01 dezembro 2009

O último porto do rio

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Estranhamente ganho ânimo, uma mescla de tristezas e alegrias, quando alcanço a rua e atravesso os movimentos característicos do dia que amanhece. Tento entender, não entendo, sinto, talvez. Se latem os cachorros nos quintais, os rumores interiores forjam um assovio sem graça, de melodia repetitiva em meus lábios. Quem me vê passar até pode pressupor ali um homem pacífico e reconciliado com seus rumos. Se nas portas as crianças pequenas choram, se águas são arremessadas das janelas das cozinhas, se um cheiro de café e esgoto se levanta forte no ar aquecido pelo primeiro sol, acelero os passos sem perceber, quase correndo, como a levar uma boa e inesperada notícia para os barqueiros. Se dálias brancas brotam de terreno lodoso e dobram-se sobre cercas de madeira, a vida, a minha, se vai resvalando do destino que devia ser. Ser feliz. Bem vestido, altivo, sigo para o armazém no porto do rio. Sapatos bem engraxados, meias limpas resguardam-me de ver aquele alheio pé preto. Esqueço-me dele e me encorajo para o trabalho. A gritaria dos barqueiros acertando suas cargas, e que logo, sem demora, vão pelo rio abaixo, redescobre dos meus ouvidos uma voz, a própria, mansa, insistente que diz quase com entusiasmo juvenil, junta-te aos barqueiros, abandona este porto decadente, desce para o porto do mar, procura a mulher que te pede as cartas, viva a vida que se abre à tua frente. Esconderei dela o pé negro, depois, se um dia ela descobrir terei um argumento bem pensado. Ela com certeza se faz de pele branca, faces rosadas e cheira a água de colônia parisiense. Mas quem me pede as cartas eu não sei. Bem que acho que me engano, mas é insistente nas voltas da mente a esperança de que seja tal mulher. Há outro engano aqui, não sou eu este que me construo nas ilusões das cartas escritas, com olhos melancólicos, nos intervalos entre o rio que vai e o branco da folha de papel.

8 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

E você conseguiu me fazer buscar a memória da água de colônia parisiense. Eu caminhei e como se estivesse a espreitá-lo por sobre os ombros eu ia olhando tudo ao longo da via. Me intriga porque ele foge das crianças, dos cheiros naturais das gentes e seus resíduos, do movimento das casas e me pus a pensar do que foge ou se esconde este mareante?
O que teme este amante que o cheiro das dálias lhe faz melancólico e triste?

Estou curiosa e desejosa de ler esta continuação.

abraços.

Paula Barros disse...

Me senti agora, feito minha mãe dizia que ficava esperando as novelas do rádio, fico esperando a continuação dos seus contos.

Não sei falar de construção de contos, mas gosto da construção dos seus, da narrativa, dos descrição dos cenários e dos personagenes, conseguem me situar na história, sentir a pulsação do texto junto com a minha emoção.

Prende a atenção, e nos deixa na expectativa da continuação.

Um persongem com inquietações humanas conhecidas.

beijos

Wellington Felix disse...

Impressionante caminhamos junto com o protagonista a olhar os caminhos de terra batida, e interiores, entre a poesia e a prosa, adentramos vaidades e carencias, nos descobrimos então mais humanos...

Obrigado Dauri

:.tossan® disse...

Dauri adorei a crônica, você é um grande escritor. Eclético! Abraço

Elton Pinheiro disse...

...texto em tudo ótimo,.. final belo e cabal (a questão do branco na folha, também..)E talvez o inefável a descortinar da histeria o semblante que não se poderá desfazer,..

"Ela com certeza se faz de pele branca, faces rosadas e cheira a água de colônia parisiense."

abraços literários

Dois Rios disse...

Interessante, Dauri!

Seria uma busca? Um abandono? Um recomeço? Talvez o pé negro que ele esconde simbolize andanças por uma vida que ele tenta esquecer. Não sei, o teu texto dá margens a grandes viagens.

Beijos,
Inês

Luis Eustáquio Soares disse...

"estranhamente ganho ânimo", assim é, porque dignamente deve fazer-se, ganhar ânimo através do estranho, por meio do estranho, estranhamente, porque tudo é estranho, estrangeiro, e nós também, nesses exilados ecos de nós conosco.
belo texto, parceiro
obrigado pela visita
meuabraço,
luis de la mancha

Messias Fernandes disse...

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o último porto do rio..

fica logo ali.
eis a questão!!

abçs!!