O
pássaro do livro (outro conto)
Aquele
livro, ao ver aquele livro no chão da sala algo lhe veio à mente, sem
definir-se bem, uma lembrança, um sentimento, uma verdade, uma saudade, ele ficava
sobre a mesa, sobre o aparador, sobre a escrivaninha, tinha que se perguntar
onde ficava aquele livro, o pássaro colorido na capa, não sabia, na casa dos pais?, de
uma colega? e nunca soubera do que tratava aquele livro, era um romance, de um
autor de um daqueles países da Europa Oriental, não lia romances naquele
período, a vida exigia todo o tempo, toda a mente, todos os interesses, não a vida
exatamente, mas aquilo com o qual se identifica a vida, as preocupações, os objetivos,
o onde se quer chegar, o que se quer ser, ficava aquele livro em algum lugar, o
livro com o pássaro em voo, saindo das tintas, uma espécie de fenix.
Era
isso, tinha que ser agora o renascimento, seria, o marido, arquiteto, só sabia
trabalhar, escolhera aquele velho apartamento, imenso, no quarto andar, chegara
ali pela escada, seguiu seus passos, ele faria com certeza daquele velho
apartamento um belo lugar pra viver, pra resnascer, ela pensava, leria o livro
que encontrara ali.
Mas estava
assustada, inquieta, algo lhe tinha esbarrado no pescoço enquanto subiam o
último lance da escada, estava escuro, não porque era noite, mas porque o tempo
estava no ponto de derramar-se num temporal
às cinco da tarde, as escuridões tantas vezes se juntam, tomara se
juntem na vida das pessoas os amores, os ventos bons e as coisas boas, pensava
desorganizadamente, a escuridão da noite que chega mais cedo em abril, a
escuridão da tempestade que não se
despede em abril, seria o mais feio dos meses?, decerto não, sua filha nascera
em abril, a mais bela das alegrias, mesmo que tenha partido tão pequena, nem mencionaria
em pensamento o mês.
O quê? Perguntou-lhe
o marido sem dar importância admirando o apartamento novo já brilhante em seus
olhos que se voltavam para cada canto, uma coisa tocou-me a nuca, me picou, um calafrio me percorreu a espinha inteirinha,
ele não deu atenção ao que ela falava
entusiasmado com o que via na mente, as mudanças todas já implementadas, o
apartamento novinho, e ela entre inquieta com o livro ali no chão, jogado, o
pássaro voando da capa, ele não voava para o alto, ele descia, como uma ave de rapina, colorido ainda apesar da poeira e do desgate do sol.
Ela
tomou o livro, o marido veio-lhe com carinho e bateu o livro na perna esquerda
da da calça jeans, soprou sobre a capa, e passou a mão sobre ele, aqui está,
disse, o que você me diz, minha querida?, e aquele minha querida ele dizia pra
todo mundo, pra seus clientes, pra seus funcionários, uma coisa tocou minha
nuca, ela disse, abriu o livro e deu-se com uma frase de Mayakovsky a título de
epígrafe, E só Deus, na sua onipotência, soube que eram mamíferos de outra
espécie, depois leria o livro, seria bom ler aquele livro, ele já tinha entrado
em sua vida, haveria de se lembrar onde, guardou-o na bolsa, o marido falava e
ela não ouvia e se dirigiu à cozinha, abriu a torneira e deixou a água
escorrer, não ouvia o que o marido falava, ele ia e vinha, já na sua mente tudo
estava pronto, ele já vivia no novo apartamento totalmente transformado, a
noite e o temporal se uniam.
Depois
de lavar bem as mãos ela ergueu seus cabelos torcendo a cabeça levemente na
direção da luz escura, quase tocava o ombro com o queixo, seu marido agora a observava, a luz era pouca,
quase noite, o temporal resvalava pelas vidraças de uma ampla janela na área de
serviço, ele admirou-se de sua beleza, sua elegância, seu corpo
marcado pelo vestido que lhe definia em contraste com os flashs dos relâmpagos
e trovões a forma da beleza, seus quarenta anos não lhe diminuíra o esplendor, sua
dor e luto, nada, era magnífica a mulher que escolhera.
E então
sofreu ali uma dor inesperada, não era hora para aquilo, mas sofreu ali a olhar
para ela na última réstia de luz do dia, sofreu por tê-la traído, não poucas
vezes, sofreu um remorso inadequado para ele e para aquele momento, surpreendia-se consigo mesmo, mas jurara a si mesmo que tudo recomeçaria do zero, o novo apartamento
seria o marco de uma vida nova, ela estava ali, isso importava, ela estava ali no escuro da cozinha, e precisava dele, ou ele começava a sentir que mais precisava dela do que supunha, em silêncio ficou a admirá-la, apenas a chuva fazia seus rumores, cantava
seus cantos, o temporal entoava seus deboches e seus lamentos, ela repetia o
gesto, mão na nuca, não na torneria, ele então foi ao interruptor e acendeu a lâmpada
chamando-a pelo nome, havia sinceridade na doçura que impunha à voz, e
assustou-se, da sua nuca escorria um filete de sangue que ela tentava estancar
com a mão ora pressionada sobre o corte, ora indo à água.