12 dezembro 2009

O último porto do rio

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As horas me batem, ventos endoidecidos que batem portas desprevenidas, e fico sentido por um tempo, depois pensativo, sem grandes proveitos do pensar. A hora de agora, três horas, por volta, é de sol tão forte e ar tão quente e parado que algo no mundo parece ter acontecido para que outro rumo seja dito, ou visto. O rio de viver a vida devia ser, nesse momento, de águas bem lentas, quase paradas, para que eu pudesse ter como contar e organizar os rumos, assim do jeito que conto as sacas de café que chegam ao armazém, e as que descem o rio, sem nada deixar passar. Mas elas me imprimem na pele, nos olhos, na alma o cansaço de cada canto do armazém, a poeira e o cheiro adocicado enjoativo do café pilado. Nestas horas, entre outros e diversos pensamentos, invejo os caixeiros viajantes que se colocam numa sombra de árvore boa à beira da estrada e deixam a vida passar. Olho da janela, os homens sobem e descem a rampa do cais, molhados de suor, cantando, sem pensar a vida que vivem, preparando as barcaças que partem para o Porto do Mar logo nas primeiras luzes da madrugada. Dobro-me sobre meus papéis, livre de escrever cartas, por enquanto. Foi-se a última, em branco, e por agora resguardo-me das preocupações do que escrevo e para quem. Voltam em círculos as lembranças do baile, Maria Júlia, o pedido que ela me fez. Meu Deus, eu não esperava tal pedido. Reparo no rapaz que me auxilia no escritório, ali tão sujeito aos meus mandos, e ao mesmo tempo tão livre de mim, tão próprio em seus caminhos. Parece feliz, decidido. Talvez seja a felicidade natural da juventude, quando se é feliz mesmo não sendo consciente dela. Ele ergue os olhos percebendo uma ordem no meu modo de levantar da mesa e já pergunta, Sim senhor, o senhor precisa de mim? Invento um trabalho e o chamo para que me siga, fugindo de pensar o pedido da Maria Júlia. Tenho por ele, num instante, um leve pensamento e um estranho carinho de pai, apesar de que pai não sou, mas suponho o sentimento. Senhor, ele me diz, O senhor ficou sabendo?, estão contratando homens para subir para as matas das terras frias nas montanhas com uns engenheiros que vão demarcar terras para os novos imigrantes que, dizem, estão chegando. O Porto do Rio vai se movimentar com os imigrantes. Que imigrantes? pergunto, e afirmo, Já vieram suíços, pomeranos, luxemburguenses, alemães. Dizem que chegarão muitos, responde, agora chegarão os italianos. Senti no tom de sua voz o ímpeto para a vida e o desejo de um novo trabalho, de fazer a vida, e pensei que talvez também fosse bom subir em tal empreitada, me embrenhar pelas matas.

6 comentários:

Dauri Batisti disse...

Este décimo capítulo eu dedico à Paula do pensamentosefotos.blogspot.com/

Anônimo disse...

O rio da vida nem sempre é de calmarias,onde se tem tempo de prever as intempéries e desviar cursos. Em contrapartida, a monotonia dos dias pode fazer com que busquemos a aventura das descobertas, do incomum... Assim é o curso do viver.

Encantada com a riqueza de significados que aqui encontrei.

Um grande abraço!

Paula Barros disse...

Obrigada Dauri! Gostei de ser lembrada por você.

Volto para ler com calma.

beijo

Sueli Maia (Mai) disse...

Carama, como você consegue isto.

Vou te dizer o que aconteceu agora comigo, na interação com estes teus dois ultimos textos.

Eu voltei e quis reler os comentários do texto anterior. Somente ali eu me dei conta de tua dedicatória e de imediato quis reler o meu próprio comentário e um misto de choro e riso, curiosidade e emoção me invadiu. Bem, cheguei à este sabendo que seria dedicado a alguém e logo de começo lembrei da Paula, e foi um misto de força e fraqueza, coragem e exitação que ao final culminou com uma palavra - devaneios de um sujeito que poderia ser, qualquer um de nós. Muito, muito interessante.
Isto é uma espécie de transe, uma espécie de incorporação, uma tradução de um outro por ela mesma - essa palavra - a palavra em si.

Meu Deus! que coisa mais bonita, que coisa mais inovadora e inusitada.

um beijo, Dauri,
eu volto. belíssimo este isso.
ufff!!!

Paula Barros disse...

Me chama a atenção nesse conto, muito mais que os outros, o pensar a vida. Citado várias vezes e de forma que só você o faz, que pode passar despercebido ao leitor, e que é tão presente no texto.

Ou foi para mim, talvez me identifique com essa inquietação do personagem de olhar a vida, de ver a vida passar, de sentir a vida, de querer fazer a vida ser diferente.

Talvez o meu viajar seja o "embrenhar pelas matas".

beijo e abraço, obrigada pela oportunidade de ler seus textos.

Márcio Ahimsa disse...

as palavras se desenham primeiramente por um sentir, que vai expelindo a magreza da vida pelos orifícios abertos e excomungados pela canseira atrelada à gana voraz de viver... depois, é deixar dizer, se dizem alguma coisa, se não falam nada e apenas calam e reticências, não posso saber... sei apenas que elas formigam em mim como cigarras fazendo algazarras pela primavera tardia do amanhecer, que premedita o verão guardado no inverno frio de cada um... no fim, um inseto faz-se nascer em nós, imundo e feio, é uma metamorfose premeditada das palavras que sugerem uma beleza sem vício, sem ofício, de patas frágeis que pousam em flores e excrementos, mas que são sempre de insetos, como tudo que fazemos, que somos, de belo e degradável, mas que sempre é algo nosso, de humano, seja nú, seja calçado, em pelo e pedra, a rústica rima do viver sem sílabas escolhidas para findar o que é óbvio: a vida fala.

Abraços, um conto também tecido com a magia branda e rústica das palavras...