29 novembro 2009

O último porto do rio

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Acordar, sinto saudades dos dias em que acordar era o natural abrir dos olhos e da alma para o milagre de viver. Agora acordar é dar-se com um sufoco no peito, uma pressa e um pulo, mesmo aos domingos e dias santos. Acordar com a alma deslocada, um vago no lugar deixado, uma dor inexplicável. Em tal situação não há outro jeito senão esperar que o banho frio, o café, o abrir da janela, a escuta de barulhos comuns do quintal, da mata ao fundo, convençam a alma a reocupar o correto espaço no peito. Acordo, mas me engano, o dia ainda não amanheceu. Estou estirado sobre a cama, vestido com as roupas, o peso e a poeira do dia anterior. O lampião aceso ilumina o buraco do deslocamento da alma. Que sofrimento é este, deslocamento de alma, dor que dói mais que luxação de ombro, de dedo polegar. Com um pé forço o sapato do outro e arranco-o. Repito o processo e o outro cai ao chão. Usando o mesmo procedimento retiro as meias. Esqueço-me do pé direito, negro, diferente de todo o resto do corpo branco e vejo-o. O lampião aceso ilumina o pé direito negro. Apavoro-me, tento escondê-lo, não sei o que fazer, mas sei, logo me enfio debaixo do lençol. Esquento-me de umas brasas e ardências de calor, os minutos viram o inferno e entornam seu fogo sobre meu corpo, dou um salto, retiro toda a roupa, exponho-me à própria nudez, volto para a cama e cubro somente o pé direito.

12 comentários:

Anônimo disse...

....dias melhores virão,sempre!

Dauri Batisti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jacinta Dantas disse...

Vou assim, acompanhando, com expectavia, o último porto do rio. Vou...
acompanhando.
Beijo

Dauri Batisti disse...

Caro anônimo,

Obrigado pela visita e pelo comentário. Pena que optes pelo comentário anônimo. Mas, benvindo.

Lembro-te que o que lês deve ser lido como um conto. Gosto de literatura e quero traduzir pelo conto, pelos poemas, realidades humanas. O grande lance é criar.

Me causa um certo desconforto ver que às vezes os textos sejam lidos como confissões de realidades pessoais. Não é o caso da grande maioria dos textos no ESSAPALAVRA.

bem... dias melhores virão para o personagem? não sei. Pode ser que sim, pode ser que não.

Te convido a acompanhar o conto. será um prazer ter novo comentários teus.

Abraço.

Volte sempre.

Sueli Maia (Mai) disse...

Fiquei pensando no lugar da alma e depois pensei na angústia desse homem e lembrei que o enfado do mar deve dar um sentimento de lonjura de tantas coisas...
Ave Maria que longitude que lateja a cabeça e tranca o peito.
Meu Deus, Dauri conseguiste me jogar pro mar. Perfeito porque não descreveste cenário mas é o ultimo porto e suponho ser terra pelo bar mas me veio o silêncio do mar. O mar profundo desse homem.

Tá lindo isso.

Sueli Maia (Mai) disse...

Dauri, eu passeio no teu blog, sempre tão sofisticado e simples...
Mas as imagens de Vitória ou Vila Velha e a ponte e o saveiro e ainda os slides, estão maravilhosas. Eu leio o texto e vou fuçando as novidades.

Abraços.
É linda a tua cidade e lindo teu amor por ela.

Mª Helena disse...

Sempre temos alguma coisa que desejamos cobrir ou encobrir para esquecê-la.
Gosto do seu jeito de escrever o cotidiano,tornando-o incrivelmente diferente do meu perceber.
Abração.
Maria Helena

Paula Barros disse...

É muito ruim quando a alma está deslocada. E seu conto me traz essa lembrança de forma muito forte.

beijo

Messias Fernandes disse...

.
.
está bem complicado acordar ultimamente tranquilo.

2009 foi bem complicado acordar.

acho que pra muitos.

foi um ano bem turbulento. mas é nas dificuldades que a gente cresce.
e 2010 está aí

louco por um despertar!

grande abraço. parabéns!!

Elton Pinheiro disse...

Batisti,
vim agradecer o comentário generoso, de leitor. Eu também tenho lido tua página (essapalavra com imagens e discurso), a raridade do contemporâneo é poder sair da autobiografia com dignidade, parabéns pelo lirismo e pujança, fôlego de escrita. Seu trabalho literário agora faz parte do melhor que encontrei na rede. Obrigado.

Oliver Pickwick disse...

Continuo surpreso, camarada! Não que presumisse que não era capaz de escrever um conto, mas, me acostumara com as poesias. A sua habilidade em descrever ambientes e outras circunstâncias é a mesma de ficcionistas veteranos.
Keep the beat!
Um abraço!

Deusa Odoyá disse...

Olá meu querido amigo.
Não sabia que escrevias contos tão belos e cheios de relampagos de uma alma sofredora e, vulnerável ao tempo e á vida.
Lindo, vou acompanhar.
Meu lindo, uma semana de muitas realizações e paz\.
Te deixo um beijo com milhões de luz e paz.
Beijinhos doces também.
Regina Coeli.
Não conheço sua terrinha, mas dizem que é muito linda.
Qualquer dia pousarei por aí.
fique na paz.

Aguardo sua visita.