16 janeiro 2010

O último porto do rio
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Sim, sim. Recebo estas cartas... com frequência. Sem previsão, deparo-me debaixo da porta com as ditas. Cheiram a café e couro e um certo quê úrico, ou outro cheiro assim que não sei precisar, mas, meu Deus! Temo em falar... e desejo falar. Alevanto-me sobre as pontas dos pés em desejos que a uma alma de esposa não se deveria permitir levantar destes lugares profundos, desconhecidos, próximos são no coração de cada um o céu e o inferno. No entanto se falo é porque despudoradamente a palavra sempre quer se expor, que o recolhimento e a timidez é coisa que nao compete à palavra. Andei pensando em procurar o padre ali na São Tiago e pôr no confessionário o que sinto ao ler aquelas linhas, pôr no elenco dos pecados esta condição dos desejos, lá é o lugar, bem aprendi, em que se deve dar nome às coisas, mas abreviei o caminho e aqui estou. Não te tomarei o tempo, mas poderei levar-te, se quiseres. Um parágrafo de falas benditas vale mais que um livro de rezas que se lê sem a compostura do pensamento. Deve ser por assim que se vão Deus e o diabo em lutas.

Quando levanto bem cedo e abro a janela do quarto e olho o mar seguindo a baía adentro não penso em nada senão no cujo João Francisco lá do Ultimo Porto do Rio. E mais se avantajam estes sentimentos quanto mais próximo se coloca um devido dia. Sigo com os olhos as barcaças que sobem na direção da desembocadura do rio ou as que descem ao porto. Não hei de negar, como? o arrepio de aventuras que eu nunca vivi. O marido me tomou quando eu tinha doze anos. Nunca além do que ele me fez ele me fez. Ele nunca me fez feliz, eu até pensei que sim hoje sei que não, a felicidade de sentir em praias de prazer essas ondas que me movem as marés no corpo. Valha-me. A fala entrecortada se situa na dificuldade de respirar pausadamente, se me entendes.

O marido que nem vejo mais, nem sei se perdeu aqueles pelos todos ou se não, se se barbeou ou não, levanta-se e logo veste suas ceroulas brancas, sempre limpas, que assim é minha vida. Gosto delas quando assim as vejo nele pela brancura que me diverte alcançar de tanto alvejá-las. Adquiri receita nova de alvejo de roupas brancas com as freiras. Elas usam aquele hábito todo preto, mas sobre o peito vai uma alfaia toda branca. Sabes? Ao modo de lembrar os adornos no coração para o Bom Deus o branco sobre o peito tem que ser o mais branco possível. Tanto insisti que elas, amigas, me revelaram o segredo, na verdade foi a irmã Serafina já bem idosa, plenamente festiva e animada quando o fato consiste no desrespeito a certas regras do convento. Olho e vejo-as, as ceroulas, e gosto, pois que branco a gente vê nos outros quando usam-no, não vejo a ele, o homem marido, muito menos aquela expressão de sua macheza, vejo a brancura que alvejei. Olha que em fantasia viajo o rio acima para levar umas dúzias de ceroulas bem brancas e alvejadas ao senhor João Francisco. Tu podes rir. Mas, como eu seguia no relato, dia desses, o marido ao levantar desceu as escadas antes do que eu e não percebeu a carta, mais uma, por debaixo da porta. Se bem que também nem me incomodo, a carta eu leio eu, mas não me traz o nome, ele também poderia ler e talvez criasse dentro dele uma cidade ou outra paisagem que tornasse sua vida.

