Assim, sem mais nem menos, acordou e teve um sentimento, como quem tem um pensamento, era um triste, não era tristeza, um filhote de cachorro desgarrado da teta da mãe em meio a tantos, fuçando por ali, intrometendo-se. E a
manhã tinha sido uma manhã bonita, diga-se, dessas que antecipam o verão. Foi, na verdade, uma manhã qualquer, pois que todas são bonitas, por
elas mesmas, sem depender de nossos olhos, nem das estações, porque simplesmente o mundo vira para o lado do sol
de novo, apenas por isso já são bonitas, mesmo quando a infelicidade filhote de cachorro se arranja
em jeitos de fuçar a vida procurando suas tetas. Olhar a vida como uma cadela com muitas tetas talvez não fosse a melhor imagem. Sacudiu a cabeça. Ao mesmo tempo respirou levemente
mais fundo sem que a mulher percebesse. A maior parte das infelicidades se vive
sem lagrimas e sem visibilidades. Ninguém sabe, ninguém saberá e basta. É isso.
Queremos entender as coisas para viver, por isso ficamos pensando, pensando.
Mas as coisas não têm entendimentos. O que a gente consegue delas são
sentimentos. Até os conhecimentos científicos são sentimentos. E foi ali na
venda que ele se deu conta disso, revisando a vida, revisando o dia. Cachaça não
bebia, nem cerveja. Ficava ali, conversava e ria muito, boas gargalhadas dava.
Tinha essa facilidade, de rir muito, por pouca coisa. Suas gargalhadas e
gozações não podiam faltar no bar. E ele estava pensando numa piada sobre o balconista. Ficaria pra outro dia. Mas ele já tinha percebido o encantamento dele por aquela garrafa de mel.
14 outubro 2013
28 setembro 2013
Vozes de abrir janelas,
tentativas de olhar – 3
Ir à venda era só pretexto pra
pensar em tomar o ônibus. Ali em frente ficava o ponto. Ia ali todo dia, como
todos, quase todos, depois do trabalho, uma hora pra rir, ou se tentar. Prá que serve o vinho senão pra alegria? A cachaça substitui. Uma alegria vem, e se consegue esquecer certas coisas,
quando se está com os outros, quando se enche a cara, esquecimento é descanso de alma, alma é coisa sempre viva, nunca
morre, mas precisa descansar. Ia à venda só pensando no ônibus, a venda era o
ponto de ônibus, qualquer hora todos iriam vê-lo arrumado, aquela calça jeans
nova, a camisa branca sem mancha, tênis dos bons e uma bolsa na mão. E Então
todos perguntariam e ele responderia com prazer: Tô indo embora. Mas isso de ir
embora é vontade parente do sonho, vem e se desfaz, como asa que se abre para o
voo e se desfaz num braço pesado, numa mão grossa, pesos a se carregar. Quanto
maior a vontade de ir embora, maior a correia de couro endurecido que prende o
sujeito no destino que ele vive como um cavalo arreado. Encostou-se no balcão,
viu o colega que só vivia de óculos escuros e sentiu dentro de si uma coisa
ruim.
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Dauri Batisti
24 agosto 2013
Vozes de abrir janelas,
tentativas de olhar - 2
O olhar é coisa que se dá aos
outros, mas pode ser também uma coisa que o outro toma, como uma carta que se
escreveu em segredo e veio a público pela mão de um “amigo”. As pessoas estão
sempre pensando que sabem ler o olhar da gente, mas nem sempre sabem não. Até leem,
mas podem estar lendo errado. Ainda lê aquele que lê errado? Mas ele queria que algum dia
aparecesse alguém ali naquela venda e que fosse capaz de ler certo nos seus
olhos aquela história com começo meio e fim. Especialmente o fim, quando alguém
morria. Ao cair da noite ele vinha à venda. Bebia umas poucas doses,
ficava ali pelos cantos mais escuros e ia embora. Durante o dia usava óculos
escuros.
