18 janeiro 2010

O último porto do rio
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O sol se levanta longe, nas distâncias das curvas do oceano, mas já agora se infiltra em alva e incipiente luz por entre as ramagens escuras da mata e atinge-nos nas ruínas tão suavemente quanto uma penugem de paina seca que o vento leva. A madrugada segue lenta, abato-me não das horas de fadiga, mas dos dias, dos desencontros, das infelicidades, do fastio de ir vivendo, descer um rio sem remo. Ainda insiste com uma pequena cintilação a fogueira que nos afervorou a vigília durante a noite, me prendo nela com o olhar e assim fico um tempo, calado. A chuva que persistiu sem trégua se vai embora. O mestre retorna do cais e diz que a velha Maria Luíza resistiu bem, mas o rio se espraiou pelas margens como um mar, Vamos ter que esperar um bom tempo, a correnteza é muito forte, ainda mais do que aqui deve ter chovido nas cabeceiras, é melhor esperar. Tem ele razão, além da correnteza, há outros perigos para as barcaças, descem galhos, bananeiras, troncos pelo rio abaixo, além das cobras. Surpreende-nos a abóboda celeste ao amanhecer completamente entregue, sem nenhum hímen de núvem, toda possuída pelo sol em desvirginado e feliz azul. Fico pensando como seria lindo estar no Porto do Mar em dia tão limpo depois da chuva para acompanhar Maria Júlia na cumprimento de seu propósito. Surpreende-nos a outro modo, mas não sem espanto, a revelação do canoeiro Manoel Fernandino, o primeiro a avistar aquilo que nos visitou durante a noite. Era um botocudo, ele afirma, era um botocudo. Olhamo-nos com um indisfarçável descrédito ao que ele diz. Olha-nos ele e escuta-nos, mas seu olhar calmo está a nos desafiar com a autoridade de quem sabe o que fala, e, sem se importar com o nosso escárnio continua, Podem rir o quanto quiserem, mas era um botocudo, estive com ele cara-a-cara no clarão do relâmpago. Clarão de relâmpago é rápido mas aguça mais a visão. O seu botoque no lábio pareceu ainda mais horrível do que se tem falado por ai. Estes selvagens se alimentam de carne humana, é preciso que tomemos cuidado, esse pagão pode voltar. Que botocudo que nada Manoel, digo eu, estes índios se encontram a muitos e muitos quilômetros daqui, lá pelas partes do Rio Doce, bem ao norte. Era um botocudo sim, afirma, eu que vou ficar atento. Rimos todos, ele também, um sujeito sempre de muita disposição e alegria. Na Maria Luíza era sempre o primeiro a puxar as toadas, e no baile na curva dos pretos o sujeito parece ter asas fechadas sobre os pés que se abrem invisíveis quando uma boa concertina se expande em seus foles.

3 comentários:

Paula Barros disse...

Meu Deus do céu,o que é que é isso? Meu primeiro espanto.

"Surpreende-nos a abóboda celeste ao amanhecer completamente entregue, sem nenhum hímen de núvem, toda possuída pelo sol em desvirginado e feliz azul"

Eu vi um céu assim em Brasília, me fez lembrar, me transportou. Mas só você para escrever assim.

Paula Barros disse...

"....e no baile na curva dos pretos o sujeito parece ter asas fechadas sobre os pés que se abrem invisíveis quando uma boa concertina se expande em seus foles."

Hoje, vou ficar de lembranças.

Me lembrou um rapaz que dancei, quando terminei de dançar disse a minha amiga, ele dança tão bem que é um passaporte para o céu. E parecia que me dava asas...

beijo

Sueli Maia (Mai) disse...

Este capítulo foi som e imagem de rara beleza..."solidão com vista prá um mar e muita coisa prá lembrar..." E atravessa o enfado porque você consegue nos 'introduzir' na cena. Muito, muito bom.