Bem, me nego certos complementos como este que deixei de falar como um jeito de respeito ao pensamento, o teu. Tu te completas de flores ou vinhos, ou barcos ou espinhos o que te confidencío. Quando sigo e mudo de assunto é um modo de não me fazer ouvir por quem não tem o ouvido certo. Ouvido certo é o quanto este que me ofereces agora. Bem, não sei explicar, mas se me entendes tu podes me dizer, apesar de que muito aprecio teu silêncio. É assim um ouvido certo é o que muda um pouco as palavras, mas não muda tanto e não prejudica com a mudança o correr das coisas. Sim, me fui ao cemitério hoje, pois que morreu o doutor Eustáquio de Monjardim Coutinho. Morreu de velhice, mas foi homem bom até o fim. Mas no cemitério fui tomada de um desejo, um desejo somado de amor que... E me desengasguei dele, ou tentei, olhando a paisagem. Do cemitério se avista ainda mais em maravilhas de Deus o mar que vai dar no estuário do Santa Maria. Olhei tanto para aquele horizonte... Ah, desculpa minha respiração funda, não exagero. No fim do dia é que foi o sepultamento, o sol caía marcando de nostalgia as montanhas longes, e aquela beleza do sol se pondo disfarçava o que na verdade eu queria. Soprou-me o vento um acanhamento nas faces, recompus-me ao lado do marido e retornamos, eu com um aperto no peito a me encher desta dor de perder o que já foi perdido e desta loucura de querer ganhar.

7 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

Meu Deus, como sente essa mulher...É uma palavra sem pudores que ao mesmo tempo se contém. É rebeldia sem revelia que dialoga consigo os recatos e desarvora os desejos contidos... Este teu texto tem alma, Dauri, há uma alma feminina que se excita ao tocar com os olhos as palavras que se instauram como um corpo qualquer a rememorar cheiros a ressentir em desejos que não cessam e reacendem a cada carta...
.....
Voltarei prá reler mas essa palavra emociona e enternece ao mesmo tempo em que dá vontade de libertá-la. Não sei se isto é compreensível, mas o inusitado no 'ultimo porto do rio' é que o texto dialoga - no todo e nas partes (cada conto) - como uma melodia, como balanço ou calmaria do mar, do oceano, da lida, de nós.


Um beijo

Dauri Batisti disse...

Mai,

que bom que você acolheu bem esta nova personagem do conto. Pensei que talvez quem vem me acompanhando - como você - não entendesse essa nova voz, este outro elemento do conto, esta "ruptura".

Este "conto" se vai longe na minha cabeça e aos poucos vou tornando-o presente pela escrita. É uma escrita - como já disse - "zen". Vale enquanto segue nesse "rio".

Obrigado pelo carinho e pela paciência em ir comigo em mais este recreio. A vida é escola, labor, luta, escrever é recreio.

Maria Helena disse...

Concordo em gênero ,númmero ,grau e caso com a Mai sobre o texto e toda a textura do mesmo.(Redundante?Não, é o eco das palavvras).
Bem,sou fã da Hannah e,apesar do seu drama eu dei boas gargalhadas.
Ótimo!
Abraço.

Dauri Batisti disse...

Obrigado Maria Helena pelas observações sempre importantes. Esta personagem ainda não conhece bem a Hannah mas mora na mesma rua em que a esposa do dono da companhia fluvial de navegação está montando a sua casa em Porto do Mar, ja que ela reside mesmo no Porto do rio onde seu marido tem seus negócios lucrativos. Logo isso vai se evidenciar na história.

Beijo.

Sandra Leite disse...

Dauri,

Poeta de palavras que agasalham, é assim que te sinto, vejo, toco.
Cheguei aqui "dura", era apenas um feliz 2010. Você quebra a minha rigidez.

Impossível ficar indiferente. Li outros, bebo da palavra do poeta.

Estou sedenta. Me ajuda?

" Soprou-me o vento um acanhamento nas faces, recompus-me ao lado do marido e retornamos, eu com um aperto no peito a me encher desta dor de perder o que já foi perdido e desta loucura de querer ganhar"

Me senti abraçada, poeta!

Feliz 2010!

beijos de quem só é aprendiz...e bebe!

Sandra

Joice Worm disse...

(escrevo entre parêntesis para lhe deixar um beijinho e diminuir o tempo de ausência: MUAC!)

Unseen India Tours disse...

Nice post !! Worth Reading !!