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Dauri Batisti
21 agosto 2013
Vozes de abrir janelas,
tentativas de olhar - 1
Não era por necessidade que
esfregava aquele pano úmido sobre o balcão da venda, era por costume, as horas
não passavam, queria ir embora, não ia, ir pra onde e fazer o quê? Ganhava
pouco e nada para ficar no balcão dia e noite. Dia e noite é modo de falar. Esfregava em idas e vindas aquele pano sobre o balcão, a madeira não brilhava, esfregava em círculos, a madeira ficava limpa, mas sebosa, opaca. Fechava
a venda por volta das oito, quando começava o Jornal Nacional. Voltava pro seu
quarto, também depósito, atrás da venda, e amargava lembranças de um tempo em
que tinha coisas, não muitas, e pessoas, algumas, e histórias, umas poucas. Um ou outro parava na venda durante o
dia, um ou outro carro passava naquela estrada. Aquela estrada de estreito
asfalto não levava a lugares importantes. Só no fim do dia vinham alguns, no
fim virão os anjos? tomara, pensou, vinham na boca da noite os de sempre, fedidos, os
sem dinheiro, gastar o que não tinham, rir o que não podiam, rir e xingar palavrões
em cada dose de cachaça. Mas ele viu na prateleira uns litros de mel. Estavam
ali e ele não os tinha visto. Sempre vendia um ou outro litro nos fins de
semana quando apareciam uns perdidos da cidade por ali, donos de alguns sítios
na região. Se fosse ele nunca compraria um sitio por ali, preferia a beira do
mar. Mas via agora os litros de mel, via-os com desejos e salivação abundante. Estranhava-se,
mas queria encher a cara de mel, queria tomar no gargalo, encher- se de doçura.
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Dauri Batisti
15 agosto 2013
De meio a meio
Quando escrevo aqui penso que vou em boas semelhanças com um personagem de Guimarães Rosa em A terceira margem do rio, que ao entrar na canoa, pelo olhar do filho, não ia a parte alguma, "só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio".
Mas vamos lá...
As dores vem, isso é certo. No que elas se transformam? Ah, é bom pensar no que se quer viver, se amor ou rancor. Os caminhos se vão, isso é certo. Para onde ir? Os sonhos te levarão, mas é preciso guardar as noites com bons sentimentos. A vida finda, isso é certo. Que sabores dela se desfruta? Tudo depende do carinho e do amor no cultivo do pomar. Ah, sei lá, talvez não seja nada disso, e apenas seja preciso ouvir muitas vezes as crianças cantando.
Mas vamos lá...
As dores vem, isso é certo. No que elas se transformam? Ah, é bom pensar no que se quer viver, se amor ou rancor. Os caminhos se vão, isso é certo. Para onde ir? Os sonhos te levarão, mas é preciso guardar as noites com bons sentimentos. A vida finda, isso é certo. Que sabores dela se desfruta? Tudo depende do carinho e do amor no cultivo do pomar. Ah, sei lá, talvez não seja nada disso, e apenas seja preciso ouvir muitas vezes as crianças cantando.
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Dauri Batisti
14 agosto 2013
Caem muitas luzes de asas e voos macios pelas manhãs
Faz-se uma janela ali, abre-se um lago
de luz. Ele olhava a manhã e tudo estava nela, tudo. Mas nada estava completo,
apesar de pleno. Vou pescar, ele disse. Como vais pescar, o outro perguntou e
exclamou ao mesmo tempo. Vou pescar, ele afirmou novamente. Mas havia outra coisa naquele “vou pescar”. Se te conto agora este
conto é pra te fazer um convite. Talvez ele se lembrasse de um poema, um poema
de Pablo Neruda, talvez. As certezas se diluíam em uma espécie calma de
satisfação e anseios. O poeta falava em pescar luz caída, com paciência, de um
poço - que imagino escuro. Caem muitas luzes de asas e vôos macios pelas manhãs,
e não pescar seria um desperdício. Também
vou pescar.
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Dauri Batisti
13 agosto 2013
Coisa que alcançamos sem aqueles longos treinamentos de monges
A maior parte do tempo se dá na
espera de alguma coisa. Canta-se a esperança como um benefício que a alma está
sempre a nos dar. Mas há certos dias que melhor é sentir a paz de nada esperar,
e assim, sem esperanças, dar-se ao momento para que a vida se dê por ela mesma.
Talvez estes momentos exijam uma taça de vinho, uma xícara de café, um olhar
atravessando vidros e admirando pequenas feiuras, feiuras que passam ao campo
da beleza.
Tem qualquer coisa de “zen” que nos
acontece nesses dias, qualquer coisa que alcançamos sem aqueles longos
treinamentos de monges. Paisagens que nos rodoviam sem asfaltos e sem placas de
sinalização. E se vai por aquela estrada sem partida e sem chegada... e é tão
bom.
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Dauri Batisti
03 junho 2013
Eu precisava de um amparo quando li aquele poema chinês (novo conto)
Eu precisava de um amparo quando li aquele poema chinês, eu
procurava um amparo, ou um impulso pra me levantar, rolei com os pensamentos,
não sei se rolei ou me arrastei, parecia que eu tinha batido a cabeça em alguma
coisa, ou alguma coisa tivesse batido na minha cabeça, as nuvens, as nuvens me
acordaram, vi as nuvens quando acordei, o céu estava mais próximo, o céu azul
de fazer os olhos se fecharem, ou foram as formigas, as formigas que me picavam
me despertaram daquele poema chinês.
