23 janeiro 2010

O último porto do rio
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A barcaça rio acima flui-se em enchentes de lembranças, volto ao meu pai, o retorno na contracorrente se favorece dos ocorridos, planos desfeitos, sonhos interrompidos. Recordo quando lhe ensinava à noite na sala, a lâmpada de óleo de baleia tremeluzindo, o que eu aprendia na escola, minha mão ainda não de todo flexível sobre a sua fazendo trilhas e rumos no caderno, amolecendo seus volteios, dando às letras sua características, apesar das inseguras e malfeitas formas. O mais velho não conseguia, restava para mim a tarefa, ainda que sabendo menos mais habilidade tinha para ensinar. Ganhei satisfação com a tarefa diária e com a rapidez com que ele aprendia. Ocorriam em nossa casa reuniões sempre muito protegidas por segredos, reuniam-se ali na mesma sala onde fazíamos nossos treinos com as palavras, vinham à cavalo, bem vestidos, homens de vários locais, nunca em noites claras de lua, alguns conhecidos, outros não, eu de esguela, orgulhoso, observava tudo quanto podia, mesmo que minha mãe me puxasse para a cozinha onde ela preparava bom café que na hora certa seria servido com pães e biscoitos de polvilho. Aqueles homens ali pareciam revestidos de grande importância e hoje sei que tinham-na de fato. O irmão mais velho, João Pedro, uns quinze anos, também se intrigava mas ficava na frente de casa, assoviando, pensativo, silencioso, com seu canivete trabalhando pequenos pedaços de madeira que depois jogava fora sem ter concluído nada. O pai oferecia a casa, mas não era o que mais falava, e bem ele disfarçava sua frágil capacidade para a leitura e a escrita. Nossa casa ficava no alto, escondida numa intercesão de duas montanhas a formar pequeno vale, a ela só se chegava pela frente, a vista linda, a terra boa, as noites sempre frias. Fiquei muito contente e orgulhoso numa ocasião, um dos mais lindos momentos da minha vida, quando testemunhei sua desenvoltura em ler a pedido daquele que presidia a reunião uma carta ou algo que se assemelhava. Felizes, se posso dizer assim, numa noite já fechada, mas não tarde, depois da jornada pesada com a lavoura, bem alimentados e limpos, fazíamos nossa aula quando entrou João Pedro espavorido avisando da chegada de uma milícia que se avistava já bem perto. O pai foi ao quarto e voltou, e determinou que ficássemos tranquilos. O chefe de polícia foi logo, sem licença, entrando na sala, seguiu-lhe o alferes. Houve ali uma conversa, os praças de linha lá fora no terreiro, a conversa se avolumou em razões, o meu pai indagando com que direito o senhor chefe de polícia invadia uma casa àquela hora, o chefe de polícia se referia a uma sociedade secreta que se reunia em nossa casa e ordenava a prisão do meu pai como o principal responsável. Não havia concordâncias nem entendimentos suficientes para que os eventos fossem por rumos de paz. Houve um tiroteio, lembro de ver meu pai já caído mas ainda atirando, gritando para corrermos e levarmos nossa mãe, o chefe de polícia, o alferes, cairam também. Quando, em minutos, capaz de enxergar melhor a cena, e já cercados pelos praças, o pai e a mãe naufragavam em mar de sangue. Finavam-se também ali o chefe de polícia e o alferes. Os praças assustados não sabiam o que fazer. Num impreciso tempo vi que a perna do João Pedro sangrava, puxei-o para a cozinha aos olhos complacentes de jovem praça que não fez outra coisa senão olhar-nos como que paralisado pela estupidez da cena. Dei-lhe água, lavei sua ferida, dei-lhe um pano para pôr sobre a ferida, ainda não havia tempo para chorar ou sentir qualquer coisa, apenas um frio enorme subia pelas tripas na direção do coração.

6 comentários:

Paula Barros disse...

Dauri,


Você escreve de uma forma que parecia ler um relato verídico. Sentimento de tristeza, de angústia me tomaram.

Lembranças....trazem sempre novas cenas a mente.

E assim, nós leitores vamos navengando no seu conto, com cenas sempre supreendentes, com a vontade de continuar a ler.

beijo

Dauri Batisti disse...

Obrigada Jacinta por me enviar um email com carinhosas correçoes de uns erros. Valeu.

Beijo.

Luis Eustáquio Soares disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Dauri Batisti disse...

O Luis trocou as bolas. Deve ter sido o calor hem Luis, rsrsrs.

Abração pra vc e pra Mirtis.

Luis Eustáquio Soares disse...

rapaz, não sei o que ocorreu. como eu apago essa mensagem? me desculpe pelo engano. fiz um comentário pro seu texto, assim como pra sua visita. só falta eu ter me equivocado. a mensagem sua foi pra mirtis e a de mirtis foi pra vc. tudo é provável. de qualquer forma, te agradecia suas visitas, sempre inteligentes, de afetivas escritas horizontais e também comentava seu texto narrativo, no qual a memória, fluindo em enchentes de lembranças, tal que, cacheira, rio abaixo, o rio o rio, pondo perpétuo na imensidão, vai delineando o rosto de um personagem pai, ou de um pai personagem, e, entre letras garatujas, intrusas, a força policial vem pra prender o personagem pai-revolucionário, livre pra morrer por outrem, enquanto o personagem filho ou o filho personagem ainda encontra tempo pra cuidar de joão pedro, sabendo reconhecer e entregar-se à carne viva de outrem, porque o pai revolucionariamente agiria assim.
meuabraço,
luis
ps. se puder, favor apagar a mensagem trocada.

John Doe disse...

Li alguns capitulos, vendo que cheguei bem atrasado para este marco, por isso vem o pedido egoista, mas prometo que depois de lê-los volto e comento, se não em todos na maior quantidade possivel dos topicos, mas poderia me enviar todos eles num unico texto por email?