04 janeiro 2010

O último porto do rio

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Descer o rio e ir, nada mais que isso. Quando se vai, se vai a algum lugar, mas agora não. O mundo parece parado sobre eixo de ferro em madeira rangente, rangente não pelo movimento que não há, mas pelo peso do viver, pois que viver em certos momentos é apenas peso. Tudo vai parado, apenas as barcaças descem. As horas passam e me mantenho aqui, consumindo-me em esforços para estar presente quando longe, bem longe, piso meus passos. Relembro a animação do meu ajudante no fulgor de sua juventude de ir trabalhar com os engenheiros que irão demarcar as novas colônias para os imigrantes italianos, e antevejo estradas, mesmo que estranhas e tortuosas. Os canoeiros tocam seus buzos e sinalizam a hora, volto e ouço que falam em comida. Mas o mundo ainda parece parado, estranha sensação. As barcaças descançam em remanso de sombra fresca. Do caldeirão me oferecem um prato de feijão frio com carne e toucinho, aceito e como sem vontade. A senhora patroa percebe meu estado de ânimo, senão triste, passado, e me oferece de sua cesta. Não aceito, mas então vejo a empregada se servindo de belo brote, peço-lhe um pedaço, e explico à distinta senhora que a escolha daquele pão grosseiro de fubá, inhame, aipim se dava por me fazer bem aos intestinos, minto. Na verdade gosto pois que gosto. O requinte de educação que tive não me dispensou de certas preferências. O mestre na proa, intuindo que o momento de um disfarçado tédio exigia uma atitude, abre sua caixa e me arremessa uma garrafa de vinho da Borgonha, Toma senhor João Francisco!, o que não me surpreende, pois que os mestres, vivendo entre portos, sempre guardam nas caixas sobre as quais se assentam, dinheiro, correspondências e produtos importados. Obrigado mestre Gumercindo! Apesar do calor a garrafa guardada tão no fundo, próximo da água, mantinha-se em temperatura ideal. Arremessa-me também uma caneca. Rio de mim mesmo, das ironias e contrariedades presentes em minha vida a se manifestar em muitos momentos, inclusive agora no tinto filete precioso, alegria divina, a ser derramado sobre taça tão tosca. Viro-me para a senhora e ofereço-lhe o vinho com leve gesto e olhar atencioso, Senhora? e a empregada antecipando-se, determinada por seus antigos costumes de escrava, já retira de seus apetrechos, desembrulhando de tecido felpudo, duas taças de cristal da Bohemia. Há uma misteriosa alegria no olhar da senhora, algo que pressuponho, mas que não afirmo. Tomo a taça, não resisto de lhe dar um pequeno toque com o dedo médio para ouvir seu tilintar, sino de reinos ocultos, e então derramo quase que em gesto ritual a intensidade líquida e tinta sobre a transparência da taça e estendo aquela beleza à patroa. Depois renovo o ritual para o meu próprio prazer, salivando, e concluo, sem prever consequências, contemplando aquele vermelho crístico, sacramental, que o mundo definitivamente havia parado em meio ao rio, mas já agora sobre outros eixos, eixos de rubi.

6 comentários:

Maria Helena disse...

Comi muitas vezes brote com café feito com garapa, mas gostei ,agora, do sabor do brote com vinho da Borgonha servido em taça de cristal da Bohemia;chic né?
Lindo,poesia pura, e as últimas frases deixaram um gostinho de quero mais...me emocionou.
Abraço de Maria Helena

Paula Barros disse...

Dauri, vou apenas dizer de uma lembrança que me trouxe. Gostava de ficar passando o dedo molhado na taça de cristal até ela dá feito uma apito. Voltei no tempo.

beijo, boa noite

Vivian disse...

...pude ver nitidamente
o vermelho do vinho colorindo
a taça ebulindo o sangue.

um dia eu quero escrever
como você!

bj, lindo!

Sueli Maia (Mai) disse...

Você é mestre nessa arte, Dauri, Você navega como quer, cara. Eu fico me perguntando como pode... e a minha cabeça balança como alguem que de pasmar, não acredita no que lê.
Mas vou te confessar agora, que no descansar da pausa, ousar usar o descançar da barcaça, me fez ouvir uma música - a canção do mar em tua prosa poema esse conto de cem réis.
Outra coisa que me emocionou foi a passagem do início com o pesar dos dias mortos, densos, o fardo do viver sendo 'levado às costas' e depois o boiar nas águas rememorando sabores a experimentar tantos gostos e dissabores no também e até.
Mestre que navega rio afora, escreve mais...

Eu disse...

Navegar é preciso... Já dizia o poeta.
E estar aqui lendo as suas palavras é mergulhar em águas cristalinas de uma boa leitura.

Vim apreciar e deixar meu abraço carinhoso

Márcio Ahimsa disse...

nesses eixos de rubi, rio sempre, rio abaixo de mim, sim, água sorvendo a temperatura do meu corpo, que, lento, manso a manso, no canal mais sutil da minha consciência, prevê meu estado mais sóbrio, é quando descubro que a vida tem algum sentido, sim, todo poeta tem algum sentido, mas, o copo está mesmo é cheio de bohemia, dessa boêmia vida que alguém almeja, por almejar, por ser mais próprio... No fundo do copo: o resto amargo do viver.

Abraços, amigo.

Gosto desse teu estilo, sem nenhum bojo de vaidade, apenas a beleza dizendo por si mesma.