01 fevereiro 2010

O último porto do rio
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Antes de chegarmos ao cais dos pretos no início da tarde de segunda feira tivemos que pernoitar na parada da Leonora. Rio acima como se é de supor a viagem é mais lenta, e com a enchente ainda mais, quanto maior a ânsia de ir ter com Maria Júlia maiores os ventos das adversidades. Não aceitei um quarto que me foi oferecido, me sentia na obrigação de me manter de olho no índio, e no mestre das ditas cartas, ficamos instalados num armazém, um amplo salão cheio de sacas de café e outros grãos, arroz, milho, e arreios e apetrechos de tropas, abrigamo-nos como foi possível, um lampião foi aceso e pendurado num dos esteios. Nenhum de nós podia reclamar de nada, tudo estava muito bom, acostumados, exceto o botocudo talvez, com aqueles cheiros, irmanados todos no entanto na severidade sob a qual vivíamos nossos dias. Comida não foi problema na pousada da Leonora, serviu-nos ela logo que chegamos ainda com o sol se escorregando em suas despedidas sobre as montanhas à oeste um bom jantar e depois de fartos, ainda que cedo, mas dobrados pelo cansaço, nos recolhemos, cada um no seu silêncio e recanto no armazém. Leonora é mulher de pouca conversa, forte como um homem e ágil nos negócios, mais do que seu marido, do qual enviuvara, que era um homem bom, incontrolado contudo no seu vício de beber. A parada da Leonora ganhou progresso mais pelas suas mãos de viúva do que de esposa. Firme como só, ela logo dissipou a curiosidade sobre o índio repetindo minha explicação para quem se arregalava em curiosidades. No armazém, já noite bem adiantada, ninguém dormia, o cansaço perdia para a agitação, águas ainda rolavam em fortes correntezas nos mundos de cada um, senti vontade de puxar o assunto das cartas com o mestre, não fiz, fiquei com os pensamentos, levantando idéias de que ele copiava minhas cartas assim ao modo de aprender a escrever. E pensando isso deixei me influir de uma leve compaixão e olhei para ele, naquele mesmo momento ele olhou para mim, lembrei do seu pé com aquele tipo de brancura que vai tirando a cor da pele das pessoas, uma doença sem cura mas que não traz prejuízo senão o de tornar a pessoa pampa. Em sendo a minha tez branca de raça galega não entendia o meu próprio pé, preto, numa assim semelhante mas opoente doença, apesar de que doença não era, era de nascença, ou bem poderia ser sinal de um intercurso sexual de algum antepassado com pessoa de raça negra. Meu pai e minha mãe eram tão brancos quanto eu, e de minha mãe jamais seria possível aventar da participação dela numa explicação. O índio recostado sobre uns arreios olhava-me um olhar que eu preferia se traduzisse numas palavras que eu entendesse, entre um olhar e outro eu decodificava ora estranhamento, ora respeito, ora raiva, ora gratidão. O triângulo entre nós três se mantinha, não mais equilátero, eu estava no ponto do domínio da situação, o triângulo apenas sofria com as influências das melodias das toadas dos canoeiros que cantarolavam baixinho as tristezas, estas de viver, de amores não felizes, de se sentir inacabado, de ir, ir, ir sem destino certo. Aqueles cheiros e escuros nos definiam na semelhança da desolação. Procurei concentrar-me em Maria Júlia, e o pensamento nela semeava em mim um sentimento bom, uma leve esperança, uma leveza no peito, aumentava a brandura da luz do lampião, mas ainda, e além, o pensamento nela me amparava daquelas imagens que me assolavam a mente em maltratos de recordação. Inesperado nos apareceu o filho de Leonora, menino de uns dez anos, trazia uns torresmos quentinhos e uma garrafa de vinho e numa correia de couro umas canecas de esmalte tilintando despedidas.

6 comentários:

Maria Helena disse...

Que bom que João Francisco voltou e embrenhando-se em pensamentos sobre o seu pé preto, tentando descobrir o motivo da anomalia.Vergonha?
Gostei da viúva forte que deu a volta por cima.
Estou cada vez mais interessada pelo seu romance.
Abraço.

Jacinta Dantas disse...

Torresmos quentinhos?
hummmmmmmmmm!
Daqui dá para sentir a chegada do menino - um quase figurante - dando mais movimento à história.

Bj

:.tossan® disse...

Mas só se a vida fluir sem se opor
Mas só se o tempo seguir sem se impor
Mas só se for seja lá como for
O importante é que a nossa emoção sobreviva
E a felicidade amordace essa dor secular
Pois tudo no fundo é tão singular
É resistir ao inexorável
O coração fica insuperável
E pode em vida imortalizar
PCPinheiro
Abraço e seja feliz!
Te admiro muito!

Sueli Maia (Mai) disse...

Gostei muito do espírito empreendedor da Leonora. Novo personagem, né?
Perdi muita coisa.
Estou me sentindo fora da trama. Defasada dos acontecimentos
Preciso ler os capítulos que deixei prá trás.

Gostei do rumo das coisas.
A história está 'povoada'.

Um beijo

Paula Barros disse...

Dauri,

Me fascina, me encanta, me deixa perplexa cada novo conto, essa facilidade de fazer fluir o texto, inserindo novos personagens, e a composição dos pensamentos deles.


Gosto quando você escreve assim, me fazendo pensar que era o rio por causa da enchente e não era.

"águas ainda rolavam em fortes correntezas nos mundos de cada um"

E muitos outros trechos que a natureza nos remete aos processos psiquicos-emocionais.

beijo

Cosmunicando disse...

curtindo finalmente com algum tempinho esses teus textos fabulosos...
beijo