Eu fiquei caído ali, olhando as nuvens passando devagar naquele azul
muito carregado de luz, eu nunca usaria uma camisa daquela cor, todos me olhariam
também, não gosto que me olhem, muitos, gosto apenas que alguém me olhe, as
nuvens se amontoavam num lado do céu.
Ah, não lembro mais onde o sol se levantava lá naquela vila
onde cresci, naquele tempo eu não me preocupava com o tempo, o sol podia se
levantar e se esconder e tudo continuava como sempre, se a laranjeira floria e
depois dela colhíamos doces laranjas pra se chupar ao seu pé, se um milharal seco
era quebrado ao se recolher suas espigas e logo o arado lhe misturava com o
chão, palhas viradas em terra, nada mudava.
Aquele homem não existia no poema chinês, ele se metia nele,
as pessoas se intrometem, mas ele, apesar de intrometido, demonstrava querer me
ajudar, ele me reerguia do chão com palavras boas, não me pergunte quais,
palavras boas não são aquelas que você pensa, são aquelas que você ouve, mornas,
calorosas de um afeto mesmo sem sentimento, porque o homem não me conhecia.
Ele me levou para algum lugar, me pôs sentado numa espécie
de fundos de uma loja, outras pessoas chegaram, uma mocinha linda com um copo d’água
na mão e outro no olhar, preferi este último, mas bebi aquele. Então se repetia
a pergunta que só agora eu conseguia ouvir, o que aconteceu rapaz? Eu não sabia
responder, apalpei os bolsos da jaqueta e não encontrei o livro de bolso, o livro
de poemas chineses.
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Dauri Batisti
27 maio 2013
Lâmpadas fracas
Chovia, da lanchonete olhava
aquela velha casa em frente, de dois pavimentos, em estilo eclético, do início
do século 20, perdida entre os prédios. O dia caído se anunciava não pelos
ponteiros do relógio que se avizinhava das 17 horas, mas pelas lâmpadas fracas
que se acendiam lá pelos fundos, na sala de jantar provavelmente, e que tingiam
de melancólica luz as janelas da sala que davam para a rua. Se não fosse até lá
agora, nunca mais iria.
Ao chegar pôs os pés e os olhos
sobre os três velhos degraus de pedra como se fossem sagrados, ali sentara tantas
vezes para descobrir entre aqueles homens que visitavam sua mãe qual seria seu
pai, acreditava que ele daria algum sinal de que ele era ele. Iludia-se. Os
degraus lavados anunciavam que nada permanece, os passos às pedras serradas
deram suavidades, os passos mudam as pedras. Mas não mudaram nos últimos
tempos, pareciam os mesmos. Chovia. Não era uma chuva boa, era uma que
entristecia. Trazia em suas rajadas coisas dos tempos, de tantos tempos, coisas
ardentes e pontiagudas, preferiria não voltar, mas voltava. Já batia à porta,
batia sem certeza do que iria fazer. Quando a porta se abriu ele não podia
imaginar aquele rosto, era outro, feito do mesmo. Teve um pensamento de beijá-la,
e outro pensamento de perguntar coisas, exigir respostas, dizer desaforos.
Quando seus olhos se colocaram
sobre os daquela mulher que lhe abria a porta, e antes que de todo estivesse
aberta, veio-lhe de imediato o dia em que fora por aquela mesma porta posto
para fora de casa. Não esperava aquela lembrança, não se preparara para
recordação tão clara exatamente naquele momento. Tinha apenas 12 anos. Não era
um filho ruim, muito pelo contrário, e nunca entendera sua expulsão. Sentiu um
rubor nas faces. Fora simplesmente abortado aos 12 anos. Agora estava ali,
tinha andado mundo, e ela o recebia sem saber a quem recebia. Na verdade ia àquela
porta em busca de uma ultima réstia de luz, a esperança de que por detrás
daqueles olhos de prostituta pudesse haver um veio de recordação que a ela
avisasse: é seu filho.
A mulher docemente o atendeu. 30
anos depois. Não o reconhecia com certeza. Sentiu-se feito de bobo pelas
próprias ilusões. Virou-se sem se despedir, tinha se enganado, foi só o que
disse enquanto saía. Um grito. Chovia. Saiu correndo pela rua em direção à
marquise da lanchonete do outro lado.
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Dauri Batisti
21 maio 2013
Que ventos são aqueles que atravessam em assovios casas abandonadas?
