24 agosto 2013


Vozes de abrir janelas, tentativas de olhar - 2

O olhar é coisa que se dá aos outros, mas pode ser também uma coisa que o outro toma, como uma carta que se escreveu em segredo e veio a público pela mão de um “amigo”. As pessoas estão sempre pensando que sabem ler o olhar da gente, mas nem sempre sabem não. Até leem, mas podem estar lendo errado. Ainda lê aquele que lê errado? Mas ele queria que algum dia aparecesse alguém ali naquela venda e que fosse capaz de ler certo nos seus olhos aquela história com começo meio e fim. Especialmente o fim, quando alguém morria. Ao cair da noite ele vinha à venda. Bebia umas poucas doses, ficava ali pelos cantos mais escuros e ia embora. Durante o dia usava óculos escuros.

21 agosto 2013


Vozes de abrir janelas, tentativas de olhar - 1

Não era por necessidade que esfregava aquele pano úmido sobre o balcão da venda, era por costume, as horas não passavam, queria ir embora, não ia, ir pra onde e fazer o quê? Ganhava pouco e nada para ficar no balcão dia e noite. Dia e noite é modo de falar. Esfregava em idas e vindas aquele pano sobre o balcão, a madeira não brilhava, esfregava em círculos, a madeira ficava limpa, mas sebosa, opaca.  Fechava a venda por volta das oito, quando começava o Jornal Nacional. Voltava pro seu quarto, também depósito, atrás da venda, e amargava lembranças de um tempo em que tinha coisas, não muitas, e pessoas, algumas, e histórias, umas poucas. Um ou outro parava na venda durante o dia, um ou outro carro passava naquela estrada. Aquela estrada de estreito asfalto não levava a lugares importantes. Só no fim do dia vinham alguns, no fim virão os anjos? tomara, pensou, vinham na boca da noite os de sempre, fedidos, os sem dinheiro, gastar o que não tinham, rir o que não podiam, rir e xingar palavrões em cada dose de cachaça. Mas ele viu na prateleira uns litros de mel. Estavam ali e ele não os tinha visto. Sempre vendia um ou outro litro nos fins de semana quando apareciam uns perdidos da cidade por ali, donos de alguns sítios na região. Se fosse ele nunca compraria um sitio por ali, preferia a beira do mar. Mas via agora os litros de mel, via-os com desejos e salivação abundante. Estranhava-se, mas queria encher a cara de mel, queria tomar no gargalo, encher- se de doçura.

15 agosto 2013

De meio a meio

Quando escrevo aqui penso que vou em boas semelhanças com um personagem de Guimarães Rosa em A terceira margem do rio, que ao entrar na canoa, pelo olhar do filho, não ia a parte alguma, "só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio".


Mas vamos lá...
As dores vem, isso é certo. No que elas se transformam? Ah, é bom pensar no que se quer viver, se amor ou rancor. Os caminhos se vão, isso é certo. Para onde ir? Os sonhos te levarão, mas é preciso guardar as noites com bons sentimentos. A vida finda, isso é certo. Que sabores dela se desfruta? Tudo depende do carinho e do amor no cultivo do pomar. Ah, sei lá, talvez não seja nada disso, e apenas seja preciso ouvir muitas vezes as crianças cantando.
 

14 agosto 2013


Caem muitas luzes de asas e voos macios pelas manhãs
 
Faz-se uma janela ali, abre-se um lago de luz. Ele olhava a manhã e tudo estava nela, tudo. Mas nada estava completo, apesar de pleno. Vou pescar, ele disse. Como vais pescar, o outro perguntou e exclamou ao mesmo tempo. Vou pescar, ele afirmou novamente. Mas havia outra coisa naquele “vou pescar”. Se te conto agora este conto é pra te fazer um convite. Talvez ele se lembrasse de um poema, um poema de Pablo Neruda, talvez. As certezas se diluíam em uma espécie calma de satisfação e anseios. O poeta falava em pescar luz caída, com paciência, de um poço - que imagino escuro. Caem muitas luzes de asas e vôos macios pelas manhãs, e não pescar seria um desperdício.  Também vou pescar.

13 agosto 2013


Coisa que alcançamos sem aqueles longos treinamentos de monges
A maior parte do tempo se dá na espera de alguma coisa. Canta-se a esperança como um benefício que a alma está sempre a nos dar. Mas há certos dias que melhor é sentir a paz de nada esperar, e assim, sem esperanças, dar-se ao momento para que a vida se dê por ela mesma. Talvez estes momentos exijam uma taça de vinho, uma xícara de café, um olhar atravessando vidros e admirando pequenas feiuras, feiuras que passam ao campo da beleza.
Tem qualquer coisa de “zen” que nos acontece nesses dias, qualquer coisa que alcançamos sem aqueles longos treinamentos de monges. Paisagens que nos rodoviam sem asfaltos e sem placas de sinalização. E se vai por aquela estrada sem partida e sem chegada... e é tão bom.