14 janeiro 2010

O último porto do rio
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O cais da igreja velha na verdade é o que restou de antigo, bem antigo projeto de um porto. Entre dois lajedos de pedra que brotam da terra e avançam para a água num giro do rio, formando um recôncavo de águas fundas e quase paradas, está o antigo fundeadouro, uma ruina. Grandes árvores cresceram no que seria o pátio do ancoradouro, e quem não soubesse daquele sonho de um dia, não perceberia seus resquícios, o que ficou, sobejos espirituais, coisas voltando ao seu estado primevo. Muito menos os desavisados passantes do rio avistariam o que sobrou da igreja na colina hoje encoberta totalmente por árvores. Tanto quanto o mestre também eu já sabia destas ruínas sem lhes dar, no entanto, importância alguma. Muitas histórias correm sobre o lugar. Se o Santa Maria desde o Porto do Rio até o Porto do Mar é doce e manso, uma alma boa, ainda mais no cais abandonado, no cais de sonhos perdidos, um vilarejo ali que não se formou, onde o rio vira placidez de poema que canta a saudade e o que se foi. Cá estamos, vai dar tudo certo, diz o mestre dentro do rio, apalpando as pedras e procurando nas paredes do ancoradouro, no lusco-fusco produzido pela lanterna da proa, antigas argolas, como quem busca peixes cascudos em suas locas nos barrancos. Encontrei, mais firmes do que se tivessem sido cravadas pelo diabo, diz, aqui estão desde quando ninguém sabe. O que foi pensado se realiza, atracando no cais realizamos um destino perdido para o lugar. Parece coisa de jesuíta, ele volta a falar, que eram inteligentes, engenhosos, visionários, mas ninguém sabe ao certo quem fez isto. Fico admirado de estar ele tão prolixo na excecução das medidas de proteção da barcaça. Além de usar as argolas outras cordas vão da barcaça às árvores mais próximas pelas mãos dos canoeiros. Gritamos um para o outro gritos de cooperação e estímulo que a pressa e a urgência exigem. Nesse momento já estou também dentro do rio enlaçando aqueles velhos anéis enferrujados, marcas de alianças inqustionáveis dos sofrimentos do passado com as esperanças presentes. Vejo, bem próximo que estou, o nome da barcaça. Nome tantas vezes visto, nome tantas vezes anotado nos livros de registros das entradas e saídas do porto, Meu Deus!, agora me causa um assombro, Maria Luíza. O mestre confere cada corda, cada amarra, toma seus pertences na caixa, sua bolsa de couro, a das cartas, a lanterna da proa e segue por entre as árvores. Vamos em seus passos, enlameados, cada um carregando o que pode. Os raios e trovões se intensificam. Logo pisamos vestígios de antiga escadaria e subimos pequena colina. No alto, em meio à mata e tomada por ela a antiga igreja. Aqui vamos nos abrigar, diz, entrando à luz dos raios pelo que seria o frontal do templo. Aproveitando o angulo reto formado por dois paredões ainda de pé alguém contruíra uma cabana bem coberta, sabe-se lá com que propósito, suficiente para nos abrigar. Recolhemos madeira rapidamente mesmo que uns bons pedaços já estivessem molhados, e um dos canoeiros se dipõe a voltar ao Maria Luíza para buscar querosene.

10 comentários:

Dauri Batisti disse...

Este vigéssimo quarto capítulo dedico à Lyani e ao seu "entre aspas".

http://lyani.wordpress.com/

A Lyani foi uma das primeiras estimuladoras do ESSAPALAVRA. Dela recebi uma série de selos.

Obrigado Lyani. Valeu.

Beijo

Elton Pinheiro disse...

Dauri, tenho acompanhado tua escrita certeira. Tem tempo que venho procurando na rede uma outra leva de escritores. Não em detrimento da prosa (muito boa), mas aqueles poemas, aguardo por eles também.

Abraço

Paula Barros disse...

Dauri,

O barco chama-se Maria Luiza, ou eu li errado?

Se for o assombro é meu, mais uma vez com a sua escrita.

beijo

Dauri Batisti disse...

Sm Paula, chama-se Maria Luíza, um nome que nos faz pensar em...

Paula Barros disse...

Oi, Dauri, vou ter que reler (sorrisos para você).

Você, o escritor, é fantástico. Muita admiração.

boa tarde!

Sueli Maia (Mai) disse...

Ficou bonita a descrição e - na ruína - todo musgo é leirão de flor que irrompe... Eu morei no Norte do País e lá há rios como artérias e veias num corpo... Há homens que são chamados 'práticos' que para um barco 'atracar' eles sobem à embarcação num inflavel e manobram o barco até o ancoradouro. A descrição das argolas ali, intactas (como se tivessem sido fincadas pelo 'diabo' foi incrível)

Enfim aqui temos o privilégio de, praticamente um e-book. Com a vantagem de um certo suspense e expectativa entre um capítulo e outro.

Muito bom.
Fosse um filme o cineasta só teria o trabalho com o elenco porque você já cria a fotografia com as metáforas.

Um beijo, Dauri.

Márcio Ahimsa disse...

no auge da ruína, urge a sina imcompreensível de manchar de fotografia e poema, a beleza indiscreta das palavras cheias de veludo e zelo.

Eu sei que as estradas continuam vazias, com elas, algum vento solitário convidando para viajar...

Um conto, um primor.

Abraços, amigo. Parabéns.

mundo azul disse...

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Seu "quase longo conto" é impecável. Um texto descritivo que nos leva até o local onde nasceu...


Beijos de luz e o meu carinho!

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Messias Fernandes disse...

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hoje li o seu post escutando um dos videos que você indica lá abaixo a direita para ler "poemas xamânicos".

fica D+ ler escutando.

os poemas xamânicos que você se refere, estão postados aqui em seu blog.

abç

Lyani disse...

Dauri, meu querido amigo blogueiro, poeta, sonhador, o senhor de'essapalavra...

Que relapsa tenho sido com seu maravilhoso blog, com suas maravilhosas palavras e mesmo assim, ainda assim você me dedica esse capítulo lindíssimo de seu conto.

Não mereço. Confesso. Mas fiquei tão lisonjeada e feliz!
Não tenho palavras para agradecer!
Nem para me desculpar do sumiço!

Mas, mesmo sumida, você sabe o quanto te admiro, o quanto admiro esse espaço!

Muito obrigada querido amigo.
Fez uma humilde admiradora de suas palavras, MUITO FELIZ!

Bjos,
Ly