(conto)
Lembrei de você e pensei, vou escrever uma carta para ele. Na verdade não vou escrever, não consigo, também não se escreve mais deste tipo de carta, é uma besteira, vou escrever aqui na cabeça enquanto ando pela casa. Lançar mão das palavras escritas
para dizer o que não organizo bem significa que não ando bem, mas não se
preocupe. Você sabe de muitas coisas, não sabe de todas, nem eu, mas eis que
penso e falo. Não sei se escrevo em voz alta. Que se dane se alguém estiver lendo meus pensamentos!
Os ventos, os ventos me povoam de pequenos mas vastos redemoinhos, empoeirados, são aqueles ventos que sopraram quando nos encontramos naquele passeio bobo de trem pelas montanhas no fim de semana, ventos perdidos, hoje sei, que nos juntaram e também nos separaram. O que vivemos? O que foi aquilo? Hoje meus remédios mais fazem as nuvens caírem do que dar-me uma leveza para viver. Peso. Nem sei direito como escrevo peso para distinguir de peso. O primeiro tem som aberto, o outro tem som fechado. A gramática também é o que menos importa para alguém que já morreu. Vocês daí devem ler mais as intenções do que as letras. Estou pesada, afinal, é isso que quero dizer, de viver. Decerto são as curvas, as linhas tortas, nossa!, como são tortas as estradas que fiz, você até tentou me endireitar, mas, que importa isso? A vida sempre pesa... agora mais. Os remédios me dão uma zonzeira, e eu queria uma leveza.
Os ventos, os ventos me povoam de pequenos mas vastos redemoinhos, empoeirados, são aqueles ventos que sopraram quando nos encontramos naquele passeio bobo de trem pelas montanhas no fim de semana, ventos perdidos, hoje sei, que nos juntaram e também nos separaram. O que vivemos? O que foi aquilo? Hoje meus remédios mais fazem as nuvens caírem do que dar-me uma leveza para viver. Peso. Nem sei direito como escrevo peso para distinguir de peso. O primeiro tem som aberto, o outro tem som fechado. A gramática também é o que menos importa para alguém que já morreu. Vocês daí devem ler mais as intenções do que as letras. Estou pesada, afinal, é isso que quero dizer, de viver. Decerto são as curvas, as linhas tortas, nossa!, como são tortas as estradas que fiz, você até tentou me endireitar, mas, que importa isso? A vida sempre pesa... agora mais. Os remédios me dão uma zonzeira, e eu queria uma leveza.
Ah, o que me faz leve são os
encontros, os bons, o nosso nem sei se foi bom, mas naquele dia me fez leve.
Por que escrevo? Por que agora os ventos voltaram mais fortes? São aqueles
ventos que atravessam em assovios casas abandonadas, são aqueles que na lavoura
abandonada traçam com fios de palha de milho seca os pensamentos que o doutor
não gosta de ouvir, mas, como posso pensar outras coisas quando eles sopram?
Falo para ele dos ventos, para o doutor, que me cobra caro, só atende particular. Ele me ouve com medo, vejo nos seus olhos, e me dá remédios como se fosse para se proteger dos ventos. Me dá uns que tira das gavetas e outros que tenho que comprar, sempre tão caros! Fui menina no interior, em espaços abertos de muitos matos e ventos, fantasmas
e histórias. Depois me meti com os sonhos de fazer o Brasil ser de todos, na
minha juventude. Te conheci depois. Nem sei o que passei, cadeias são espaços quadrados que nos
tiram e nos dão coisas. Perdi mais, nem poesia escrevi.
Não tenho mais permissão para
dirigir, eu gostava, você se lembra? eu dirigia melhor do que você. Fico aqui, o apartamento é habitado pela Solange durante o dia, à noite os ventos tomam contam, rodam, rodam, e acabam saindo pela área de serviço, mas não encontram ninguém. Ela cuida da casa,
deixa sempre a janela da sala um tanto aberta para ventilar, ela diz que é pra retirar o mofo, de mim... talvez de mim... ela cuida. Mas a Solange cuida bem das fotografias, pra cada uma ela faz perguntas sempre novas enquanto canta uma dessas músicas sertanejas, isso faço questão, de manter as fotografias, as paredes estão cheias. Desejei falar de você para ela, mais uma vez, estou ocupada agora, lavando
a cozinha, depois você me conta, ela me disse, e eu ouvi, sabe quando você ouve
bem uma coisa?, você cala, eu calei, fechei bem as janelas e fiquei esperando
que os ventos batessem na vidraça. Virei para o lado do criado mudo para olhar
meus remédios. Tinha uma caixa bonita, destas que se vendem por aí, a Solange que
comprou, mas me pediu o dinheiro, bem cara essa caixa, é bonitinha, mas cara. Olhei
meus remédios todos coloridos na caixa bonita como se formassem um arranjo de flores. Então me lembrei de você.
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Dauri Batisti
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