08 fevereiro 2010

O último porto do rio
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Ao juiz talvez eu devesse falar sobre o pedido que Maria Júlia me fez, falar da dívida que contraí com ela, dívida não honrada, pagamento carregado de pequenos mas fartos impecilhos ao seu cumprimento. Mas não, com certeza não seria isso matéria de conversação, estes pesadumes de consciência mantenho eu mesmo por cá em meus juízos, até quando uma água fria de banho na bica fria nos fundos da casa, nos inícios da mata, me der um precário refrigério. Acendem-se os lampiões da rua, a cidade tremeluz pela janela e o que vejo, vejo ao contrário, o avesso, o tremeluzir de pensamentos, umas ruas, muitas ruas que se cruzam na mente queimando-se de pequenas brasas espalhadas por sobre todo chão e no ar. Pode ser que o juiz com sua erudição, através do único e tênue elemento comum que nos une, o Último Porto, me alcance no colóquio um aperfeiçoamento de ser, de delinear nas entrelinhas do que se escreve na vida um desfastio. Veremos o que ele quer. Ele se assenta à mesa principal no gabinete e me aponta a cadeira que eu deveria tomar. Torna-se impossível não cair na lembrança de ver meu pai reunido com aqueles homens ao redor da mesa, balanço levemente a cabeça e devo ter deixado vazar uma expressão de desacordo, dois João Franciscos em pelejas pelo posse do momento presente, um querendo a revisão do passado como se nele houvesse uma chave, o outro querendo manter-se ali, segurando a impaciência, o juiz pergunta-me o que se passa comigo, Nada, nada, digo, Estou precisando de um banho, devo descer ainda hoje até o cais dos pretos, tenho coisas a resolver lá. O juiz pergunta novamente meu nome completo e o nome dos meus pais, respondo de pronto, me pergunta a idade e digo trinta e oito, ele silencia, escreve o que não alcanço ler num caderno que me parece de anotações pessoais, pergunta-me sobre irmãos, respondo que só tive um, João Pedro, adianto o nome, que não sei por quais bandas do mundo ele põe seus pés, nem se se mantém vivente nesta terra de vãos e desvãos, continuo. Indenizo-me do cansaço com a permissão de um discreto aproveitamento da cadeira almofadada do gabinete do juiz, escorrego-me levemente, logo volto a posição ereta no espaldar, ele sorri e pede que eu fique à vontade. Olhando para um ponto perdido para além da janela o juiz tamborila a madeira escurecida da mesa, brilhosa, deve ser jacarandá, ou nogueira se a mesa foi importada da Europa, o que é mais provável, livros e papéis entre nós e mais, entre nós se depositam palavras moldadas em olarias escuras nos vales barrentos de cada um, mas ainda não queimadas no forno da boca. Um movimento de falar se estabelece nele, o tamborilar na mesa cessa, mas logo, no entanto, ele contraria o que pensara fazer, percebo, e as palavras que me dirige são de agradecimento e despedidas.

6 comentários:

Abraão Vitoriano disse...

você é criativo e sabe que ser é ver...

abraços,
do homem-menino

Maria Helena disse...

É tudo tão bonito,tão perfeito,palavras tão bem colocadas,e exprimem tão bem todos os personagens, que qualquer elogio é insuficiente e pequeno.Espero ansiosa cada capítulo.
Você entendeu o "intendível"?
Abraço

Paula Barros disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Paula Barros disse...

Observo a escrita para exprimir a angústia e inquietação de João Francisco.

Eu queria saber elogiar direito. Mas tem tantas passagens no seu texto que prendem minha atençaõ que teria quase que transcrever o texto todo.

A decrição do juiz tamborilando na mesa e o deve ser jacarandá. É quando me digo, poxa, ele pensa nesses detalhes.

Vou absorvendo seu texto, entrando nele, vou assistindo e sentindo.

abraço

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Ilaine disse...

Está muito interessante. O eu narrador nos cativa e queremos que ele continue a sua narrativa. Entre tantas passagens bonitas, destaco estas:

"Acendem-se os lampiões da rua, a cidade tremeluz pela janela e o que vejo, vejo ao contrário, o avesso, o tremeluzir de pensamentos..."

"... entre nós se depositam palavras moldadas em olarias escuras nos vales barrentos de cada um, mas ainda não queimadas no forno da boca." Tudo lindo!

Abraço, Dauri!