10 dezembro 2009

O último porto do rio

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Assim, mais branco por dentro que a folha de papel, não branco de puro, mas de vazio, apesar de que talvez o vazio seja escuro, sem conseguir escrever, mesmo que abarrotado de pensamentos, é que dobro a folha de papel sem nenhuma palavra e coloco-a no envelope. Não me furto de pensar, ainda que em rapidez, que a folha vazia seja o que mais eu poderia falar, o ponto mais distante neste caminho de entendimentos do destino. Recolho a folha ao envelope, como já disse, prenhe de pensamentos, mangueira que não segura frutos em terras frias, besunto com abundância as bordas da carta e pressiono uma parte sobre a outra selando de vez, sem recuos, a brancura e o vazio em seu interior. Nem sei a razão, mas o gesto de dobrar a folha em branco, selar o envelope e enviar para alguém que não sei quem, me arrepia por dentro, as veias apertam o sangue e um frio mina na pele. Nego a palavra a quem me pede, ou digo tudo no branco da carta vazia. Surge um pensamento amarrotado de sentimentos, de que fosse minha mãe, uma mãe desconhecida, uma mãe que ainda me quisesse, apesar de ter me dado aos outros, de ter me abandonado, e que purgando suas culpas, admitisse não poder mudar o feito, mas, ainda ligada ao filho, quisesse dele pelo menos as palavras. Sigo com a carta na mão. Palavras no papel são coisas que ficam por um tempo a mais. Um tempo a mais. Lá fora o insano grita mais exigente. Duvido da atitude que tomo, titubeio mas não desisto. Desço apressado ao cais e entrego a carta ao sujeito. Miro seus olhos com firmesa, um jeito de recusar, ou admitir, o perigo que ele representa.

9 comentários:

Dauri Batisti disse...

Vou dedicar os pequenos capítulos deste conto às pessoas. Este vai para a Mai. Com carinho.

Maria Helena disse...

Estou literalmente apaixonada pelo conto,pelos recursos que você tem usado para prender a atenção do leitor e pelo homem do pé preto tão cheio de medos corajosos.Gosto dele.
Abraço
Maria Helena

Sueli Maia (Mai) disse...

muito interessante o detalhismo vão dele. E nele se ressalta e fica engraçado e sério. Um mar de contrários, maravilha isso.
Numa hora afirma o estabelecido para de seguida subverter o estabelecido. Como o branco de dentro que não seria o puro branco já que o vazio (segundo ele)é escuro. E outras das ambiguidades, antíteses. Uma escrita muito,muito interessante, nem cansa, instiga, desperta curiosidade. Uma curiosidade meio moleca, sem nada de nocivo, aquela que desperta a vontade de conhecer.

um beijo

Dois Rios disse...

Dauri,

Palavras contraditórias que entrelaçam-se numa só idéia. Há nelas um misto de mágoa, cobrança, acerto de contas, medo, algo como sentimentos profundamente doloridos. Quase uma ferida que culmina no escuro vazio de um abandono.
Gostei muito. Você transita confortavelmente entre a imaginação e as palavras. O resultado é sempre surpreendente. Parabéns!

Beijo,
Inês

Paula Barros disse...

Gosto do que você escreve, porque sempre sinto que os personagens são elaborados com perfis de muita emoção, e com alguns conflitos que prendem minha atenção.

Textos repletos de significados, de simbolismos, que me fazem refletir.

beijo

Cosmunicando disse...

titubeie mas não desista!
continue nos presenteando com seus textos... obrigada pela mensagem que me deixou :)
beijo

myra disse...

nao, nao desista ! continua!
estou gostando muito, muito!
abraço

Jorge Elias Neto disse...

Você disse algo sobre mudança em meus textos.
Chego aqui ... E é aquí que vejo mudanças!
Vou seguir seu exemplo e começar a responder os comentários dos amigos.
Tenho feito isso com seus comentários lá no blog.
Gostaria de ter seu email.
Vislumbro lançamento do meu livro e também vou começar a enviar alguns emails para os amigos.

Grande abraço,

Jorge Elias

Sueli Maia (Mai) disse...

Dauri, amigo,

você me fez chorar. Porque eu sempre leio, comento e muitas vezes volto prá reler. Semana inteira estive fora de asa, lendo nos pedaços das horas que conseguia. E não li a tua dedicatória a não ser agora então reli o que eu mesma comentei sobre o texto e caramba me emocionei porque acho que sou isto.
Pffff...
Isso é muito bom, saca?
Incrível...

Um beijo e obrigada.