28 janeiro 2010

O último porto do rio
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Chegamos ao cais dos pretos e os que estão no atracadouro param diante da barcaça admirados com o estranho passageiro índio entre nós. Explico, nada além disso, que está ferido, e que o levaremos para Porto do Rio onde as autoridades saberão o que fazer. Passo o olhar por todos os recantos, pelo espaço em frente às poucas casas, pelas portas e janelas procurando Maria Júlia. Imagino não encontrá-la ali, mas ainda assim sigo varrendo com os olhos cada viés de qualquer lugar aonde uma pessoa pudesse estar. Apresso os canoeiros para que voltemos ao rio, antes no entanto entro na venda, me encosto no balcão, peço uma dose de cachaça, menos pela vontade de beber do que pela necessidade de reerguer o ânimo, ou para me afastar das lembranças, e pergunto ao balconista sobre Maria Júlia, ele diz que ela não tem aparecido na venda e emenda a conversa indagando sobre o índio, repito o que já dissera, peço qualquer coisa que pudesse alimentar o índio, o balconista corta uma perna de linguiça seca, pendurada ali, parte um pão e coloca-a no meio e me entrega em pedaço de papel, agradeço e saio. Volto à barcaça e o mestre está oferecendo uma dose de vinho ao botocudo. Logo, adultos e crianças, homens e mulheres, os mais variados idiomas de espanto estão ali nos olhares perfilados no cais enlameado pela enchente. Partimos rio acima. Observo a perna do índio e pergunto ao canoeiro que fez o emplastro com fumo e folhas sobre a ferida e ele garante, Este selvagem logo estará bom, tem saúde de cavalo e a ferida não é grave. Olho para ele, não distinguo meus sentimentos, estou longe olhando para o João Pedro. Durante a noite os praças enterraram meus pais ali mesmo ao lado da casa numa pequena colina sobre a qual se estendia em balanços de indiferença e majestade uma jaqueira. Não exatamente embaixo da jaqueira, mas em frente, entre a casa e a enorme árvore. Enrolaram os corpos do chefe de policia e do alferes em capas de chuva, tomaram nossa carroça, colocaram os corpos sobre a carroça, e tive que ir acompanhado de uns praças pegar no pasto a parelha de mulas e atrelá-las. Ao amanhecer partiram, a carroça guinchando e dois cavalos encilhados, os dos finados, amarrados a ela como guardiões de retaguarda dos corpos. Um dos praças, aquele do olhar, voltou-se para mim e disse, Cuide da ferida do seu irmão e fiquem aqui até que alguém, uma autoridade, em alguns dias, apareça, e enquanto ia se retirando voltou e me disse, Faça duas cruzes e põe nos túmulos dos seus pais. O sol se levantava, nada respondi, meu senso se dividia entra as covas, a ferida na perna do João Pedro e o sol. Durante todo o dia o sol brilharia sobre as duas covas no pasto sobre a colina, eu pensava, mas à tarde, à tarde a sombra da jaqueira atingirá as duas covas. Ficamos na porta da casa olhando. João Pedro quis que eu providenciasse madeira para que ele fizesse as cruzes, eu não deixei, não queria pôr cruzes lá nas covas. Olhávamos para os dois montes de terra. O que ele pensava eu não sei. Não choramos senão, senão estas lágrimas que se condensam em apertados nós onde as raízes da dor e da força se entrelaçam. Mas a tarde vem, eu pensava, a tarde vem, e isso me apavorava. A sombra da jaqueira é muito fechada, nenhuma réstia de luz passa, à tarde, Deus!, à tarde, eu sabia, a sombra triste da árvore cobriria as covas. Durante todo o dia meu olhar se avizinhou dela, eu aferia e media aquela lôbrega sombra em seu inviolável encompridar-se na direção dos dois.

8 comentários:

Paula Barros disse...

Oi, Dauri

Essa frase me chamou a atenção:

"Não choramos senão, senão estas lágrimas que se condensam em apertados nós onde as raízes da dor e da força se entrelaçam"

beijo

Dois Rios disse...

Oi, Dauri,

O sol, ainda que a pino, jamais iluminaria aquelas covas. A sombra estava dentro dele.

Beijo,
Inês

Maria Helena disse...

Capítulo forte,denso cheio de luzes,sombras,cores e odores.Mas também de idas e voltas.
O final do texto deixou-me a ver e sentir lugares, dando-me a sensação de já ter estado naquele lugar
Adorei a parte da venda...Dei uma mordida no pão com linguiça.Peça desculpas ao botocudo.
Abraço

Paula Barros disse...

Você sentindo falta do meus textos é para eu perder o sono rsrsrs

E leu então o post anterior? Não estou cobrando, ok?

beijo, bom domingo!

Dauri Batisti disse...

Li sim Paula o texto anterior,no dia que vc postou. Ele é bem "Pauliano", bem marcado pela sua paixão no que faz, pelo amor de ler.

O texto é, na verdade, uma bela declaração de amor à leitura. O que vc escreveu traduz bem o sentimento de todos os que fomos marcados com esta sina, o gosto pela leitura.

Quando vc postou fiquei pensando nos meus livvros de Janeiro, no que eles me passam, no que falam de mim: Meridiano de sangue de Cormac Mccarthy; Enquanto agonizo de Willian Faulkner; O jardim de cimento de Ian McEwan, A farmácia de Platão de Jacques Derrida, Uma vida em segredo de Autran Dourado.

Por conta da sua "uma fome de ler" pensei a cada mês publicar a lista dos meus livros do mês, que até poderia funcionar como uma sugestão de leitura, ou uma forma de dizer aos amigos do ESSAPALAVRA os caminhos que faç pela leitura. Quem sabe.

Bem, vamos adiante,

um beijo.

Katia De Carli disse...

Meu querido amigo
Ando ausente... de tudo, da vida.
Oro penso que a penúria está no fim, só para despertar para outra e mais outra e outra mais.
Daí, para usar suas palavras choro "senão estas lágrimas que se condensam em apertados nós onde as raízes da dor e da força se entrelaçam".
No escuro do quarto, na madrugada que se avizinha, choro sozinha...
Volto para ler tudinho, prometo.
Obrigada por não desistir de mim,
beijos

Jacinta Dantas disse...

Porque, não sei. Mas, nesse capítulo, estou me detendo mais. Talvez seja por causa do pensamento que vai longe encontrar João Pedro. Lembranças, saudade...sombras.

Paula Barros disse...

Dauri, sua lista de leitura de janeiro é um espanto, e desperta mais e mais a vontade de ler.

Acho a sua ideia muito boa de colocar sua lista de livro, assim nos sugere leituras.

Já vou procurar com mamãe o de Autran Dourado. Uma vez li um comentário seu sobre Calvino e peguei com ela para ler.

Para mim, blog é essa troca, esse crescimento, que hora vai pela via do espiritual, hora do emocional, hora do intelectual...e assim vamos caminhando no dia a dia, refletindo, e na tentativa de ser melhor.

brigadinhaaaaaaaaaaaaaaaa!

beijo