais no fundo eu saiba, não é?

beijo, bom dia!

Ilaine disse...

Uma palavra riscada... uma palavra escrita e postada na medida certa num contexto de história, de romance. Uma metáfora formada e uma dança de palavras em passos e ritmos perfeitos: um texto em linguagem lírica - poesia em forma de prosa.

Dauri, é um prazer ler você!
Abraço, com carinho

Márcio Ahimsa disse...

o vento antecipa o verso que ainda não foi escrito...

Abraço amigo.