09 dezembro 2009

O último porto do rio

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Dizer o que digo me foi difícil, não é mais, sem ser fácil. Sou movido, ou levado, por uma força fria, dessas que se adquire quando decisões importantes já foram tomadas, ainda que não de todo assimiladas, e descem da mente para os dias na forma de um vamos ver no que vai dar. E digo me perguntando que sinal é este, ou inicio de doença, ou moléstia de velhice antecipada a se manifestar no meu pé, este alheio pé preto, que além de ser o que já é, apresenta tremores. A tremura vai do momento em que recebo do José Bento Caetano o convite para o baile até a hora em que piso no salão. Maria Júlia. Maria Júlia me faz esquecer tudo. Mas o amparo oferecido por ela é um abrigo que não me sustenta por não mais que poucas horas, e logo vem um desalento de viver a vida que vivo, subir o rio, voltar ao cais do último porto. Maria Júlia já não é mulher senão para estas coisas de baile e noites de festa no porto da curva. Do mais é história passada e futuro perdido. Durante todo o dia preciso tomar cuidado em manter meu pé alheio bem firme no chão a impedir assim o seu tremor, tremor que sobe e estanca no joelho, onde o suporto, apesar de mudar o meu andar, o que não percebo. Dizem que em certos dias ando com ar mais decidido, livre. Não imaginam o que se passa comigo. Quando em tais dias me distraio e cruzo as pernas a vibração da tremura fica visível no sapato e o presidente da companhia das barcaças do Santa Maria & Vitória já me inquiriu a respeito, tendo por suposto alguma coisa errada que eu tivesse praticado. Difícil, de fato, é entender tremores em situações tão corriqueiras, funcionário que sou, e sempre fui, da sua confiança, apesar de que, confiança de quem tem muitos negócios, sempre é uma confiança incompleta.

5 comentários:

Anônimo disse...

Dauri,

Tenho acompanhado o desenrolar desse conto e digo que essa tua forma de escrever me prendeu... sim. Ela transpira uma singeleza incomum e ao mesmo tempo um estilo ricamente arquitetado para prender a atenção do leitor.

Um grande abraço!

Elton Pinheiro disse...

realmente bem arquitetado. desde a primeira vez que li sobre o pé, fiquei intrigado. parece que é um significante mais presente do que eu supunha.. embora haja um pé tão firmado, o texto é leve, envolve numa singeleza. mas nada disso teria tanto eco se não fosse o talento das frases, tantas elas que nem vou citar... afinal a literatura é feita de palavras, também.

MENSAGENS AO VENTO disse...

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Li todos os capítulos e gostei demais! Seus textos prendem a atenção e ao mesmo tempo trazem as nossas próprias imagens, criando questionamentos ante as impressões do personagem...Obrigada, pela excelente leitura! Voltarei para ler os outros capítulos...

Beijos de luz e carinho!


Zélia (Mundo Azul)

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Sueli Maia (Mai) disse...

Esse personagem (que também poderia ser vários), mostra em capítulo um traço comum - uma espécie de distanciamento dos contatos... ainda não estou certa disto mas ele manifesta uma certa disfarçatez (assovios e corta-caminhos)da vida, ali onde ela se manifesta com a minucia cotidiana. Não sei se estou sentindo demasiado ou, influenciada, criando um arcabouço psi pro sujeito do conto.
O fato é que desde o primeiro cappítulo, tudo que lembra a vida, (mesmo além do humano), o exaspera.

Mas sem dúvida é uma leitura que me faz um bem danado e eu respiro junto com o texto e com o autor.

Esta é a segunbda vez que leio e feito uma cachaça de primeira, escorrega num gole só e nem arde.
um beijo

Paula Barros disse...

Dauri, um dia desses estava pensando que o pé que você citava nos textos tinha um sentindo e que eu ainda não tinha percebido.

E gostei de ler ele aqui expresso assim:

"Durante todo o dia preciso tomar cuidado em manter meu pé alheio bem firme no chão a impedir assim o seu tremor, tremor que sobe e estanca no joelho, onde o suporto, apesar de mudar o meu andar, o que não percebo."

Me lembrou a emoção que temos de lidar, e que muitas vezes temos que manter sob controle. E o pé no chão é um bom simbolismo.

beijo