18 janeiro 2010

O último porto do rio
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Resolvem comer, sou convidado, do seu embornal cada canoeiro reúne num único arranjo no chão o sustento de boas coisas importadas, inclusive doces. Temos um belo repasto. A descontração me permite voltar os olhos à bolsa das correspondências do mestre jogada sobre a terra. Peço-lhe um particular, esperando que a solidariedade praticada frente às dificuldades da noite e a refeição repartida pudesse nos aproximar em entendimentos sobre um elemento comum, as cartas. Ao que ele prontamente responde dizendo ser mero portador e nada mais além do que isso, Cumpro ordem de levar do senhor estas cartas e nada mais tenho a acrescentar, pois assim é, e se o senhor tem algo a reclamar, que reclame a quem o senhor escreve, ou a alguma outra autoridade. Ademais, diz, este assunto não nos convém, é melhor encerrar a conversa. Neste momento encontro-me em minhas reflexões com um entendimento jamais imaginado, mas possível, de que o mestre sofresse de alguma deficiência nas faculdades mentais, dessas que decorrem da sífilis, ou coisa que o valha. Silenciamos, ando uns passos, penso em novos argumentos para prosseguir na conversa. Olho para onde seria o altar e recordo a quanto não rezo. Quando me levanto dos pensamentos e viro para ele dou-me com uma espingarda apontada e logo o dedo se movimentando no gatilho e um estampido. Todos acorrem e se deparam comigo mais branco do que vela, caído no chão. O mestre ri, ri sem parar e aponta o macuco morto, ali, abatido, caído atrás de mim, na mata, a uma boa distância. Vamos ter carne boa sobre a brasa logo mais, e ri, ri. Avanço sobre ele com todo ímpeto, raiva de muito guardada e esmurro seu rosto, rolamos pelo chão, os outros canoeiros custam em apaziguar-nos. Ao final e porque ele não esperava mnha reação saio-me melhor do que ele, mais assustado do que machucado, ao contrário dele. Aproveito e digo-lhe o que ele nunca ouviu de mim. Todos ficam parados, intimidados, arrogo-me da autoridade neste feitio nunca usada e imponho o comando de hora em diante à minha pessoa. Cada um desempenhe suas funções mas com o devido respeito e obediência à minha pessoa, digo. Ao contrário do que imaginei os canoeiros manifestam concordância e expressam uma certa admiração pela minha atitude. O mestre em modos mais comedidos demonstra em aparência pelo menos, no olhar, na postura, no ajeitar das coisas, o reconhecimento do abuso para comigo ao atirar na ave. Digo-lhe, De hoje em diante não escrevo carta nenhuma e o senhor não haverá de me gritar em exigências. Escrevo eu quando os meus tentos me pedirem, ou quando a vontade me estimular, que me espere quem me pede tais cartas, ou que me mostre a digna presença. O senhor não se faça de rogado, diga à pessoa o que exatamente lhe profiro, não me submeterei à nenhum outro ditame para escrever minhas palavras senão ao que me determina o meu arbítrio, no dia e na hora que eu bem quiser. Ele pouco mais novo que eu, mas não necesseariamente mais forte, senta-se no chão, mantém-se cabisbaixo por um bom tempo, a inação é de todos, e então começa a retirar as botas, tira a esquerda, fico observando, tira a direita e do mesmo modo olho. Retira então as velhas e molhadas meias e vejo, meu Deus!, seu pé esquerdo, seu pé esquerdo é todo branco, níveo mesmo, até o tornozelo, negro que é parece permanecer com meia mesmo sem ela. Um estranho sentir me percorre as veias, confundo-me de mim mesmo os pensamentos e retraio-me, sofro um desconforto, uma culpa, vou para a porta do que seria a igreja e bem no centro olho para onde corre o rio.

7 comentários:

Maria Helena disse...

Como você consegue ser tão versátil? Leio sempre seus poemas,crônicas,outros contos,mas o de agora ,a cada capítulo eu me surpreendo.Por exemplo:o capítulo anterior parece escrito por outra pessoa e isso me fascina.Acho que não estou sabendo me explicar.Você me entendeu?
Mais uma vez parabéns.
Abraço.

Paula Barros disse...

Dauri,

Diante desse seu conto que cresce em vários aspectos (criatividade, mistérios, personagens, aspectos psicológicos e comportamentais dos personagens, descrição de cenas e cenários, mudança de ritmo...), fico sempre entusiasmada em acompanhar, motivada a ler.

E fico conversando mentalmente com você, com todas as minhas curiosidades de leitora diante de tanta riqueza que compõe seu conto.

abraço

Paula Barros disse...

Sabe, me lembrei de José de Alencar, José Lins do Rego e Machado de Assis, do quanto eu conversava com eles, infelizmente eles não tinham blog.

Vem de longe minha mania de conversar com os escritores, e de ser personagens, e de sentir por eles ou contra eles.

Márcio Ahimsa disse...

a arbitrariedade é algo ausente, e, nos livros, aquele velho vexame de dizer o que se pensa. depois, despida toda palavra, fica um cheiro de alma nua, na boca, a crueza da vida sendo pincelada com poesia e texto.

Abraço, amigo.

Vou e volto.

Sueli Maia (Mai) disse...

Aí pela quinta linha eu comecei a rir (de tua astúcia em inventar a curiosidade premiada) e fui me acabando de rir daí prá frente com a 'grossura' da figura, depois com o tiro e a briga...Ah! Dauri, ler você é uma viagem, cara...E ri que ri e fiquei imaginando a cara de susto do outro, todo 'borrado' de medo e o alvo era um macacu bem atrás... Genial! Genial! Ai tu me vem com essa pérola : "...possível, de que o mestre sofresse de alguma deficiência nas faculdades mentais..." E ao final, outra vez o pé.(Ele tem vitiligo?)

Você é demais, surpreende o leitor. E definitivamente cada capítulo é uma nova história, tem vida própria, mas, faz parte da grande história.
Já há dois capítulos que observei a nova fotografia mais próxima da civilizaçao, né?
Há histórias que me lembram as coisas que ouço de pescadores. Muito legal ouvir as gentes do mar, do mundo e o jeito simples de viver.

Um beijo e um sorriso.

Obrigada pelas palavras de incentivo e carinho.

Dauri Batisti disse...

Mai,
rsrs, não era um macaco, era um macuco, uma grande ave que foi comum nas matas do Espírito Santo.

Sueli Maia (Mai) disse...

Rsrss Tô rindo outra vez...
Eu moro em Friburgo e, ao sul há uma cidade Cachoeiras de MacAcu..E ao norte há um outro município chamado Macuco.. Que é um pássaro, né? Então macuco, macacu, macaco... Afff... Olha só a confusão. Um bololô... Interessante que as vezes acontece coisa semelhante quando há alguém 'privado' de algo. Neste teu conto (para mim) este é um traço que atravessa os personagens - uma certa privação de algo...
(cara só de reler esse conto eu me lasquei de rir outra vez) Beijo.