21 maio 2013


Que ventos são aqueles que atravessam em assovios casas abandonadas?
(conto)
 
Lembrei de você e pensei, vou escrever uma carta para ele. Na verdade não vou escrever, não consigo, também não se escreve mais deste tipo de carta, é uma besteira, vou escrever aqui na cabeça enquanto ando pela casa. Lançar mão das palavras escritas para dizer o que não organizo bem significa que não ando bem, mas não se preocupe. Você sabe de muitas coisas, não sabe de todas, nem eu, mas eis que penso e falo. Não sei se escrevo em voz alta. Que se dane se alguém estiver lendo meus pensamentos!

Os ventos, os ventos me povoam de pequenos mas vastos redemoinhos, empoeirados, são aqueles ventos que sopraram quando nos encontramos naquele passeio bobo de trem pelas montanhas no fim de semana, ventos perdidos, hoje sei, que nos juntaram e também nos separaram. O que vivemos? O que foi aquilo? Hoje meus remédios mais fazem as nuvens caírem do que dar-me uma leveza para viver. Peso. Nem sei direito como escrevo peso para distinguir de peso. O primeiro tem som aberto, o outro tem som fechado. A gramática também é o que menos importa para alguém que já morreu. Vocês daí devem ler mais as intenções do que as letras. Estou pesada, afinal, é isso que quero dizer, de viver. Decerto são as curvas, as linhas tortas, nossa!, como são tortas as estradas que fiz, você até tentou me endireitar, mas, que importa isso? A vida sempre pesa... agora mais. Os remédios me dão uma zonzeira, e eu queria uma leveza.

Ah, o que me faz leve são os encontros, os bons, o nosso nem sei se foi bom, mas naquele dia me fez leve. Por que escrevo? Por que agora os ventos voltaram mais fortes? São aqueles ventos que atravessam em assovios casas abandonadas, são aqueles que na lavoura abandonada traçam com fios de palha de milho seca os pensamentos que o doutor não gosta de ouvir, mas, como posso pensar outras coisas quando eles sopram? Falo para ele dos ventos, para o doutor, que me cobra caro, só atende particular. Ele me ouve com medo, vejo nos seus olhos, e me dá remédios como se fosse para se proteger dos ventos. Me dá uns que tira das gavetas e outros que tenho que comprar, sempre tão caros! Fui menina no interior, em espaços abertos de muitos matos e ventos, fantasmas e histórias. Depois me meti com os sonhos de fazer o Brasil ser de todos, na minha juventude. Te conheci depois. Nem sei o que passei, cadeias são espaços quadrados que nos tiram e nos dão coisas. Perdi mais, nem poesia escrevi.

Não tenho mais permissão para dirigir, eu gostava, você se lembra? eu dirigia melhor do que você. Fico aqui, o apartamento é habitado pela Solange durante o dia, à noite os ventos tomam contam, rodam, rodam, e acabam saindo pela área de serviço, mas não encontram ninguém. Ela cuida da casa, deixa sempre a janela da sala um tanto aberta para ventilar, ela diz que é pra retirar o mofo, de mim... talvez de mim... ela cuida. Mas a Solange  cuida bem das fotografias, pra cada uma ela faz perguntas sempre novas enquanto canta uma dessas músicas sertanejas, isso faço questão, de manter as fotografias, as paredes estão cheias. Desejei falar de você para ela, mais uma vez, estou ocupada agora, lavando a cozinha, depois você me conta, ela me disse, e eu ouvi, sabe quando você ouve bem uma coisa?, você cala, eu calei, fechei bem as janelas e fiquei esperando que os ventos batessem na vidraça. Virei para o lado do criado mudo para olhar meus remédios. Tinha uma caixa bonita, destas que se vendem por aí, a Solange que comprou, mas me pediu o dinheiro, bem cara essa caixa, é bonitinha, mas cara. Olhei meus remédios todos coloridos na caixa bonita como se formassem um arranjo de flores. Então me lembrei de você.

2 comentários:

Maria Helena disse...


Interessante como você embaralha as palavras que a princípio formam um caleidoscópio sem nexo, mas vão se organizando e acabam formando um maravilhoso conto;e cada parágrafo tem sua cor e ritmo próprios.Gostei de tudo!Abç.
É muita cara de pau a minha, querer analisar e decifrar seus contos mas eles me fazem pensar e um bem danado!

Dauri Batisti disse...

Obrigado Maria Helena,

seus comentários me são importantes. Não se esqueça de marcar os erros, já que você, maravilhosamente, tem toda a gramática no coroação - de cor.